Ilustração: Daniel Murphy Cartoon Movement |
Há pouco mais de uma semana, os noticiários se viram diante da missão de informar e provocar reflexão sobre os eventos racistas em Charlottesville, na Virgínia, Estados Unidos. A imprensa estadunidense escolheu cunhar os protagonistas da marcha de “supremacistas brancos”, de acordo com uma história em que um dos atores principais é a Klu Klux Klan. Os jornais brasileiros seguiram a mesma tendência.
A novidade no noticiário do Brasil foi a utilização da palavra “racismo”, como pontuou a ombudsman da Folha, Paula Cesarino Costa. Ela destaca o excelente artigo de Janio de Freitas, que afirma que a palavra “supremacista” é um jeito de atenuar o que na realidade é “racismo”.
Correto. O espantoso é que um evento racista como o que vimos, com suas consequências e revelações, não provoque um debate interno no Brasil sobre o nosso próprio racismo. Os jornais refletem essa postura. Aqui, a não ser nos estádios de futebol, o racismo não é escancarado e explosivo como na marcha da Virgínia. É contínuo desde que o Brasil é o Brasil. É diário. Mostra-se, em sua expressão mais aguda e letal, nas altas taxas de homicídios contra jovens negros: nosso País mata, a cada ano, cerca de 42 mil vidas negras, 70% do total de homicídios. Não enxergar a dimensão racial dessa violência é outra forma de racismo. Mas a notícia parece que só se torna relevante quando o racismo é flagrado pelas câmaras de TV nos estádios.
Nas páginas dos jornais e no noticiário televisivo, nosso racismo se expressa silenciosamente. Está nas omissões e negligências jornalísticas. Faz parte de uma cultura que tenta, a todo custo, atenuar, relativizar e esconder o nosso racismo. É o que o dramaturgo, escritor e grande intelectual, Abdias Nascimento, classificou como “eufemismos raciais”, em seu livro O genocídio do negro brasileiro – Processo de um racismo mascarado ( Editora Perspectiva). “Não se trata de ingênuo jogo de palavras, mas sim de proposta vazando uma extremamente perigosa mística racista, cujo objetivo é o desaparecimento inapelável do descendente africano, tanto física quanto espiritualmente, através de um malicioso processo de embranquecer a pele negra e a cultura do negro”, escreve Abdias.
Temos, arraigado no coração das redações, o antigo conceito de “democracia racial” por trás da construção das notícias e artigos de opinião. O maior defensor da democracia racial foi o historiador Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala. Mario de Andrade, o poeta angolano, foi um dos primeiros a refutar essa ideia, colocando-a como uma das ferramentas ardilosas do colonizador. O sociólogo Florestan Fernandes também se opôs a essa falsa realidade da democracia racial.
De acordo com a teoria da democracia racial, o Brasil seria uma espécie de “paraíso racial”, em que a miscigenação seria uma forma evolutiva e harmoniosa de convivência. Contestar essa suposta relação racial seria nossa função como jornalistas, se não por óbvia observação (se o jornalista for branco), pelo menos por meio da mera associação de dados sobre indicadores sociais e a base da pirâmide: a população negra segue sendo a mais vulnerável de toda a nossa sociedade. Ponto. Esse é o nosso contexto. Nós, brancos, somos privilegiados diante de uma parcela muito significativa da nossa sociedade. Isso não seria uma forma de “supremacia branca”? Mas vamos nos ater ao uso da expressão “racismo”.
No jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, um dos primeiros artigos sobre Charlottesville se intitula “Racismo no Brasil é real, mas não se manifesta como ódio racial”, do economista Joel Pinheiro da Fonseca. Branco, mestre em filosofia, colaborador do Instituto Millenium, do Instituto Mises Brasil (que publicou texto de um dos líderes do movimento nazista em Charlottesville) e palestrante do movimento liberal brasileiro, se classifica como “libertário”. Corretamente, diz que os protestos em Charlottesville são racistas e “repugnantes”. Em seguida, minimiza o ato, ao considerar o grupo como “uma franja minoritária nos EUA”. Talvez para salvar a própria pele, ressalva que “não representa o grosso da direita americana”, a mesma que o inspira. Joel, então, adentra por um argumento que acaba por expor o seu próprio racismo. Afirma que um protesto como esses é “impensável por aqui”, País em que o racismo existe, mas “não se manifesta como ódio racial. Não temos, nem historicamente, nem no presente, grupos supremacistas brancos ou racistas com qualquer relevância. Nossa mistura das raças produziu uma realidade diferente da americana”. Essa argumentação não é cegueira. É o racismo perverso que faz com que a injustiça racial se perpetue eternamente. Nega-se o óbvio. “Mesmo grupos neonazistas brasileiros contam com mestiços em suas fileiras”, segue o jovem Joel, em uma afirmação sem sentido algum. Atrás de polemizar assuntos dessa natureza, a Folha deixa de cumprir sua função social como veículo jornalístico na engrenagem da democracia. Isso a ombdsman preferiu não dizer.
Engana-se, no entanto, quem pensa que as escolhas de Joel são falta de conhecimento ou ingenuidade. O racismo no Brasil se fortalece em altas esferas intelectuais, tecnológicas e econômicas. “Não há inocência nem ignorância. O racismo nunca foi assunto de ignorantes. Há intencionalidade na escolha das palavras”, alerta a filósofa e doutora em Educação, Sueli Carneiro, uma das maiores representantes do movimento negro no Brasil. “A mídia vem oferecendo desde sempre um acordo de silêncio”, afirma. O silêncio não permite o debate. Nubla a realidade. Isso é uma forma bastante cruel de racismo.
Nos jornais, o silêncio se impôs também na seleção dos articulistas, principal espaço de formação de opinião: desde sábado passado não houve, nem no Estadão, nem na Folha ou no Globo, sequer 1 (um) artigo produzido por alguns dos inúmeros intelectuais negros brasileiros acerca do que está ocorrendo nos Estados Unidos. Isso é jornalismo? É compromisso com informar o leitor? Não. Mas é uma maneira exitosa de amenizar a nossa responsabilidade.
“A maneira como a sociedade americana trata raça é profundamente diferente de nós pois eles romperam o silêncio sobre racismo. E curiosamente chamamos eles de racistas e nós, não”, revela a socióloga negra Márcia Lima, professora da disciplina Desigualdades Raciais na USP. “A polícia no Brasil mata muito mais negros do que a polícia americana. Lá o assassinato de jovens negros é tratado pela imprensa brasileira como racismo. As nossas mortes, não.” A negligência jornalística se faz presente quando, sabendo que a abordagem policial é motivada pela cor da pele, esse tipo de atitude racista da polícia não é questionada pela imprensa. “A sociedade finge não perceber isso”, diz Márcia. E o jornalismo reafirma o “paraíso racial”, onde todos se relacionam alegremente.
Questão doméstica
No jargão jornalístico chamamos de “gancho” o período que favorece a publicação de uma determinada reportagem ou análise por conta do interesse gerado por determinado assunto. Assim, tanto melhor a audiência de do texto ou vídeo, quanto melhor for o ‘timing’ de sua publicação. Nesta segunda-feira 21, o Estadão publicou uma reportagem sobre o número muito elevado de homicídios no primeiro semestre deste ano. São 155 mortes diárias, 6 por hora, o que demonstra tendência de aumento em relação aos índices de 2016. “As características das mortes se repetem: ligada ao tráfico de drogas e tendo como vítimas jovens negros pobres da periferia executados com armas de fogo”. Essa é uma informação fortíssima que, se as vítimas fossem brancas, ganharia não só a manchete e a primeira página, como também os espaços de discussão do jornal. A função seria influenciar a demanda por políticas públicas específicas, constranger as esferas de poder para que façam algo para proteger os jovens negros. Mas é o silêncio que se destaca. Como se não tivéssemos nada para fazer diante disso. Como se fossem mortes naturais, “matáveis”. Como se o corpo negro tivesse mesmo que ser contido, restringido e eliminado, seguindo o curso da nossa história. A notícia teve a importância de uma notinha corriqueira para o Estadão.
É no reconhecimento do racismo como elemento central da nossa sociedade que poderia se estabelecer uma discussão na tentativa de superar a realidade em que vivemos. Enquanto silenciarmos, seguiremos sendo cúmplices das milhares de mortes, da ferida aberta e cotidianamente aprofundada, da dor e da vulnerabilidade da população negra. Como disse Oracy Nogueira, um dos sociólogos brasileiros mais importantes, sobre esse silêncio: “em casa de enforcado não se fala em corda”.
