Por Reginaldo Moraes, no site Brasil Debate:
Aquilo que vou contar sei apenas de memória e do pouco que li a respeito, por motivações não acadêmicas. Muitos estudaram esses temas em detalhe. Outros viveram essas coisas por dentro. E, por isto, este é um convite para que explorem essas questões com mais competência do que a minha.
Mas a estória vale a pena, até porque é mais do que estória, é história, aquele tipo de história que tende a se repetir de modo trágico.
A fábula-realidade começa assim. Era uma vez, 50 anos atrás, um pequeno país na América Latina, em que uma oligarquia local controlava as terras e sorvia as rebarbas da exploração de alguns oligopólios estrangeiros, norte-americanos, donos da principal riqueza do país, o cobre. Esse país era o Chile.
Os camponeses e trabalhadores urbanos estavam longe de aceitar passivamente essa situação. Tinham uma longa história de lutas. Mas não conseguiam romper as regras que permitiam às facções dominantes revezarem-se no governo. Até que algo mudou, quase que por acaso, mas não exatamente por acaso. A divisão no lado de cima se acentuou e um presidente de esquerda teve a maioria dos votos. O grau de dessa divisão tem algo de casual, mas a existência dessa coalizão de esquerda não, ela era fruto de uma acumulação de forças. O presidente, do Partido Socialista, era Salvador Allende.
Não teve a maioria necessária para vencer em primeiro turno. E o segundo turno era decidido no Congresso, era a regra. Tradicionalmente, o Congresso ratificava o vencedor do voto popular. Mas agora era diferente. O vencedor não era um dos barões, mas um médico apoiado em uma coalizão de socialistas, comunistas e cristãos de esquerda. Um perigo!
Dias antes da decisão do Congresso, a direita tentou sua cartada. Organizou o assassinato do comandante do exército, para criar comoção entre os militares e induzir um golpe. Um truque similar ao que aqui no Brasil tentou um certo capitão terrorista que chama todos seus adversários de terroristas. Não deu certo, no Chile. Allende foi confirmado e começou algumas pequenas reformas, pequenas,porém importantes para os trabalhadores. Mas inaceitáveis para a oligarquia e os interesses imperialistas. O secretário de Estado ianque, o conhecido criminoso de guerra Henry Kissinger, declarou taxativamente: nós temos o direito de apear um governante do qual não gostamos. Assim, na lata.
E foi o que começaram a fazer as empresas americanas e seus órgãos de “inteligência”. Oligarcas e imperialistas estavam decididos a desmontar o país, se necessário, para derrubar o governo. Conseguiram as duas coisas: destruíram a economia do país e derrubaram Allende.
Sabotagem interna, bloqueio internacional contra o cobre, financiamento de grupos conspiradores. Na reta final, sustentaram uma greve de transportadoras, desabastecendo as cidades. Nada disso foi suficiente. Nas eleições municipais pouco antes do golpe, a coalizão de esquerda, a Unidade Popular, cresceu, ao invés de diminuir.
Tanques na rua. E os economistas do golpe organizam o massacre.
Só restava a cartada do sangue. E foi muito sangue. Um golpe militar que matou dezenas de milhares de pessoas, colocou outros tantos na clandestinidade ou no exílio. Mas, como sabemos nós e muito sabem eles, uma coisa é bombardear um país (por dentro ou por fora), outra coisa é governá-lo para continuar a sugar mais-valia.
Bem antes do golpe, os militares chilenos já trabalhavam em sintonia com uma equipe de economistas de um convênio entre a Universidade Católica do Chile e a famosa Universidade de Chicago, a catedral dos ultraliberais. Formavam quadros e preparavam um plano econômico para o pós-golpe. O ícone dessa turma, bem nutrida na mídia, era Milton Friedman, conselheiro e admirador de Pinochet (não esquecer Friedrich Hayek, outro dos paquitos do general).
Mas outra equipe, menos espalhafatosa, preparava as grandes reformas institucionais para eternizar a pantomima. Era preparada por uma direita “libertária” financiada por milionários como o petroleiro Charles Koch, ainda hoje muito ativo e famoso, esse mesmo que anda nas notícias sobre o Tea Party, a tigrada extremista do Partido Republicano dos Estados Unidos. Essa escola de economistas era chefiada por um economista ultra-reacionário do sul norte-americano, James Buchanan. A especialidade dele era desancar a democracia e as eleições e ficar imaginando regras constitucionais que evitassem os arroubos reformistas da plebe. A escolinha do professor Buchanan ficava nessa cidade hoje tristemente famosa, Charlotesville-Virgínia, uma espécie de feudo de racistas e direitistas raivosos.
