Por Juarez Guimarães e Eliara Santana, no site Carta Maior:
No artigo anterior, analisou-se como a narrativa golpista – seus temas centrais, seus tempos, sua construção simbólica, suas articulações - conseguiu as condições de ser vitoriosa. Neste artigo, a pergunta é: por que a narrativa golpista pôde ser vitoriosa contra a esquerda brasileira?
Certamente a práxis política comunicativa da esquerda brasileira carece de fundamentos conceituais que, ao mesmo tempo, estejam em sintonia com a sua identidade histórica e seu programa, com sua estratégia de poder e permitam diagnosticar a dinâmica do processo em curso. Neste sentido, a práxis política comunicativa dos neoliberais está bem mais avançada na articulação de sua identidade, sua narrativa e sua estratégia de poder. Aliás, pode-se dizer mesmo que aí reside o centro da capacidade de legitimar sua política.
É a partir do conceito de hegemonia de Gramsci que devemos trabalhar. Com um diálogo forte com a tradição do humanismo cívico, que não separava política de linguagem, retórica e poder, a partir de sua própria experiência no L´Uordine Nuovo, com o processo prático de construção da hegemonia e o papel da imprensa como organizador coletivo de Lenin, o conceito de hegemonia solda linguagem e política. É mérito de Peter I ves ( Language and hegemony in Gramsci, Pluto Press) demonstrar como o debate sobre a formação da língua nacional italiana esteve nas origens do conceito histórico estrutural de hegemonia em Gramsci. E, ao reverso do percurso analítico de Perry Anderson, separando consenso e coerção, Gramsci sempre trabalhou um conceito não idealista ou superestrutural de hegemonia. Isto é, hegemonia se faz da fábrica e na cultura. Até o poder coercitivo do Estado depende de sua legitimidade, de ser vitorioso na disputa de valores e narrativas.
Mas hoje é incontornável atualizar historicamente o conceito de hegemonia de Gramsci a partir das mudanças estruturais e de época que a comunicação de massas experimentou nas sociedades contemporâneas. Sem essa atualização, poderá haver uma pragmática comunicativa de esquerda, mas não uma verdadeira construção de hegemonia política. A falta comunicativa denuncia o impasse hegemônico da esquerda brasileira.
Essa atualização do conceito de hegemonia pode ser realizada por meio de três dimensões analíticas: potência comunicativa, potência persuasiva e potência orgânica. Essas três dimensões convergem para formar o poder comunicativo, que está na base da legitimação do poder político do neoliberalismo contemporâneo. É a partir dessas três dimensões que podemos responder por que a narrativa golpista foi vitoriosa e, assim, descortinar os caminhos para derrotá-la.
Vantagem histórico-estrutural
Entende-se como potência comunicativa a capacidade de difusão de uma narrativa, isto é, tanto o seu público potencial como a intensidade dos efeitos desta comunicação. Gramsci estudava este fenômeno nos primórdios da formação dos meios de comunicação de massa, como a formação de um conformismo de massas nas sociedades modernas.
Esta potência comunicativa está intrinsecamente vinculada às épocas das inovações tecnológicas e são orgânicas às épocas de desenvolvimento do capitalismo e da própria cultura liberal. As épocas da imprensa, da radiodifusão, da televisão e sua universalização, da comunicação virtual podem ser pensadas em relação a diferentes potências comunicativas em direção a sociedades cada vez mais mídio-centradas, como formula Venício Lima, nas quais a própria sociabilidade é cada vez mais mediada pelas redes de comunicação. A potência comunicativa nos diz, então, de uma capacidade crescente de saturar todos os poros da sociabilidade com uma narrativa.
Esta potência comunicativa nos Estados neoliberais contemporâneos está, como nunca, fortemente concentrada e organizada em redes. No Brasil, esta rede de comunicação que foi modernizada, concentrada e generalizada em sua capacidade de audiência no período da ditadura militar, passou por um processo de atualização nos dois governos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso e com o processo do golpe passou à condição de programaticamente orgânica ao Estado brasileiro. Mesmo durante os governos Lula e Dilma, ela foi relativamente neutralizada, mas não desconstruída.
