Às vésperas de deixar a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro Gilmar Mendes concedeu várias entrevistas àquela que a advogada Rosângela Moro chama de “imprensa amiga”, nas quais foi indagado sobre a eventual inelegibilidade do ex-presidente Lula em 2018, devido a estar incurso na Lei da Ficha Limpa (lei complementar 135, de 04/06/2010). Em todas as ocasiões, o notório magistrado afirmou que devido à condenação do líder nas pesquisas em segunda instância, ou seja, por um órgão colegiado (a turma do Tribunal Regional Federal-4, de Porto Alegre), tal candidatura torna-se impossível, e a Justiça Eleitoral acatará pedido de impugnação, se houver.
Ao repórter Rafael Moraes Moura, do Estadão, em entrevista publicada no sábado, dia 3 de fevereiro, Gilmar pontificou que “na esfera eleitoral, não há dúvida de que candidato condenado em segundo grau naqueles crimes estabelecidos não tem elegibilidade”.
Os crimes estabelecidos pela Lei da Ficha Limpa são diversos, mas condenam explicitamente, no seu item d) “os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes”.
Foi exatamente este o caso do prefeito de Taubaté, no interior de São Paulo, José Bernardo Ortiz Júnior, cassado por “abuso do poder econômico e político”, em três (não apenas em primeira e segunda, como exige a Lei para efeito de inelegibilidade, mas também em terceira, o Tribunal Superior Eleitoral, com voto derrotado do próprio Gilmar Mendes, seu então presidente!) instâncias. O prefeito chegou a ser afastado do cargo, dando lugar ao presidente da Câmara, depois de ter disputado e vencido sua reeleição, em 2016, mediante efeito suspensivo concedido pelo Judiciário.
Ou seja: assim como Lula, mas condenado num grau a mais, o prefeito tucano (por acaso Ortiz Júnior é membro do PSDB), aquele réu pode registrar sua candidatura a reeleição, fazer plenamente sua campanha (milionária, de novo), elegeu-se, foi diplomado, empossado está exercendo o cargo, normalmente. Quem lhe deu esse direito foi exatamente Gilmar Mendes, redator do acórdão do segundo julgamento no TSE, onde seu voto mais pareceu um discurso de advogado de defesa. Ele conseguiu convencer seu recém-empossado colega Napoleão Maia, de que o cheque de R$ 34 mil reais encontrado na conta do marqueteiro da campanha, e emitido pelo lobista que o denunciaria, não comprovava o uso de dinheiro da propina na campanha! Disse também o zeloso ministro que uma só testemunha de acusação era muito pouco – note-se que contra Lula, entre 73 testemunhas ouvidas, apenas o sr. Léo Pinheiro (ex-presidente da construtora OAS) afirmou que Lula seria dono do tal “triplex” no Guarujá. E questionado pela defesa de Lula, o juiz Sérgio Moro foi taxativo ao negar ter dito, na sentença ou em qualquer lugar, que o réu Lula tenha se beneficiado por qualquer recurso desta construtora obtido em contratos com a Petrobrás. Ou seja: existiu apenas UMA testemunha, como no caso do prefeito tucano, amigo e protegido de Geraldo Alckmin.
Antecedentes e jurisprudência
Gilmar Mendes e seus colegas do TSE poderão tergiversar, alegando que os casos são diferentes, mas se tiverem um mínimo de coerência, jamais cassarão o direito de Lula ser candidato a presidente neste ano.
O caso de Taubaté é diferente no mérito: o prefeito da cidade foi cassado em primeira, em segunda e em terceira instâncias sob a acusação feita pelo Ministério Público de “abuso de poder político e econômico”. Ele teria influenciado seu pai, o também ex-prefeito José Bernardo Ortiz, então presidente da FDE – Fundação para o Desenvolvimento da Educação, do Governo Alckmin, a fraudar licitação para compra de mochilas escolares. Segundo denúncia de lobista, Ortiz Júnior receberia 5% do valor do contrato, equivalentes a 8 milhões de reais que teria usado em sua campanha pela Prefeitura, em 2012. Um cheque de R$ 34 mil reais, dado pelo lobista ao candidato a prefeito, foi encontrado posteriormente em conta bancária do marqueteiro da sua campanha, o que comprovou que o dinheiro da propina foi usado como caixa-2. Caso típico da Lei da Ficha Limpa, que ao referir-se a Lula, Gilmar Mendes considera inquestionável.
A segunda instância, ou seja, o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, comprovou a cassação decidida pela então juíza eleitoral da 141ª Zona, de Taubaté, dra. Sueli Zeraik de Oliveira Armani. A primeira instância levou oito meses para julgar o processo. O recurso ao TRE teve pelo menos cinco adiamentos da votação, com pedidos de vista, ausências de juízes e outras protelações. Finalmente, em novembro de 2014 ocorreu a cassação do prefeito e do vice, Edson Oliveira (PSD), com suspensão dos direitos políticos de ambos por oito anos. Mas a defesa imediatamente entrou com recursos e o caso passou a tramitar em Brasília.
O mais estranho neste caso do tucano de Taubaté é que ele foi julgado duas vezes pelo mesmo crime, no TSE. Em 1 de agosto de 2016, teve a sua condenação confirmada por quatro votos a três, depois de um longo demorado de vista feito pelo ministro Luiz Fux. Este, mais Henrique Alves e Gilmar Mendes votaram pela reforma da sentença condenatório do TRE-SP, mas foram derrotados pelo relator, Herman Benjamin (em belo voto apontando as provas do uso de dinheiro da Educação paulista na campanha do PSDB), Luciana Lóssio, Rosa Weber e Maria Theresa.
Os advogados da defesa não se conformaram com a decisão em terceira instância, mas ao invés de irem ao Supremo Tribunal Federal, entraram com novos embargos junto ao próprio TSE, que fez então um segundo julgamento. Entre a primeira decisão, em agosto, e a segunda sessão, em 25 de outubro, a ministra Maria Theresa aposentou-se, e assumiu o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que votou contra o relator e inverteu o placar. Foram 4 a 3, agora pela aceitação do recurso. Com isso, o prefeito pode retornar ao cargo, do qual ficara afastado por poucas semanas, sendo substituído pelo presidente da Câmara. Como foi reeleito em 2016, disputando sub judice, Ortiz Júnior está cumprindo seu mandato normalmente, em Taubaté
O acórdão, redigido por Gilmar Mendes, foi publicado em 25 de outubro de 2016, e não fala em segundo julgamento, com revogação da sentença anterior pelo TSE, mas em “embargos de declaração com efeito modificativos”, o que dá na mesma: houve uma sentença condenatório, em agosto, a aposentadoria de uma juíza, a posse de um substituto e um novo julgamento em outubro, que inverteu o placar sobre o mesmo relatório. Neste caso envolvendo um pupilo do PSDB, a Lei da Ficha Limpa não valeu para nada.
* Antonio Barbosa Filho é jornalista/blogueiro, coordenador-regional do Centro Barão de Itararé no Vale do Paraíba-SP.
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