Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
A sociedade brasileira tem motivos para sentir medo da própria imagem refletida num cotidiano de sobressalto, sangue e dor.
O assassinato frio, cruel e repugnante da vereadora do PSOL do Rio, Marielle Franco, vem acentuar os traços de um país onde forças econômicas e mafiosas se desconectaram da democracia, transitando livremente por uma nação fragmentada.
Nela, o golpe de abril de 2016 cuida de eliminar os derradeiros contrapesos à barbárie enfeixados na Carta de 1988, bem como as lideranças e organizações sociais que os expressam.
Uns nas mãos de Moro; outros, trespassados pelas milícias.
Marielle Franco, negra, de esquerda, nascida em favela era uma dessas vozes a afrontar a subordinação dos miseráveis ao duplo torniquete da desigualdade e das aberrações que nela vicejam.
A repercussão nacional e internacional de sua morte –o assunto liderou o twitter mundial desta quinta-feira, 15 de março— reúne elementos para calafetar a prostração que imobiliza o país, com o cimento firme da revolta justa.
Essa que muitos vislumbram com a eventual prisão de Lula.
A história, porém, não se submete a roteiros de coerência explícita.
O que o conservadorismo teme que possa ocorrer agora no Rio, pondo-se à disposição para investigar o que todos sabem, já aconteceu antes na história.
Na véspera do fatídico 24 de agosto de 1954, por exemplo, quando Vargas mudou o destino do país com um único tiro, a animosidade contra o seu governo parecia disseminada de forma irreversível.
A rejeição havia extravasado do núcleo emissor da elite para as ruas graças a uma bem orquestrada doutrinação midiática que reduziria a luta pelo desenvolvimento a um enredo de incompetência, anacronismo e corrupção sistêmica.
Lembra algo?
No dia 23 de agosto, rumores de que os comandantes das Forças Armadas levariam ao presidente um ultimato pela renúncia produziriam um sentimento de quase de alívio nas ruas.
O sangramento que os interesses conservadores impunham a Vargas maltratava toda a população. O Brasil despencava em uma espiral de paralisia, incerteza, decepção e fatalismo.
Foi então que o imprevisto se fez ouvir na madrugada de 24 de agosto de 1954 no Palácio do Catete, no Rio.
Com um gesto estudado, e uma carta testamento memorável, Vargas transformou seu sangramento em uma hemorragia de revolta aberta nas ruas.
A experiência da tragédia abalou o cimento da resignação cotidiana e rompeu a blindagem sedimentada pela manipulação midiática.
Consternado com a notícia que ecoava pelas rádios, o povo saltou os piquetes da indiferença e escorraçou nas ruas os símbolos e porta-vozes da oposição virulenta ao Presidente.
Em escolha cirúrgica, no Rio, a multidão cercou e depredou a sede da rádio Globo, que saiu do ar.
A vulnerabilidade do golpismo hoje não é menor.
O otimismo do martelete midiático não se confirma no cotidiano ordinário da população.
A mexicanização da violência e da pobreza, a supremacia de bandos, o tráfico e a desfaçatez do enriquecimento de poucos reviram as entranhas do nojo coletivo. Por ora, sublimado na caça aos corruptos...
Falta a fagulha do imprevisto capaz de romper a blindagem dessa arapuca ideológica.
A elite age para que ela não possa existir amanhã, condenando-se a nação a um futuro que seja a mera extensão do presente.
Inclua-se nisso as eleições de 2018, encaradas como um estorvo da ‘retomada’ pelo jornalismo motivacional de mercado.
A frivolidade com que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso salta de um nome a outro em busca de uma candidatura palatável diz muito sobre o espaço restrito reservado às urnas na estratégia conservadora para o Brasil.
Deveria, por contraposição, e com certa urgência, ensejar ações e iniciativas distintas do campo oposto.
Dispersão e inércia não credenciam as forças progressistas a empolgar a disputa, levantar o brio da sociedade e fomentar a esperança em sua capacidade para reerguer a nação.
Dois séculos e vinte e oito anos depois da Bastilha francesa, os sans culotes aqui marcham divididos, sem uma estratégia comum para enfrentar o antes, o durante e, por consequência, o depois do pleito.
