Por Tarso Genro, no site Sul-21:
A busca de analogias históricas, para cortejar a coerência no presente, sempre me seduziu. A história nem sempre se repete e – quando se repete – nem sempre o faz como farsa. Ou mesmo como tragédia. Pode se dizer que – dentro de um mesmo ciclo da história- esta repetição pode ser provável. Quando os acontecimentos marcam o “fim de uma época”, porém, as formas de sociabilidade se revolucionam, face as mudanças tecnológicas profundas, na produção, nas comunicações e nos grandes movimentos globais do capital, mudando os padrões da política e das lutas em seu entorno. É a época em que a história quase respira, ilusoriamente, livre do passado.
Neste novo contexto nacional, todavia, nossas possibilidades de escolha se reduzem. Seja para optarmos por uma farsa, seja para escolher o caminho da tragédia, pois a criminalização universal da política já abriu um perigoso ciclo de politização da criminalidade. No Brasil, este ciclo vai ser cada vez mais definido pela presença das Forças Armadas nas áreas controladas pelo crime, num brutal desvio das suas funções originárias, de controle soberano do território, transladadas para funções de polícia criminal. De cara com um povo acuado pelo domínio dos criminosos, que fazem a gestão destas áreas de conflito, as FFAA estarão cada vez mais na “política” real da vida real, pois esta vai passar cada vez mais pelos seus confrontos armados com o crime politizado . E assim, cada vez menos pelos partidos e pelas instituições de representação popular.
Este “respirar” da História, normalmente, é noturno e silencioso. Quase imperceptível a olhos nus, mas rigorosamente orientado por forças novas, de fora da política e da economia imediata. Forças que desabam sobre nós como um novo “espírito do tempo” e conduzem a novos comportamentos. Destroem alianças, aviltam instituições do Estado, matam paradigmas e vão se constituindo – paulatinamente – num novo ininteligível, que custa a nascer. Recordo sempre, inevitavelmente, duas sentenças literárias a que sempre recorro, nos momentos políticos que julgo mais dramáticos. Não canso de relembrar algo como (Steinbeck) “as terras do oeste se agitavam como cavalos antes do temporal”, e (TS Elliot), “o mundo vai terminar com um gemido, não com um estrondo.” Não sei se as frases são bem assim, mas é assim que delas me lembro, pois o respirar pausado deste tempo pode exalar o hálito fétido do fascismo ou o perfume da democracia, revolucionada na essência material da soberania popular.
De dentro do cárcere da prisão de Pollsmor, após um período em que ele mesmo qualificou de “esplêndido isolamento” – num hospital onde fora internado para uma cirurgia – Nelson Mandela chega à conclusão de que era a hora de começar a negociar. E o faz a partir da sua autoridade política, sua enorme capacidade de liderança, alinhada por um forte apoio internacional. Primeiro, com um recalcitrante primeiro ministro, direitista radical, P.W. Botha, depois com seu sucessor, F.W. de Klerk, a quem Mandela atribuía – não sem contestações dentro da direção do seu Movimento (CNA) – ser uma pessoa íntegra, “com quem podemos negociar”, dizia. Deste processo negocial, sem que o CNA renunciasse a luta armada contra o regime fascista do aphartheid, são postos em liberdade, em 15 de outubro de 1989, dirigentes importantes do Congresso Nacional Africano, tais como Walter Sisulu, Oscar Mpetha e Raimunnd Mhlaba, entre outros, alguns deles companheiros de prisão de Mandela.
Qual a analogia histórica possível? O tecido político democrático, na África do Sul, estava em processo de composição, emergente que era das lutas contra o estado racista, a dominação branca, a exploração capitalista nas suas formas mais brutais. E esta situação gerava interlocutores em ambos os campos, os que lutavam pela democracia e pela igualdade e os que queriam conservar o país à margem da comunidade internacional, baseado na violência e na sujeição dos humanos negros aos humanos brancos. Mandela percebeu -inclusive a partir da crise do sistema soviético – que o que se tratava ali na África do Sul, na verdade não era da Revolução Socialista em andamento, mas de uma Revolução Democrática, que fundava – como dizemos os advogados – suas fontes materiais, na mobilização da comunidade negra oprimida, para organizar um país que não basearia mais sua existência na exceção permanente.