Entre os chilenos amestrados por ianques estava um cara de sobrenome bem atual – José Piñera. Ele fazia um doutorado em Harvard, na ocasião do golpe. Voltou rápido para o Chile, dizendo que queria “ajudar a criar um novo país, dedicado à liberdade”, direto de Boston para os jardins de Pinochet. Sua contribuição para essa peculiar Liberdade era o que chamava de “sete modernizações”. A base das sete era uma trinca: privatizar, desregulamentar e induzir, pela força do estado, a fragmentação do “poder dos grupos”.
Logo ficaria claro quais eram esses grupos danosos que pretendiam fragmentar (inclusive fisicamente). Os sindicatos seriam exterminados, as negociações trabalhistas ocorreriam apenas empresa a empresa, ou melhor, caso a caso. Os indivíduos teriam “livre escolha” para negociar com seus patrões, mano a mano. Talvez fosse mais exato dizer: seriam forçados a “negociar” como indivíduos. Já se vê.
As outras reforminhas incluíam a privatização do sistema de previdência, para alegria de dois grupos privados do ramo, o BHC Group e a Cruzat-Larrain, que em dez anos se apossaram de um belo pedaço do produto bruto do país. Um prodígio de eficiência empresarial e uma clara mostra das virtudes da liberdade.
Outras modernizações? Por certo, a privatização da saúde, a abertura do mercado de terras, com a reversão da reforma agrária, a independência do Banco Central, o orçamento equilibrado, com tetos para gastos. Essas coisas tão evidentes e tão corajosas que um golpe inevitavelmente abraça. Sobretudo, era imperioso insular a política econômica, isto é, criar regras duradouras que colocassem a política macroeconômica longe de qualquer “influência do demos”, sempre guloso, preguiçoso e imprevidente.
Esse foi um passo, o das reformas econômicas. Decisivo, porque criava uma máquina de esfola acelerada. Ela não apenas produziu uma desigualdade que o Chile jamais conhecera, como afundou o país numa recessão duradoura que convivia com enriquecimento de uma centena de militares e civis. A austera família Pinochet, por exemplo, transformou-se numa das maiores fortunas do mundo, grana administrada por um banco internacional especializado em torturadores e ditadores como ele.
O setor de private banking do City Bank era o escritório de lavagem de Pinochet, Salinas de Gortary, bem como de todos os ditadores da África. Nada disso é boato. Está registrado em duas CPIS do senado americano, com relatórios disponíveis na web. Com a ficha cadastral das lavanderias e dos lavados.
Mas voltemos às reformas ultraliberais do Chile. Os golpistas sabiam que tinham que construir muros para protegê-las de posteriores ataques dos prejudicados, os trabalhadores, os camponeses, a classe média empobrecida. Uma outra reforma era necessária, a política. Criar uma constituição à prova de mudanças e um sistema eleitoral que impedisse mudanças depois. Não vou entrar em detalhes, convido os especialistas para mostrar isso. Mas adianto que o sistema era uma caixa-forte.
Essa estória-história ainda segue dando frutos medonhos. Dois mandatos de uma socialista moderada, ex-presa política, foram insuficientes para sequer arranhar essa desgraça. E a direita-direita agora voltou ao governo, disposta a manter e aprofundar o estrago.
É tua a estória contada…
Bom, antes que fiquemos confusos, estou falando do Chile. Em outro país da América Latina, bem maior, também houve um golpe. Não com fardas, mas com trajes civis. Um bando de assaltantes, pagos para matar, bem pagos, aliás – deputados, senadores, juízes, promotores, donos da mídia. Devem ter seus private bankings para zelar por suas malas.
Não se trata de derrubar um governo, apenas, com a desculpa mais esfarrapada possível. Os golpistas se dividem sobre algumas coisas, mas numa concordam: o essencial são as “reformas”, isto é, a criação de um novo mundo de exploração, ainda mais selvagem. Reforma trabalhista, previdenciária, liquidação de empresas públicas, privatização de serviços de saúde e educação, abertura de negócios para investidores estrangeiros, a agenda é longa, nem vou continuar.
Mas ainda isso é parcial. É preciso vacinar as reformas contra tentativas futuras de mudanças. Não basta uma lei de teto no orçamento, para vinte anos. É preciso garantir que o sistema político seja impermeável a tentativas de reverter tudo isso. É preciso ter um sistema eleitoral que garanta que os postos-chave fiquem sob controle dos homens de bem, isto é, os homens de bens e seus asseclas.