Estamos a apenas sete meses de um embate que não pode ser confundido com uma simples troca de governo.
Para o bem ou para o mal, ele terá consequências duradouras no perfil da sociedade brasileira no século XXI.
Reveste-se por isso mesmo de uma radicalidade que faz da possível vitória progressista um desafio talvez menor do que aquele de conseguir governar, a contrapelo do cerco previsível e recém experimentado.
A omnívora porosidade do filtro de FHC na escolha de candidatos é compreensível.
No seu eclético gradiente de buscas cabem desde um animador de auditório jovem, rico e vulgar, a um varejista primata, que gostaria de revogar a Lei Áurea e desregular a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
À amplitude da palheta junte-se o acinzentado do governador Geraldo Alckmin, acotovelado pelo psicopata Dória Jr.
A todos FHC contempla, o que sugere algo desconcertante: tanto faz.
Como na botânica, o ‘suporte’ aqui importa menos que o enxerto.
A corrida conservadora pelo voto orienta-se por uma bússola de interesses solidamente imantados, indiferentes às consequências do seu custo social ou de seu escudeiro de ocasião.
O day after da eventual vitória, no seu caso, ao contrário do que ocorre nas fileiras progressistas, tampouco reserva trancos exasperantes.
A restauração do matadouro neoliberal no país apoia-se na solidez do consórcio da mídia com a escória, o dinheiro e o judiciário.
A margem de independência em relação às urnas é elevada.
A governabilidade antecede e até certo ponto independe da candidatura escolhida.
É isso que nos diz a dança de FHC à procura do noivo para um casamento de fachada, em que tudo o que não é falso é irrelevante.
Empolgar o povaréu no palanque é um mero adereço desse enredo.
Na verdade, um governante fraco, desgarrado da sociedade, mas submisso às ordens dos mercados, é o que de melhor o dinheiro poderia sonhar depois de Lula e Dilma.
Que essa matriz paranoica reclame doses crescentes de repressão e sangue para subsistir nunca impressionou os guias da ‘ponte para o futuro’
De certa forma, é como se a militarização do conflito social fosse uma evolução natural da chibata e do pelourinho, a exemplo do que sugeriu a ‘Paraíso do Tuiuti’ no carnaval deste ano.
E aqui não se trata apenas de uma alegoria de momo, infelizmente.
As estatísticas subsidiam a metáfora de horror da Tuiuti, que o jornalismo de veludo insiste em mitigar e encobrir.
O fato de cinco bilionários concentrarem renda equivalente à da metade da população, enquanto a prioridade jornalística é o equilíbrio fiscal, espanta?
Não.
Talvez espantasse se a desigualdade ganhasse rosto e opinião política emolduradas na iniquidade estrutural que as explica.
Por exemplo:
a) em plena recessão, o Brasil ganhou mais 12 bilionários em 2017, passando para um total de 43;
b) um deles, Luís Frias, é irmão de Otavio Frias, donos do jornal Folha de São Paulo, que assim vem reforçar a bancada da mídia na lista dos mais endinheirados, na qual os Marinhos, da Globo, detém camarote cativo;
c) Jorge Paulo Lemann é outro tubarão –com interesses especulativos sortidos. Ativo nos bastidores econômicos do golpe e de seu suporte ideológico, acumula a condição de 22º capitalista mais rico do mundo, com fortuna de US$ 29,2 bilhões;
d) o conjunto dos endinheirados brasileiros agasalhava patrimônio da ordem de R$ 550 bilhões em 2017;
e) esse pecúlio cresceu 13% em relação a 2016, enquanto o PIB aumentou 1% no período, quando os 50% mais pobres tiveram a sua fatia na renda nacional reduzida de 2,7% para 2%.
Espanta?
Talvez espantasse se o jornalismo de veludo deixasse ecoar certas perguntas.
Por exemplo: de onde, ou melhor, de quem os endinheirados tiraram as 12 fatias adicionais em relação a um bolo que cresceu o equivalente a apenas uma fatia entre 2016 e 2017?