A narrativa golpista pôde ser vitoriosa, em primeiro lugar, porque havia uma vantagem histórico-estrutural dos neoliberais frente à esquerda brasileira em relação à potência comunicativa. Ela é histórica porque é exatamente o conceito de cultura do silêncio, tal como vem sendo desenvolvido por Venício Lima e em pesquisas do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras), que fornece a chave da narrativa de longa duração na qual os trabalhadores-cidadãos, os negros-cidadãos, as mulheres cidadãs, os índios e todos os oprimidos tiveram o seu direito à voz pública institucionalmente impedido ou violentamente interditado.
Essa vantagem histórico-estrutural das forças políticas orgânicas ao neoliberalismo realiza, em conjunturas críticas, o que poderíamos chamar de convergência midiática. Isto é, fazem uma verdadeira guerra de saturação, concentrando a agenda, o sentido editorial, uniformizando a linguagem e as dimensões simbólicas, no sentido de obterem o máximo de potência comunicativa. A conjuntura que se criou de 2013 até a efetivação do impeachment da presidenta Dilma foi exatamente marcada por uma fortíssima convergência midiática. No centro desta convergência midiática está a Rede Globo, e no centro de sua potência comunicativa está o Jornal Nacional, com a sua capacidade de falar diariamente para dezenas de milhões de brasileiros.
Potência persuasiva
A segunda razão da vitória da narrativa golpista está em sua maior potência persuasiva. O que se chama aqui de potência persuasiva de uma narrativa diz respeito à credibilidade da fonte emissora, inclui as teorias da recepção, passa pelo teste da imanência e, por fim, da contra-prova do contraditório.
O princípio da credibilidade é básico para definir a potência persuasiva de uma narrativa. Um poder político com máxima potência comunicativa pode se anular, parcial ou completamente, se perder a credibilidade. No caso da narrativa golpista, os meios de comunicação em convergência midiática procuraram reforçar a sua credibilidade através da exacerbação da função de watch dogs (cães de guarda), isto é, extraindo credibilidade do sistema político e do próprio governo Dilma em crise através do tema da corrupção.
Em pesquisas qualitativas já se demonstrou que a base social e eleitoral dos governos Lula e Dilma estava disponível para uma disputa de formação de opinião no sentido dos valores neoliberais. A política de inclusão social massiva, inédita na história brasileira, não formou uma base de cidadania ativa e menos ainda de valores socialistas. Os valores de mercado – do autoempreendimento individual, dos padrões vigentes de consumo, da busca prioritária e competitiva por acesso à riqueza – nunca foram decisivamente confrontados pelos valores da solidariedade, por uma cultura anti-mercantil, por uma cultura dos valores públicos. Em síntese, havia recepção possível e de massas para uma narrativa neoliberal.
A narrativa neoliberal não era também exógena à disputa histórica entre o PT e o PSDB, inscrita nos próprios impasses do Estado brasileiro. Havia corrupção sistêmica, isto é, não ocasional ou localizada, no funcionamento do sistema político. Havia problemas estruturais no equacionamento do desenvolvimento econômico brasileiro que foram se tornando cada vez mais evidentes após a crise financeira internacional de 2008. A narrativa neoliberal não inventou estes impasses: o que ela fez foi incorporar os dados da realidade, em um certo sentido ou direção, é claro, priorizando e editando os fatos, produzindo simulacros e inversões. Em síntese: ela possuía um certo sentido de imanência que a tornava verossímil.
Por fim, e de modo decisivo, a narrativa neoliberal não encontrou uma narrativa que se opusesse claramente a ela. Pelo contrário, após a polarização em alta voltagem das eleições presidenciais de 2014, o segundo governo Dilma parecia confirmá-la, seja na adoção de uma política econômica de sentido neoliberal, seja legitimando as ações da Lava Jato sem restrições. Em síntese: a narrativa neoliberal pôde crescer e ganhar corpo na ausência de um contraponto e, mais ainda, por desorganizar a identidade política do adversário a ser vencido.