O elevado grau de politização do processo histórico gerava, portanto, interlocutores para resolver a crise. Suas vozes saiam dos cárceres e se colavam na consciência das massas, exauridas pela violência sem lei e encontravam, do outro lado, interlocutores políticos no estado racista, dono da exceção permanente. A Revolução Democrática, portanto, emergia de um tecido político em crescimento e ela constituía os campos em confronto e também os espaços negociais abertos pela luta popular. Luta pela igualdade, que, no momento, significava assentar na nova ordem, que todos seriam iguais perante a lei, que os novos direitos de uma sociedade sem apartheid seriam invioláveis, que a cor da pele não diferenciaria mais, formalmente, os seres humanos, então governados segundo os ditames da república amparada na soberania popular.
Prossigo a analogia, já pela contradição. As classes dominantes brasileiras escravocratas, agora escravas do liberalismo rentista, ao depor a presidenta Dilma, depositaram no partido da mídia oligopólica, não a sua representação, mas a sua pobreza moral e política. O objetivo foi promover as anti-reformas exigidas pelo capital financeiro, que precisa rebaixar a remuneração do trabalho, para acompanhar os novo padrões globais de acumulação. A nova utopia da nossa direita escravocrata rezou que os trabalhadores podem ser patrões de si mesmos, sem capital e sem empresas, para que assim sejam eles mais maleáveis, mais exploráveis e mais descartáveis. Na África do Sul, a democracia emergiu com o novo Direito, contra o não-Direito, e aqui a crise da democracia se processa pelo não-Direito, como exceção em sequência, de forma quase silenciosa e noturna, passo a passo, em cujo limite pode estar a ditadura sem freios, num futuro incerto.
A interlocução entre os campos em confronto, no Brasil, tem escassas possibilidades de vingar, pois os grupos políticos golpistas, que se mancomunaram com a mídia oligopólica e a ela se subordinaram, ao extinguirem a esfera da política – hoje mecanicamente identificada com a corrupção – extinguiram-se também a si mesmos, como alternativa de poder, tirando de cena seus porta-vozes históricos. Estes, hoje, apenas balbuciam perante o oligopólio da mídia, quando devidamente solicitados, algumas palavras de suplica, para não serem arrastados -justa ou injustamente- pelas torrentes de processos judiciais legais ou ilegais, que substituem o fazer político democrático. Só não conseguiram eliminar a Lula, abrigado na memória do povo trabalhador. Este povo, no silêncio das suas noites inseguras deve pensar que por algum motivo eles querem a morte física ou política do metalúrgico do Bolsa-Família, do Prouni, das universidades públicas abertas aos pobres, das políticas de cotas, dos vigorosos aumentos reais do salário-mínimo, do Minha Casa Minha Vida. Um pouco mais de pão e de vida.
Os procuradores do fascismo, na época de Mussolini, foram muito mais sinceros e honestos que os nossos atuais de Curitiba, que se empenham em eliminar Lula da política nacional. Durante o julgamento de Gramsci, acusado de atentar contra o Estado Fascista recentemente instalado, eles fizeram sinceramente um libelo modelar de estupidez humana e jurídica, com a seguinte frase final: “devemos fazer este cérebro parar de pensar por vinte anos!” Quando os epígonos da direita começam a se assustar com a possibilidade da desobediência civil, não é propriamente a ela que estão se reportando, pois só os ignorantes não sabem que ela se assemelha à resistência não violenta, contra a violência do Estado. O que eles temem é não terem voz para negociar com um povo rebelado pela fome e pelo desemprego, que sempre terá Lula na memória.
As lideranças neoliberais, conservadoras ou simplesmente reacionárias do país, não têm projeto de país nem respeito à Constituição democrática, que concordaram em pactuar em 88. Por isso é possível dizer que hoje, Mandela e Gramsci conversam com Lula, através dos milhões de fios invisíveis da História, para lhe dizer: resista Presidente Lula, esta memória, forjada na cabeça do nosso povo pobre, sacrificado no altar do rentismo, é que dá hoje todo o sentido a tua, e à nossa vida.”