Interesses contrapostos em grau tão extremado, como diria o arguto professor Luiz Gonzaga Belluzzo, exigiriam um ordenamento constitucional de coesa legitimidade para arbitrar o conflito redistributivo, enquanto a economia cuida de ampliar o excedente e a democracia de distribui-lo.
O golpe se fez justamente contra a sensatez dessa lógica jogando a mediação do conflito distributivo para a arena romana na qual sangra a sociedade nesse momento.
O Coliseu brasileiro por excelência é o ambiente fiscal.
Os muito ricos não pagam imposto equivalente ao seu privilégio.
São isentos sobre a porção mais dinâmica de sua fortuna: aquela atrelada à ciranda financeira, capaz de crescer, como vimos, 13% diante de um PIB que aumentou apenas 1%.
Em 2017, 71 mil super-ricos brasileiros embolsaram cerca de R$ 350 bilhões limpinhos, isentos de imposto de renda.
É só a ponta do iceberg de assimetrias seculares congeladas pela parcialidade do fisco tropical.
As consequências se espalham por todas as dimensões da sociedade, mas atingem preferencialmente os mais dependentes de direitos públicos universais.
O investimento em saneamento básico, por exemplo, caiu 26% em termos reais no Brasil, entre 2015 e 2016.
Apenas 51% da população tem acesso a serviços sanitários. E só 44% do que é coletado é tratado.
Doenças do século XIX não estão de volta por acaso.
A febre amarela que hibernava nas matas invadiu o ambiente urbano.
É o abre alas de uma ressurgência maior a caminho.
A tuberculose avança por vielas espremidas de favelas mal arejadas e dengue se espoja em periferias de esgoto a céu aberto.
O investimento em saúde e educação está congelado em termos reais por vinte anos ‘para o bem do equilíbrio fiscal’.
A pensão dos idosos do campo será corroída, dissociando-a da correção do salário mínimo.
O diagnóstico do consórcio golpista desfere estocadas convictas.
Como o punhal de um açougueiro no cepo.
Costuma esguichar sangue e isso está precificado.
É preciso desossar a nação: ‘o Brasil’, alega-se ‘ gasta mais do que arrecada’.
Não se admite inverter os termos da equação: ‘o Brasil arrecada menos do que precisa’.
Foi justamente contra a subversão da ‘gastança’ que se fez o golpe preventivo do milhão contra o tostão.
Ancorado nele veio o ajuste virulento –‘as reformas’.
O resultado obstrui todas as vias respiratórias do pedaço majoritário da sociedade que se esparrama para fora da ‘Dubai’ tropical. onde vive o 1% mais rico.
Inclua-se nos penalizados a classe média, que se recusa a respirar o mesmo ar povo, mas se asfixia como ele.
Viadutos despencam aqui e acolá.
Obras que não terminam nunca, nunca terminarão.
Rios mortos por dejetos, crianças por diarreia, professores à míngua, escolas caindo aos pedaços, o SUS na UTI, periferias conflagradas, morros sob a roleta de intervenções alternadas, ora as milícias, ora os militares.
A violência selvagem que matou Marielle e milhares de outros inclui-se nessa matriz de iniquidade econômica, naturalizada pelo martelete midiático que sentencia: o culpado pela asfixia é o pescoço, não a corda.
A sangria brasileira, na verdade, prospera no interior de um número-chave: sobram apenas 3,5% da receita tributária para novos investimentos.
Sim, há absurdos que contribuem para o gargalo fiscal, apelido técnico para conflito distributivo, que por sua vez atenua a crueza da tradução real dos acontecimentos que rugem: luta de classes.
A aposentadoria concedida a 370 mil militares é um exemplo das distorções.
Responde por quase 45% do déficit da previdência pública – da ordem de R$ 160 bilhões-- beneficiando menos de 400 mil aposentados de um total de três milhões de servidores civis e fardados.
Desonerações empresariais sem a contrapartida de metas para emprego e investimento compõem outro ralo fiscal.
Precisam ser tampados.
Tudo isso é verdade.