Podemos, assim, concluir parcialmente que a narrativa neoliberal dispunha de uma forte vantagem histórico-estrutural no campo da potência comunicativa e pôde somar a isso uma forte potência persuasiva.
Comunicação orgânica e Estado neoliberal
A terceira razão da vitória da narrativa neoliberal foi a sua extraordinária potência orgânica. É através do conceito de hegemonia que Gramsci vincula linguagem e construção de poder político, formulando o conceito de intelectuais orgânicos, isto é, que formam a práxis da luta entre dominação e emancipação. A questão é: que mudanças nas relações orgânicas entre política e linguagem trouxe o processo contemporâneo de construção dos Estados neoliberais?
Assim como os Estados liberais democráticos do pós-guerra até o fim dos anos setenta construíram um aparato de comunicações empresarial baseado no livre mercado de ideias, uma certa legitimidade da regulação anti-monopólica e de controle democrático, uma teoria do pluralismo e de uma democracia das elites, a formação dos Estados neoliberais implicou nas décadas recentes em mudanças histórico-estruturais nesta área da comunicação pública.
O neoliberalismo concentrou a propriedade midiática, vinculando-a organicamente em rede aos centros de poder financeiro mundial, incentivou a deslegitimação de qualquer regulação democrática como sendo um atentado à liberdade de expressão, passou de um pluralismo limitado a uma política de execração das culturas de esquerda e, por fim, de uma democracia elitista para regimes baseados em legitimações de lideranças carismáticas, operando cada vez mais à margem do princípio da soberania popular.
No Brasil, como já bem analisou Venício Lima, a democratização do país após o fim da ditadura militar encontrou um obstáculo constituinte à formação de um sistema público de comunicação, a uma regulação democrática e à formação dos mínimos padrões de uma opinião pública democrática. Nos anos noventa, como já analisamos, a estrutura oligopólica empresarial dos meios de comunicação pôde se programatizar no sentido neoliberal, isto é, constituir sua rede de intelectuais orgânicos, inclusive com novas publicações como o principal jornal empresarial do país, Valor Econômico. Por quatro vezes em eleições presidenciais, essa vantagem histórico-estrutural da potência comunicativa dos neoliberais pôde ser derrotada, sempre em segundo turno, em ambientes de polarização política e social, nos quais as forças de esquerda podiam fazer convergir sua força eleitoral, com coalizões e importante acesso nos meses decisivos de decisão do voto ao tempo eleitoral gratuito, ampliado pelo regime de coligações.
No período que vai de 2013 a 2016, dos primórdios da campanha de Aécio Neves ao impeachment da presidenta Dilma, a narrativa neoliberal se fez orgânica: formou a maior coalizão de partidos desde o fim da ditadura militar, coesionou todas as classes empresariais internacionais e nacionais, atraiu para si vastas camadas médias e até entre os mais pauperizados, em aliança com as igrejas evangélicas conservadoras. Em síntese: ela formou um novo bloco histórico para formar um Estado neoliberal no Brasil.
Em suma: a narrativa neoliberal pôde vencer porque fez convergir potência comunicativa, potência persuasiva e potência orgânica.
Porém, no momento de sua máxima força, durante o impeachment da presidenta Dilma, esta narrativa conseguiu legitimar o impeachment (em torno de 60 % dos brasileiros), mas não a solução da posse de Temer (em torno de 10% dos brasileiros). É uma indicação de seu poder destrutivo e de sua fraqueza em construir legitimidade democrática. Isso ficará mais evidente no próximo artigo, em que analisaremos a crise atual da narrativa neoliberal e a sua força inercial, bem como os seus esforços de mudança e relegitimação da narrativa golpista.