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
A busca de analogias históricas, para cortejar a coerência no presente, sempre me seduziu. A história nem sempre se repete e – quando se repete – nem sempre o faz como farsa. Ou mesmo como tragédia. Pode se dizer que – dentro de um mesmo ciclo da história- esta repetição pode ser provável. Quando os acontecimentos marcam o “fim de uma época”, porém, as formas de sociabilidade se revolucionam, face as mudanças tecnológicas profundas, na produção, nas comunicações e nos grandes movimentos globais do capital, mudando os padrões da política e das lutas em seu entorno. É a época em que a história quase respira, ilusoriamente, livre do passado.
Neste novo contexto nacional, todavia, nossas possibilidades de escolha se reduzem. Seja para optarmos por uma farsa, seja para escolher o caminho da tragédia, pois a criminalização universal da política já abriu um perigoso ciclo de politização da criminalidade. No Brasil, este ciclo vai ser cada vez mais definido pela presença das Forças Armadas nas áreas controladas pelo crime, num brutal desvio das suas funções originárias, de controle soberano do território, transladadas para funções de polícia criminal. De cara com um povo acuado pelo domínio dos criminosos, que fazem a gestão destas áreas de conflito, as FFAA estarão cada vez mais na “política” real da vida real, pois esta vai passar cada vez mais pelos seus confrontos armados com o crime politizado . E assim, cada vez menos pelos partidos e pelas instituições de representação popular.
Este “respirar” da História, normalmente, é noturno e silencioso. Quase imperceptível a olhos nus, mas rigorosamente orientado por forças novas, de fora da política e da economia imediata. Forças que desabam sobre nós como um novo “espírito do tempo” e conduzem a novos comportamentos. Destroem alianças, aviltam instituições do Estado, matam paradigmas e vão se constituindo – paulatinamente – num novo ininteligível, que custa a nascer. Recordo sempre, inevitavelmente, duas sentenças literárias a que sempre recorro, nos momentos políticos que julgo mais dramáticos. Não canso de relembrar algo como (Steinbeck) “as terras do oeste se agitavam como cavalos antes do temporal”, e (TS Elliot), “o mundo vai terminar com um gemido, não com um estrondo.” Não sei se as frases são bem assim, mas é assim que delas me lembro, pois o respirar pausado deste tempo pode exalar o hálito fétido do fascismo ou o perfume da democracia, revolucionada na essência material da soberania popular.
De dentro do cárcere da prisão de Pollsmor, após um período em que ele mesmo qualificou de “esplêndido isolamento” – num hospital onde fora internado para uma cirurgia – Nelson Mandela chega à conclusão de que era a hora de começar a negociar. E o faz a partir da sua autoridade política, sua enorme capacidade de liderança, alinhada por um forte apoio internacional. Primeiro, com um recalcitrante primeiro ministro, direitista radical, P.W. Botha, depois com seu sucessor, F.W. de Klerk, a quem Mandela atribuía – não sem contestações dentro da direção do seu Movimento (CNA) – ser uma pessoa íntegra, “com quem podemos negociar”, dizia. Deste processo negocial, sem que o CNA renunciasse a luta armada contra o regime fascista do aphartheid, são postos em liberdade, em 15 de outubro de 1989, dirigentes importantes do Congresso Nacional Africano, tais como Walter Sisulu, Oscar Mpetha e Raimunnd Mhlaba, entre outros, alguns deles companheiros de prisão de Mandela.
Qual a analogia histórica possível? O tecido político democrático, na África do Sul, estava em processo de composição, emergente que era das lutas contra o estado racista, a dominação branca, a exploração capitalista nas suas formas mais brutais. E esta situação gerava interlocutores em ambos os campos, os que lutavam pela democracia e pela igualdade e os que queriam conservar o país à margem da comunidade internacional, baseado na violência e na sujeição dos humanos negros aos humanos brancos. Mandela percebeu -inclusive a partir da crise do sistema soviético – que o que se tratava ali na África do Sul, na verdade não era da Revolução Socialista em andamento, mas de uma Revolução Democrática, que fundava – como dizemos os advogados – suas fontes materiais, na mobilização da comunidade negra oprimida, para organizar um país que não basearia mais sua existência na exceção permanente.