Mas nenhuma verdade é mais gritante do que o fato de que sobre os muito ricos incide uma alíquota média de imposto de apenas 7%, graças a isenções e renúncias .
A classe média paga, em média, 12%; os pobres arcam relativamente com o ônus maior, via impostos embutidos em bens de consumo essenciais.
Mesmo assim, uma rebelião dos endinheirados apoiada pela mídia e o PSDB revogou em 2007 a CPMF no Congresso: o oxigênio do SUS tinha uma alíquota de apenas 0,38% , mas gerava uma receita equivalente a 1,4% do PIB.
Foi um ensaio da frente argentária que oito anos depois derrubaria uma Presidenta honesta, eleita com 54 milhões de votos, acusada, entre outras, de pedaladas fiscais para pagar o Bolsa Família.
Quando se esgota um ciclo de desenvolvimento como hoje no Brasil, a distribuição da riqueza e a iniquidade fiscal adquirem transparência subversiva aos olhos da sociedade.
Foi assim também na Revolução Francesa de 1789.
Predominava ali, como no jornalismo motivacional de mercado aqui, a visão da desigualdade como uma extensão da natureza.
Uma desigualdade espantosa, diga-se.
A tal ponto que, segundo Montaigne, no livro ‘Ensaios’, índios tupinambás levados do Rio de Janeiro a Paris, como animais exóticos, declararam-se impressionados com a diferença entre a plebe miserável e faminta e o fastígio da nobreza.
As despesas para sustentar essa assimetria de espantar tupinambás, bem como as guerras e luxos palacianos, excediam as receitas da monarquia, embora os impostos comessem mais de 75% da produção dos camponeses, por exemplo.
80% da população francesa vivia então no campo
O clero e a nobreza –o 1% do topo da renda— não pagava um centavo de imposto.
Toda a estrutura do Estado era leiloada pela monarquia que vendia cargos públicos à nobreza para fazer caixa.
Os detentores se ressarciam roubando ou dilapidando adicionalmente a plebe, com taxas, barreiras e expropriações.
Despesas de duas guerras (a dos Cem anos e a dos Trintas anos) ademais de uma seca devastadora e a revolta unânime dos sans-culottes convergiram para compor a alavanca popular capaz de reverter a máquina que triturava a nação.
A ruptura alcançou a Bastilha mais inexpugnável: a prisão ideológica de corações e mentes.
Os revoltosos franceses ousaram decretar a igualdade de direitos entre todos os cidadãos no século XVIII.
É desse mesmo calibre o desafio enfrentado pelas forças progressistas brasileiras no tormentoso alvorecer do século XXI tropical.
Seria uma ingenuidade suicida pensar em vencer, não apenas marcar presença na arena, sem uma frente comum para disputar o voto e –sobretudo— sobreviver ao day after de uma eventual vitória, sem frustrar as expectativas de transformação.
Não há muito tempo a perder.
As candidaturas de primeiro turno estão esboçadas.
Mas o espaço para a formalização de um pacto de governabilidade progressista, capaz de unificar o discurso no palanque popular desde já, e descortinar um horizonte de mudança crível, encontra-se em aberto.
A reforma tributária é um item chave nessa lista.
Sem ela será impossível dar credibilidade a referendos revogatórios q anularão a receita de arrocho social imposta ao país pelo golpe.
O compromisso com o indulto para Lula –caso seja preso— é outra linha de aglutinação política e mobilização popular.
O fatalismo conservador tentará, como já faz, convencer o país de que esperança que se alimenta de aspirações por mais justiça, investimento público e democracia social é um atentado ao mercado e às contas públicas.
Trata-se de uma operação para devolver ao seu lugar os que emergiram na década de ‘voluntarismo econômico’, como conceituou mais de uma vez o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, sobre a retirada de 30 milhões de brasileiros da miséria, e a ascensão de outros tantos na pirâmide da renda no ciclo de governos do PT.
Não há improviso, portanto, no ajuste do garrote vil em marcha.
Os custos em libras de carne humana da hidráulica esguicharão sangue em quantidades e frequência cada vez mais assustadoras.
Estancar a hemorragia não é obra que se possa atribuir a uma liderança ou a um partido isolado.