* Eliara Santana é doutoranda em análise do discurso PUC Minas /CAPES
* Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG e coordenador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras)
No artigo anterior, analisou-se como a narrativa golpista – seus temas centrais, seus tempos, sua construção simbólica, suas articulações - conseguiu as condições de ser vitoriosa. Neste artigo, a pergunta é: por que a narrativa golpista pôde ser vitoriosa contra a esquerda brasileira?
Certamente a práxis política comunicativa da esquerda brasileira carece de fundamentos conceituais que, ao mesmo tempo, estejam em sintonia com a sua identidade histórica e seu programa, com sua estratégia de poder e permitam diagnosticar a dinâmica do processo em curso. Neste sentido, a práxis política comunicativa dos neoliberais está bem mais avançada na articulação de sua identidade, sua narrativa e sua estratégia de poder. Aliás, pode-se dizer mesmo que aí reside o centro da capacidade de legitimar sua política.
É a partir do conceito de hegemonia de Gramsci que devemos trabalhar. Com um diálogo forte com a tradição do humanismo cívico, que não separava política de linguagem, retórica e poder, a partir de sua própria experiência no L´Uordine Nuovo, com o processo prático de construção da hegemonia e o papel da imprensa como organizador coletivo de Lenin, o conceito de hegemonia solda linguagem e política. É mérito de Peter I ves ( Language and hegemony in Gramsci, Pluto Press) demonstrar como o debate sobre a formação da língua nacional italiana esteve nas origens do conceito histórico estrutural de hegemonia em Gramsci. E, ao reverso do percurso analítico de Perry Anderson, separando consenso e coerção, Gramsci sempre trabalhou um conceito não idealista ou superestrutural de hegemonia. Isto é, hegemonia se faz da fábrica e na cultura. Até o poder coercitivo do Estado depende de sua legitimidade, de ser vitorioso na disputa de valores e narrativas.
Mas hoje é incontornável atualizar historicamente o conceito de hegemonia de Gramsci a partir das mudanças estruturais e de época que a comunicação de massas experimentou nas sociedades contemporâneas. Sem essa atualização, poderá haver uma pragmática comunicativa de esquerda, mas não uma verdadeira construção de hegemonia política. A falta comunicativa denuncia o impasse hegemônico da esquerda brasileira.
Essa atualização do conceito de hegemonia pode ser realizada por meio de três dimensões analíticas: potência comunicativa, potência persuasiva e potência orgânica. Essas três dimensões convergem para formar o poder comunicativo, que está na base da legitimação do poder político do neoliberalismo contemporâneo. É a partir dessas três dimensões que podemos responder por que a narrativa golpista foi vitoriosa e, assim, descortinar os caminhos para derrotá-la.
Vantagem histórico-estrutural
Entende-se como potência comunicativa a capacidade de difusão de uma narrativa, isto é, tanto o seu público potencial como a intensidade dos efeitos desta comunicação. Gramsci estudava este fenômeno nos primórdios da formação dos meios de comunicação de massa, como a formação de um conformismo de massas nas sociedades modernas.
Esta potência comunicativa está intrinsecamente vinculada às épocas das inovações tecnológicas e são orgânicas às épocas de desenvolvimento do capitalismo e da própria cultura liberal. As épocas da imprensa, da radiodifusão, da televisão e sua universalização, da comunicação virtual podem ser pensadas em relação a diferentes potências comunicativas em direção a sociedades cada vez mais mídio-centradas, como formula Venício Lima, nas quais a própria sociabilidade é cada vez mais mediada pelas redes de comunicação. A potência comunicativa nos diz, então, de uma capacidade crescente de saturar todos os poros da sociabilidade com uma narrativa.
Esta potência comunicativa nos Estados neoliberais contemporâneos está, como nunca, fortemente concentrada e organizada em redes. No Brasil, esta rede de comunicação que foi modernizada, concentrada e generalizada em sua capacidade de audiência no período da ditadura militar, passou por um processo de atualização nos dois governos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso e com o processo do golpe passou à condição de programaticamente orgânica ao Estado brasileiro. Mesmo durante os governos Lula e Dilma, ela foi relativamente neutralizada, mas não desconstruída.