A novidade no noticiário do Brasil foi a utilização da palavra “racismo”, como pontuou a ombudsman da Folha, Paula Cesarino Costa. Ela destaca o excelente artigo de Janio de Freitas, que afirma que a palavra “supremacista” é um jeito de atenuar o que na realidade é “racismo”.
Correto. O espantoso é que um evento racista como o que vimos, com suas consequências e revelações, não provoque um debate interno no Brasil sobre o nosso próprio racismo. Os jornais refletem essa postura. Aqui, a não ser nos estádios de futebol, o racismo não é escancarado e explosivo como na marcha da Virgínia. É contínuo desde que o Brasil é o Brasil. É diário. Mostra-se, em sua expressão mais aguda e letal, nas altas taxas de homicídios contra jovens negros: nosso País mata, a cada ano, cerca de 42 mil vidas negras, 70% do total de homicídios. Não enxergar a dimensão racial dessa violência é outra forma de racismo. Mas a notícia parece que só se torna relevante quando o racismo é flagrado pelas câmaras de TV nos estádios.
Nas páginas dos jornais e no noticiário televisivo, nosso racismo se expressa silenciosamente. Está nas omissões e negligências jornalísticas. Faz parte de uma cultura que tenta, a todo custo, atenuar, relativizar e esconder o nosso racismo. É o que o dramaturgo, escritor e grande intelectual, Abdias Nascimento, classificou como “eufemismos raciais”, em seu livro O genocídio do negro brasileiro – Processo de um racismo mascarado ( Editora Perspectiva). “Não se trata de ingênuo jogo de palavras, mas sim de proposta vazando uma extremamente perigosa mística racista, cujo objetivo é o desaparecimento inapelável do descendente africano, tanto física quanto espiritualmente, através de um malicioso processo de embranquecer a pele negra e a cultura do negro”, escreve Abdias.
Temos, arraigado no coração das redações, o antigo conceito de “democracia racial” por trás da construção das notícias e artigos de opinião. O maior defensor da democracia racial foi o historiador Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala. Mario de Andrade, o poeta angolano, foi um dos primeiros a refutar essa ideia, colocando-a como uma das ferramentas ardilosas do colonizador. O sociólogo Florestan Fernandes também se opôs a essa falsa realidade da democracia racial.
De acordo com a teoria da democracia racial, o Brasil seria uma espécie de “paraíso racial”, em que a miscigenação seria uma forma evolutiva e harmoniosa de convivência. Contestar essa suposta relação racial seria nossa função como jornalistas, se não por óbvia observação (se o jornalista for branco), pelo menos por meio da mera associação de dados sobre indicadores sociais e a base da pirâmide: a população negra segue sendo a mais vulnerável de toda a nossa sociedade. Ponto. Esse é o nosso contexto. Nós, brancos, somos privilegiados diante de uma parcela muito significativa da nossa sociedade. Isso não seria uma forma de “supremacia branca”? Mas vamos nos ater ao uso da expressão “racismo”.
No jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, um dos primeiros artigos sobre Charlottesville se intitula “Racismo no Brasil é real, mas não se manifesta como ódio racial”, do economista Joel Pinheiro da Fonseca. Branco, mestre em filosofia, colaborador do Instituto Millenium, do Instituto Mises Brasil (que publicou texto de um dos líderes do movimento nazista em Charlottesville) e palestrante do movimento liberal brasileiro, se classifica como “libertário”. Corretamente, diz que os protestos em Charlottesville são racistas e “repugnantes”. Em seguida, minimiza o ato, ao considerar o grupo como “uma franja minoritária nos EUA”. Talvez para salvar a própria pele, ressalva que “não representa o grosso da direita americana”, a mesma que o inspira. Joel, então, adentra por um argumento que acaba por expor o seu próprio racismo. Afirma que um protesto como esses é “impensável por aqui”, País em que o racismo existe, mas “não se manifesta como ódio racial. Não temos, nem historicamente, nem no presente, grupos supremacistas brancos ou racistas com qualquer relevância. Nossa mistura das raças produziu uma realidade diferente da americana”. Essa argumentação não é cegueira. É o racismo perverso que faz com que a injustiça racial se perpetue eternamente. Nega-se o óbvio. “Mesmo grupos neonazistas brasileiros contam com mestiços em suas fileiras”, segue o jovem Joel, em uma afirmação sem sentido algum. Atrás de polemizar assuntos dessa natureza, a Folha deixa de cumprir sua função social como veículo jornalístico na engrenagem da democracia. Isso a ombdsman preferiu não dizer.