O Brasil necessita urgentemente viabilizar um novo braço coletivo.
Que seja maior do que a soma das partes, capaz de sacudir o torpor da cidadania aturdida, afrontar a soberba da direita, abrir espaço à organização popular e, assim, preencher o vácuo de futuro e esperança no qual a elite pretende asfixiar o destino de mais de 200 milhões de pessoas na oitava maior economia do planeta.
É preciso reunir todos os sans-culotte para isso.
E fazer da campanha eleitoral uma nova referência de credibilidade da população nela mesma. Devolvendo-lhe a confiança e a prerrogativa de assumir o comando do seu próprio futuro.
A sociedade brasileira tem motivos para sentir medo da própria imagem refletida num cotidiano de sobressalto, sangue e dor.
O assassinato frio, cruel e repugnante da vereadora do PSOL do Rio, Marielle Franco, vem acentuar os traços de um país onde forças econômicas e mafiosas se desconectaram da democracia, transitando livremente por uma nação fragmentada.
Nela, o golpe de abril de 2016 cuida de eliminar os derradeiros contrapesos à barbárie enfeixados na Carta de 1988, bem como as lideranças e organizações sociais que os expressam.
Uns nas mãos de Moro; outros, trespassados pelas milícias.
Marielle Franco, negra, de esquerda, nascida em favela era uma dessas vozes a afrontar a subordinação dos miseráveis ao duplo torniquete da desigualdade e das aberrações que nela vicejam.
A repercussão nacional e internacional de sua morte –o assunto liderou o twitter mundial desta quinta-feira, 15 de março— reúne elementos para calafetar a prostração que imobiliza o país, com o cimento firme da revolta justa.
Essa que muitos vislumbram com a eventual prisão de Lula.
A história, porém, não se submete a roteiros de coerência explícita.
O que o conservadorismo teme que possa ocorrer agora no Rio, pondo-se à disposição para investigar o que todos sabem, já aconteceu antes na história.
Na véspera do fatídico 24 de agosto de 1954, por exemplo, quando Vargas mudou o destino do país com um único tiro, a animosidade contra o seu governo parecia disseminada de forma irreversível.
A rejeição havia extravasado do núcleo emissor da elite para as ruas graças a uma bem orquestrada doutrinação midiática que reduziria a luta pelo desenvolvimento a um enredo de incompetência, anacronismo e corrupção sistêmica.
Lembra algo?
No dia 23 de agosto, rumores de que os comandantes das Forças Armadas levariam ao presidente um ultimato pela renúncia produziriam um sentimento de quase de alívio nas ruas.
O sangramento que os interesses conservadores impunham a Vargas maltratava toda a população. O Brasil despencava em uma espiral de paralisia, incerteza, decepção e fatalismo.
Foi então que o imprevisto se fez ouvir na madrugada de 24 de agosto de 1954 no Palácio do Catete, no Rio.
Com um gesto estudado, e uma carta testamento memorável, Vargas transformou seu sangramento em uma hemorragia de revolta aberta nas ruas.
A experiência da tragédia abalou o cimento da resignação cotidiana e rompeu a blindagem sedimentada pela manipulação midiática.
Consternado com a notícia que ecoava pelas rádios, o povo saltou os piquetes da indiferença e escorraçou nas ruas os símbolos e porta-vozes da oposição virulenta ao Presidente.
Em escolha cirúrgica, no Rio, a multidão cercou e depredou a sede da rádio Globo, que saiu do ar.
A vulnerabilidade do golpismo hoje não é menor.
O otimismo do martelete midiático não se confirma no cotidiano ordinário da população.
A mexicanização da violência e da pobreza, a supremacia de bandos, o tráfico e a desfaçatez do enriquecimento de poucos reviram as entranhas do nojo coletivo. Por ora, sublimado na caça aos corruptos...
Falta a fagulha do imprevisto capaz de romper a blindagem dessa arapuca ideológica.
A elite age para que ela não possa existir amanhã, condenando-se a nação a um futuro que seja a mera extensão do presente.
Inclua-se nisso as eleições de 2018, encaradas como um estorvo da ‘retomada’ pelo jornalismo motivacional de mercado.