O elevado grau de politização do processo histórico gerava, portanto, interlocutores para resolver a crise. Suas vozes saiam dos cárceres e se colavam na consciência das massas, exauridas pela violência sem lei e encontravam, do outro lado, interlocutores políticos no estado racista, dono da exceção permanente. A Revolução Democrática, portanto, emergia de um tecido político em crescimento e ela constituía os campos em confronto e também os espaços negociais abertos pela luta popular. Luta pela igualdade, que, no momento, significava assentar na nova ordem, que todos seriam iguais perante a lei, que os novos direitos de uma sociedade sem apartheid seriam invioláveis, que a cor da pele não diferenciaria mais, formalmente, os seres humanos, então governados segundo os ditames da república amparada na soberania popular.
Prossigo a analogia, já pela contradição. As classes dominantes brasileiras escravocratas, agora escravas do liberalismo rentista, ao depor a presidenta Dilma, depositaram no partido da mídia oligopólica, não a sua representação, mas a sua pobreza moral e política. O objetivo foi promover as anti-reformas exigidas pelo capital financeiro, que precisa rebaixar a remuneração do trabalho, para acompanhar os novo padrões globais de acumulação. A nova utopia da nossa direita escravocrata rezou que os trabalhadores podem ser patrões de si mesmos, sem capital e sem empresas, para que assim sejam eles mais maleáveis, mais exploráveis e mais descartáveis. Na África do Sul, a democracia emergiu com o novo Direito, contra o não-Direito, e aqui a crise da democracia se processa pelo não-Direito, como exceção em sequência, de forma quase silenciosa e noturna, passo a passo, em cujo limite pode estar a ditadura sem freios, num futuro incerto.
A interlocução entre os campos em confronto, no Brasil, tem escassas possibilidades de vingar, pois os grupos políticos golpistas, que se mancomunaram com a mídia oligopólica e a ela se subordinaram, ao extinguirem a esfera da política – hoje mecanicamente identificada com a corrupção – extinguiram-se também a si mesmos, como alternativa de poder, tirando de cena seus porta-vozes históricos. Estes, hoje, apenas balbuciam perante o oligopólio da mídia, quando devidamente solicitados, algumas palavras de suplica, para não serem arrastados -justa ou injustamente- pelas torrentes de processos judiciais legais ou ilegais, que substituem o fazer político democrático. Só não conseguiram eliminar a Lula, abrigado na memória do povo trabalhador. Este povo, no silêncio das suas noites inseguras deve pensar que por algum motivo eles querem a morte física ou política do metalúrgico do Bolsa-Família, do Prouni, das universidades públicas abertas aos pobres, das políticas de cotas, dos vigorosos aumentos reais do salário-mínimo, do Minha Casa Minha Vida. Um pouco mais de pão e de vida.
Os procuradores do fascismo, na época de Mussolini, foram muito mais sinceros e honestos que os nossos atuais de Curitiba, que se empenham em eliminar Lula da política nacional. Durante o julgamento de Gramsci, acusado de atentar contra o Estado Fascista recentemente instalado, eles fizeram sinceramente um libelo modelar de estupidez humana e jurídica, com a seguinte frase final: “devemos fazer este cérebro parar de pensar por vinte anos!” Quando os epígonos da direita começam a se assustar com a possibilidade da desobediência civil, não é propriamente a ela que estão se reportando, pois só os ignorantes não sabem que ela se assemelha à resistência não violenta, contra a violência do Estado. O que eles temem é não terem voz para negociar com um povo rebelado pela fome e pelo desemprego, que sempre terá Lula na memória.
As lideranças neoliberais, conservadoras ou simplesmente reacionárias do país, não têm projeto de país nem respeito à Constituição democrática, que concordaram em pactuar em 88. Por isso é possível dizer que hoje, Mandela e Gramsci conversam com Lula, através dos milhões de fios invisíveis da História, para lhe dizer: resista Presidente Lula, esta memória, forjada na cabeça do nosso povo pobre, sacrificado no altar do rentismo, é que dá hoje todo o sentido a tua, e à nossa vida.”
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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