Engana-se, no entanto, quem pensa que as escolhas de Joel são falta de conhecimento ou ingenuidade. O racismo no Brasil se fortalece em altas esferas intelectuais, tecnológicas e econômicas. “Não há inocência nem ignorância. O racismo nunca foi assunto de ignorantes. Há intencionalidade na escolha das palavras”, alerta a filósofa e doutora em Educação, Sueli Carneiro, uma das maiores representantes do movimento negro no Brasil. “A mídia vem oferecendo desde sempre um acordo de silêncio”, afirma. O silêncio não permite o debate. Nubla a realidade. Isso é uma forma bastante cruel de racismo.
Nos jornais, o silêncio se impôs também na seleção dos articulistas, principal espaço de formação de opinião: desde sábado passado não houve, nem no Estadão, nem na Folha ou no Globo, sequer 1 (um) artigo produzido por alguns dos inúmeros intelectuais negros brasileiros acerca do que está ocorrendo nos Estados Unidos. Isso é jornalismo? É compromisso com informar o leitor? Não. Mas é uma maneira exitosa de amenizar a nossa responsabilidade.
“A maneira como a sociedade americana trata raça é profundamente diferente de nós pois eles romperam o silêncio sobre racismo. E curiosamente chamamos eles de racistas e nós, não”, revela a socióloga negra Márcia Lima, professora da disciplina Desigualdades Raciais na USP. “A polícia no Brasil mata muito mais negros do que a polícia americana. Lá o assassinato de jovens negros é tratado pela imprensa brasileira como racismo. As nossas mortes, não.” A negligência jornalística se faz presente quando, sabendo que a abordagem policial é motivada pela cor da pele, esse tipo de atitude racista da polícia não é questionada pela imprensa. “A sociedade finge não perceber isso”, diz Márcia. E o jornalismo reafirma o “paraíso racial”, onde todos se relacionam alegremente.
Questão doméstica
No jargão jornalístico chamamos de “gancho” o período que favorece a publicação de uma determinada reportagem ou análise por conta do interesse gerado por determinado assunto. Assim, tanto melhor a audiência de do texto ou vídeo, quanto melhor for o ‘timing’ de sua publicação. Nesta segunda-feira 21, o Estadão publicou uma reportagem sobre o número muito elevado de homicídios no primeiro semestre deste ano. São 155 mortes diárias, 6 por hora, o que demonstra tendência de aumento em relação aos índices de 2016. “As características das mortes se repetem: ligada ao tráfico de drogas e tendo como vítimas jovens negros pobres da periferia executados com armas de fogo”. Essa é uma informação fortíssima que, se as vítimas fossem brancas, ganharia não só a manchete e a primeira página, como também os espaços de discussão do jornal. A função seria influenciar a demanda por políticas públicas específicas, constranger as esferas de poder para que façam algo para proteger os jovens negros. Mas é o silêncio que se destaca. Como se não tivéssemos nada para fazer diante disso. Como se fossem mortes naturais, “matáveis”. Como se o corpo negro tivesse mesmo que ser contido, restringido e eliminado, seguindo o curso da nossa história. A notícia teve a importância de uma notinha corriqueira para o Estadão.
É no reconhecimento do racismo como elemento central da nossa sociedade que poderia se estabelecer uma discussão na tentativa de superar a realidade em que vivemos. Enquanto silenciarmos, seguiremos sendo cúmplices das milhares de mortes, da ferida aberta e cotidianamente aprofundada, da dor e da vulnerabilidade da população negra. Como disse Oracy Nogueira, um dos sociólogos brasileiros mais importantes, sobre esse silêncio: “em casa de enforcado não se fala em corda”.
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