A frivolidade com que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso salta de um nome a outro em busca de uma candidatura palatável diz muito sobre o espaço restrito reservado às urnas na estratégia conservadora para o Brasil.
Deveria, por contraposição, e com certa urgência, ensejar ações e iniciativas distintas do campo oposto.
Dispersão e inércia não credenciam as forças progressistas a empolgar a disputa, levantar o brio da sociedade e fomentar a esperança em sua capacidade para reerguer a nação.
Dois séculos e vinte e oito anos depois da Bastilha francesa, os sans culotes aqui marcham divididos, sem uma estratégia comum para enfrentar o antes, o durante e, por consequência, o depois do pleito.
Estamos a apenas sete meses de um embate que não pode ser confundido com uma simples troca de governo.
Para o bem ou para o mal, ele terá consequências duradouras no perfil da sociedade brasileira no século XXI.
Reveste-se por isso mesmo de uma radicalidade que faz da possível vitória progressista um desafio talvez menor do que aquele de conseguir governar, a contrapelo do cerco previsível e recém experimentado.
A omnívora porosidade do filtro de FHC na escolha de candidatos é compreensível.
No seu eclético gradiente de buscas cabem desde um animador de auditório jovem, rico e vulgar, a um varejista primata, que gostaria de revogar a Lei Áurea e desregular a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
À amplitude da palheta junte-se o acinzentado do governador Geraldo Alckmin, acotovelado pelo psicopata Dória Jr.
A todos FHC contempla, o que sugere algo desconcertante: tanto faz.
Como na botânica, o ‘suporte’ aqui importa menos que o enxerto.
A corrida conservadora pelo voto orienta-se por uma bússola de interesses solidamente imantados, indiferentes às consequências do seu custo social ou de seu escudeiro de ocasião.
O day after da eventual vitória, no seu caso, ao contrário do que ocorre nas fileiras progressistas, tampouco reserva trancos exasperantes.
A restauração do matadouro neoliberal no país apoia-se na solidez do consórcio da mídia com a escória, o dinheiro e o judiciário.
A margem de independência em relação às urnas é elevada.
A governabilidade antecede e até certo ponto independe da candidatura escolhida.
É isso que nos diz a dança de FHC à procura do noivo para um casamento de fachada, em que tudo o que não é falso é irrelevante.
Empolgar o povaréu no palanque é um mero adereço desse enredo.
Na verdade, um governante fraco, desgarrado da sociedade, mas submisso às ordens dos mercados, é o que de melhor o dinheiro poderia sonhar depois de Lula e Dilma.
Que essa matriz paranoica reclame doses crescentes de repressão e sangue para subsistir nunca impressionou os guias da ‘ponte para o futuro’
De certa forma, é como se a militarização do conflito social fosse uma evolução natural da chibata e do pelourinho, a exemplo do que sugeriu a ‘Paraíso do Tuiuti’ no carnaval deste ano.
E aqui não se trata apenas de uma alegoria de momo, infelizmente.
As estatísticas subsidiam a metáfora de horror da Tuiuti, que o jornalismo de veludo insiste em mitigar e encobrir.
O fato de cinco bilionários concentrarem renda equivalente à da metade da população, enquanto a prioridade jornalística é o equilíbrio fiscal, espanta?
Não.
Talvez espantasse se a desigualdade ganhasse rosto e opinião política emolduradas na iniquidade estrutural que as explica.
Por exemplo:
a) em plena recessão, o Brasil ganhou mais 12 bilionários em 2017, passando para um total de 43;
b) um deles, Luís Frias, é irmão de Otavio Frias, donos do jornal Folha de São Paulo, que assim vem reforçar a bancada da mídia na lista dos mais endinheirados, na qual os Marinhos, da Globo, detém camarote cativo;
c) Jorge Paulo Lemann é outro tubarão –com interesses especulativos sortidos. Ativo nos bastidores econômicos do golpe e de seu suporte ideológico, acumula a condição de 22º capitalista mais rico do mundo, com fortuna de US$ 29,2 bilhões;
d) o conjunto dos endinheirados brasileiros agasalhava patrimônio da ordem de R$ 550 bilhões em 2017;
e) esse pecúlio cresceu 13% em relação a 2016, enquanto o PIB aumentou 1% no período, quando os 50% mais pobres tiveram a sua fatia na renda nacional reduzida de 2,7% para 2%.