A narrativa golpista pôde ser vitoriosa, em primeiro lugar, porque havia uma vantagem histórico-estrutural dos neoliberais frente à esquerda brasileira em relação à potência comunicativa. Ela é histórica porque é exatamente o conceito de cultura do silêncio, tal como vem sendo desenvolvido por Venício Lima e em pesquisas do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras), que fornece a chave da narrativa de longa duração na qual os trabalhadores-cidadãos, os negros-cidadãos, as mulheres cidadãs, os índios e todos os oprimidos tiveram o seu direito à voz pública institucionalmente impedido ou violentamente interditado.
Essa vantagem histórico-estrutural das forças políticas orgânicas ao neoliberalismo realiza, em conjunturas críticas, o que poderíamos chamar de convergência midiática. Isto é, fazem uma verdadeira guerra de saturação, concentrando a agenda, o sentido editorial, uniformizando a linguagem e as dimensões simbólicas, no sentido de obterem o máximo de potência comunicativa. A conjuntura que se criou de 2013 até a efetivação do impeachment da presidenta Dilma foi exatamente marcada por uma fortíssima convergência midiática. No centro desta convergência midiática está a Rede Globo, e no centro de sua potência comunicativa está o Jornal Nacional, com a sua capacidade de falar diariamente para dezenas de milhões de brasileiros.
Potência persuasiva
A segunda razão da vitória da narrativa golpista está em sua maior potência persuasiva. O que se chama aqui de potência persuasiva de uma narrativa diz respeito à credibilidade da fonte emissora, inclui as teorias da recepção, passa pelo teste da imanência e, por fim, da contra-prova do contraditório.
O princípio da credibilidade é básico para definir a potência persuasiva de uma narrativa. Um poder político com máxima potência comunicativa pode se anular, parcial ou completamente, se perder a credibilidade. No caso da narrativa golpista, os meios de comunicação em convergência midiática procuraram reforçar a sua credibilidade através da exacerbação da função de watch dogs (cães de guarda), isto é, extraindo credibilidade do sistema político e do próprio governo Dilma em crise através do tema da corrupção.
Em pesquisas qualitativas já se demonstrou que a base social e eleitoral dos governos Lula e Dilma estava disponível para uma disputa de formação de opinião no sentido dos valores neoliberais. A política de inclusão social massiva, inédita na história brasileira, não formou uma base de cidadania ativa e menos ainda de valores socialistas. Os valores de mercado – do autoempreendimento individual, dos padrões vigentes de consumo, da busca prioritária e competitiva por acesso à riqueza – nunca foram decisivamente confrontados pelos valores da solidariedade, por uma cultura anti-mercantil, por uma cultura dos valores públicos. Em síntese, havia recepção possível e de massas para uma narrativa neoliberal.
A narrativa neoliberal não era também exógena à disputa histórica entre o PT e o PSDB, inscrita nos próprios impasses do Estado brasileiro. Havia corrupção sistêmica, isto é, não ocasional ou localizada, no funcionamento do sistema político. Havia problemas estruturais no equacionamento do desenvolvimento econômico brasileiro que foram se tornando cada vez mais evidentes após a crise financeira internacional de 2008. A narrativa neoliberal não inventou estes impasses: o que ela fez foi incorporar os dados da realidade, em um certo sentido ou direção, é claro, priorizando e editando os fatos, produzindo simulacros e inversões. Em síntese: ela possuía um certo sentido de imanência que a tornava verossímil.
Por fim, e de modo decisivo, a narrativa neoliberal não encontrou uma narrativa que se opusesse claramente a ela. Pelo contrário, após a polarização em alta voltagem das eleições presidenciais de 2014, o segundo governo Dilma parecia confirmá-la, seja na adoção de uma política econômica de sentido neoliberal, seja legitimando as ações da Lava Jato sem restrições. Em síntese: a narrativa neoliberal pôde crescer e ganhar corpo na ausência de um contraponto e, mais ainda, por desorganizar a identidade política do adversário a ser vencido.