O Chile foi um laboratório a céu aberto das reformas neoliberais, 40 anos atrás. Uma engenharia da exploração se criou a partir dele.
Os engenheiros do apocalipse estão em marcha.
Mas a estória vale a pena, até porque é mais do que estória, é história, aquele tipo de história que tende a se repetir de modo trágico.
A fábula-realidade começa assim. Era uma vez, 50 anos atrás, um pequeno país na América Latina, em que uma oligarquia local controlava as terras e sorvia as rebarbas da exploração de alguns oligopólios estrangeiros, norte-americanos, donos da principal riqueza do país, o cobre. Esse país era o Chile.
Os camponeses e trabalhadores urbanos estavam longe de aceitar passivamente essa situação. Tinham uma longa história de lutas. Mas não conseguiam romper as regras que permitiam às facções dominantes revezarem-se no governo. Até que algo mudou, quase que por acaso, mas não exatamente por acaso. A divisão no lado de cima se acentuou e um presidente de esquerda teve a maioria dos votos. O grau de dessa divisão tem algo de casual, mas a existência dessa coalizão de esquerda não, ela era fruto de uma acumulação de forças. O presidente, do Partido Socialista, era Salvador Allende.
Não teve a maioria necessária para vencer em primeiro turno. E o segundo turno era decidido no Congresso, era a regra. Tradicionalmente, o Congresso ratificava o vencedor do voto popular. Mas agora era diferente. O vencedor não era um dos barões, mas um médico apoiado em uma coalizão de socialistas, comunistas e cristãos de esquerda. Um perigo!
Dias antes da decisão do Congresso, a direita tentou sua cartada. Organizou o assassinato do comandante do exército, para criar comoção entre os militares e induzir um golpe. Um truque similar ao que aqui no Brasil tentou um certo capitão terrorista que chama todos seus adversários de terroristas. Não deu certo, no Chile. Allende foi confirmado e começou algumas pequenas reformas, pequenas,porém importantes para os trabalhadores. Mas inaceitáveis para a oligarquia e os interesses imperialistas. O secretário de Estado ianque, o conhecido criminoso de guerra Henry Kissinger, declarou taxativamente: nós temos o direito de apear um governante do qual não gostamos. Assim, na lata.
E foi o que começaram a fazer as empresas americanas e seus órgãos de “inteligência”. Oligarcas e imperialistas estavam decididos a desmontar o país, se necessário, para derrubar o governo. Conseguiram as duas coisas: destruíram a economia do país e derrubaram Allende.
Sabotagem interna, bloqueio internacional contra o cobre, financiamento de grupos conspiradores. Na reta final, sustentaram uma greve de transportadoras, desabastecendo as cidades. Nada disso foi suficiente. Nas eleições municipais pouco antes do golpe, a coalizão de esquerda, a Unidade Popular, cresceu, ao invés de diminuir.
Tanques na rua. E os economistas do golpe organizam o massacre.
Só restava a cartada do sangue. E foi muito sangue. Um golpe militar que matou dezenas de milhares de pessoas, colocou outros tantos na clandestinidade ou no exílio. Mas, como sabemos nós e muito sabem eles, uma coisa é bombardear um país (por dentro ou por fora), outra coisa é governá-lo para continuar a sugar mais-valia.
Bem antes do golpe, os militares chilenos já trabalhavam em sintonia com uma equipe de economistas de um convênio entre a Universidade Católica do Chile e a famosa Universidade de Chicago, a catedral dos ultraliberais. Formavam quadros e preparavam um plano econômico para o pós-golpe. O ícone dessa turma, bem nutrida na mídia, era Milton Friedman, conselheiro e admirador de Pinochet (não esquecer Friedrich Hayek, outro dos paquitos do general).
Mas outra equipe, menos espalhafatosa, preparava as grandes reformas institucionais para eternizar a pantomima. Era preparada por uma direita “libertária” financiada por milionários como o petroleiro Charles Koch, ainda hoje muito ativo e famoso, esse mesmo que anda nas notícias sobre o Tea Party, a tigrada extremista do Partido Republicano dos Estados Unidos. Essa escola de economistas era chefiada por um economista ultra-reacionário do sul norte-americano, James Buchanan. A especialidade dele era desancar a democracia e as eleições e ficar imaginando regras constitucionais que evitassem os arroubos reformistas da plebe. A escolinha do professor Buchanan ficava nessa cidade hoje tristemente famosa, Charlotesville-Virgínia, uma espécie de feudo de racistas e direitistas raivosos.
Entre os chilenos amestrados por ianques estava um cara de sobrenome bem atual – José Piñera. Ele fazia um doutorado em Harvard, na ocasião do golpe. Voltou rápido para o Chile, dizendo que queria “ajudar a criar um novo país, dedicado à liberdade”, direto de Boston para os jardins de Pinochet. Sua contribuição para essa peculiar Liberdade era o que chamava de “sete modernizações”. A base das sete era uma trinca: privatizar, desregulamentar e induzir, pela força do estado, a fragmentação do “poder dos grupos”.
Logo ficaria claro quais eram esses grupos danosos que pretendiam fragmentar (inclusive fisicamente). Os sindicatos seriam exterminados, as negociações trabalhistas ocorreriam apenas empresa a empresa, ou melhor, caso a caso. Os indivíduos teriam “livre escolha” para negociar com seus patrões, mano a mano. Talvez fosse mais exato dizer: seriam forçados a “negociar” como indivíduos. Já se vê.
As outras reforminhas incluíam a privatização do sistema de previdência, para alegria de dois grupos privados do ramo, o BHC Group e a Cruzat-Larrain, que em dez anos se apossaram de um belo pedaço do produto bruto do país. Um prodígio de eficiência empresarial e uma clara mostra das virtudes da liberdade.
Outras modernizações? Por certo, a privatização da saúde, a abertura do mercado de terras, com a reversão da reforma agrária, a independência do Banco Central, o orçamento equilibrado, com tetos para gastos. Essas coisas tão evidentes e tão corajosas que um golpe inevitavelmente abraça. Sobretudo, era imperioso insular a política econômica, isto é, criar regras duradouras que colocassem a política macroeconômica longe de qualquer “influência do demos”, sempre guloso, preguiçoso e imprevidente.
Esse foi um passo, o das reformas econômicas. Decisivo, porque criava uma máquina de esfola acelerada. Ela não apenas produziu uma desigualdade que o Chile jamais conhecera, como afundou o país numa recessão duradoura que convivia com enriquecimento de uma centena de militares e civis. A austera família Pinochet, por exemplo, transformou-se numa das maiores fortunas do mundo, grana administrada por um banco internacional especializado em torturadores e ditadores como ele.
O setor de private banking do City Bank era o escritório de lavagem de Pinochet, Salinas de Gortary, bem como de todos os ditadores da África. Nada disso é boato. Está registrado em duas CPIS do senado americano, com relatórios disponíveis na web. Com a ficha cadastral das lavanderias e dos lavados.
Mas voltemos às reformas ultraliberais do Chile. Os golpistas sabiam que tinham que construir muros para protegê-las de posteriores ataques dos prejudicados, os trabalhadores, os camponeses, a classe média empobrecida. Uma outra reforma era necessária, a política. Criar uma constituição à prova de mudanças e um sistema eleitoral que impedisse mudanças depois. Não vou entrar em detalhes, convido os especialistas para mostrar isso. Mas adianto que o sistema era uma caixa-forte.
Essa estória-história ainda segue dando frutos medonhos. Dois mandatos de uma socialista moderada, ex-presa política, foram insuficientes para sequer arranhar essa desgraça. E a direita-direita agora voltou ao governo, disposta a manter e aprofundar o estrago.
É tua a estória contada…
Bom, antes que fiquemos confusos, estou falando do Chile. Em outro país da América Latina, bem maior, também houve um golpe. Não com fardas, mas com trajes civis. Um bando de assaltantes, pagos para matar, bem pagos, aliás – deputados, senadores, juízes, promotores, donos da mídia. Devem ter seus private bankings para zelar por suas malas.
Não se trata de derrubar um governo, apenas, com a desculpa mais esfarrapada possível. Os golpistas se dividem sobre algumas coisas, mas numa concordam: o essencial são as “reformas”, isto é, a criação de um novo mundo de exploração, ainda mais selvagem. Reforma trabalhista, previdenciária, liquidação de empresas públicas, privatização de serviços de saúde e educação, abertura de negócios para investidores estrangeiros, a agenda é longa, nem vou continuar.
Mas ainda isso é parcial. É preciso vacinar as reformas contra tentativas futuras de mudanças. Não basta uma lei de teto no orçamento, para vinte anos. É preciso garantir que o sistema político seja impermeável a tentativas de reverter tudo isso. É preciso ter um sistema eleitoral que garanta que os postos-chave fiquem sob controle dos homens de bem, isto é, os homens de bens e seus asseclas.
O Chile foi um laboratório a céu aberto das reformas neoliberais, 40 anos atrás. Uma engenharia da exploração se criou a partir dele.
Os engenheiros do apocalipse estão em marcha.
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