Podemos, assim, concluir parcialmente que a narrativa neoliberal dispunha de uma forte vantagem histórico-estrutural no campo da potência comunicativa e pôde somar a isso uma forte potência persuasiva.
Comunicação orgânica e Estado neoliberal
A terceira razão da vitória da narrativa neoliberal foi a sua extraordinária potência orgânica. É através do conceito de hegemonia que Gramsci vincula linguagem e construção de poder político, formulando o conceito de intelectuais orgânicos, isto é, que formam a práxis da luta entre dominação e emancipação. A questão é: que mudanças nas relações orgânicas entre política e linguagem trouxe o processo contemporâneo de construção dos Estados neoliberais?
Assim como os Estados liberais democráticos do pós-guerra até o fim dos anos setenta construíram um aparato de comunicações empresarial baseado no livre mercado de ideias, uma certa legitimidade da regulação anti-monopólica e de controle democrático, uma teoria do pluralismo e de uma democracia das elites, a formação dos Estados neoliberais implicou nas décadas recentes em mudanças histórico-estruturais nesta área da comunicação pública.
O neoliberalismo concentrou a propriedade midiática, vinculando-a organicamente em rede aos centros de poder financeiro mundial, incentivou a deslegitimação de qualquer regulação democrática como sendo um atentado à liberdade de expressão, passou de um pluralismo limitado a uma política de execração das culturas de esquerda e, por fim, de uma democracia elitista para regimes baseados em legitimações de lideranças carismáticas, operando cada vez mais à margem do princípio da soberania popular.
No Brasil, como já bem analisou Venício Lima, a democratização do país após o fim da ditadura militar encontrou um obstáculo constituinte à formação de um sistema público de comunicação, a uma regulação democrática e à formação dos mínimos padrões de uma opinião pública democrática. Nos anos noventa, como já analisamos, a estrutura oligopólica empresarial dos meios de comunicação pôde se programatizar no sentido neoliberal, isto é, constituir sua rede de intelectuais orgânicos, inclusive com novas publicações como o principal jornal empresarial do país, Valor Econômico. Por quatro vezes em eleições presidenciais, essa vantagem histórico-estrutural da potência comunicativa dos neoliberais pôde ser derrotada, sempre em segundo turno, em ambientes de polarização política e social, nos quais as forças de esquerda podiam fazer convergir sua força eleitoral, com coalizões e importante acesso nos meses decisivos de decisão do voto ao tempo eleitoral gratuito, ampliado pelo regime de coligações.
No período que vai de 2013 a 2016, dos primórdios da campanha de Aécio Neves ao impeachment da presidenta Dilma, a narrativa neoliberal se fez orgânica: formou a maior coalizão de partidos desde o fim da ditadura militar, coesionou todas as classes empresariais internacionais e nacionais, atraiu para si vastas camadas médias e até entre os mais pauperizados, em aliança com as igrejas evangélicas conservadoras. Em síntese: ela formou um novo bloco histórico para formar um Estado neoliberal no Brasil.
Em suma: a narrativa neoliberal pôde vencer porque fez convergir potência comunicativa, potência persuasiva e potência orgânica.
Porém, no momento de sua máxima força, durante o impeachment da presidenta Dilma, esta narrativa conseguiu legitimar o impeachment (em torno de 60 % dos brasileiros), mas não a solução da posse de Temer (em torno de 10% dos brasileiros). É uma indicação de seu poder destrutivo e de sua fraqueza em construir legitimidade democrática. Isso ficará mais evidente no próximo artigo, em que analisaremos a crise atual da narrativa neoliberal e a sua força inercial, bem como os seus esforços de mudança e relegitimação da narrativa golpista.
* Eliara Santana é doutoranda em análise do discurso PUC Minas /CAPES
* Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG e coordenador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras)
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