Espanta?
Talvez espantasse se o jornalismo de veludo deixasse ecoar certas perguntas.
Por exemplo: de onde, ou melhor, de quem os endinheirados tiraram as 12 fatias adicionais em relação a um bolo que cresceu o equivalente a apenas uma fatia entre 2016 e 2017?
Interesses contrapostos em grau tão extremado, como diria o arguto professor Luiz Gonzaga Belluzzo, exigiriam um ordenamento constitucional de coesa legitimidade para arbitrar o conflito redistributivo, enquanto a economia cuida de ampliar o excedente e a democracia de distribui-lo.
O golpe se fez justamente contra a sensatez dessa lógica jogando a mediação do conflito distributivo para a arena romana na qual sangra a sociedade nesse momento.
O Coliseu brasileiro por excelência é o ambiente fiscal.
Os muito ricos não pagam imposto equivalente ao seu privilégio.
São isentos sobre a porção mais dinâmica de sua fortuna: aquela atrelada à ciranda financeira, capaz de crescer, como vimos, 13% diante de um PIB que aumentou apenas 1%.
Em 2017, 71 mil super-ricos brasileiros embolsaram cerca de R$ 350 bilhões limpinhos, isentos de imposto de renda.
É só a ponta do iceberg de assimetrias seculares congeladas pela parcialidade do fisco tropical.
As consequências se espalham por todas as dimensões da sociedade, mas atingem preferencialmente os mais dependentes de direitos públicos universais.
O investimento em saneamento básico, por exemplo, caiu 26% em termos reais no Brasil, entre 2015 e 2016.
Apenas 51% da população tem acesso a serviços sanitários. E só 44% do que é coletado é tratado.
Doenças do século XIX não estão de volta por acaso.
A febre amarela que hibernava nas matas invadiu o ambiente urbano.
É o abre alas de uma ressurgência maior a caminho.
A tuberculose avança por vielas espremidas de favelas mal arejadas e dengue se espoja em periferias de esgoto a céu aberto.
O investimento em saúde e educação está congelado em termos reais por vinte anos ‘para o bem do equilíbrio fiscal’.
A pensão dos idosos do campo será corroída, dissociando-a da correção do salário mínimo.
O diagnóstico do consórcio golpista desfere estocadas convictas.
Como o punhal de um açougueiro no cepo.
Costuma esguichar sangue e isso está precificado.
É preciso desossar a nação: ‘o Brasil’, alega-se ‘ gasta mais do que arrecada’.
Não se admite inverter os termos da equação: ‘o Brasil arrecada menos do que precisa’.
Foi justamente contra a subversão da ‘gastança’ que se fez o golpe preventivo do milhão contra o tostão.
Ancorado nele veio o ajuste virulento –‘as reformas’.
O resultado obstrui todas as vias respiratórias do pedaço majoritário da sociedade que se esparrama para fora da ‘Dubai’ tropical. onde vive o 1% mais rico.
Inclua-se nos penalizados a classe média, que se recusa a respirar o mesmo ar povo, mas se asfixia como ele.
Viadutos despencam aqui e acolá.
Obras que não terminam nunca, nunca terminarão.
Rios mortos por dejetos, crianças por diarreia, professores à míngua, escolas caindo aos pedaços, o SUS na UTI, periferias conflagradas, morros sob a roleta de intervenções alternadas, ora as milícias, ora os militares.
A violência selvagem que matou Marielle e milhares de outros inclui-se nessa matriz de iniquidade econômica, naturalizada pelo martelete midiático que sentencia: o culpado pela asfixia é o pescoço, não a corda.
A sangria brasileira, na verdade, prospera no interior de um número-chave: sobram apenas 3,5% da receita tributária para novos investimentos.
Sim, há absurdos que contribuem para o gargalo fiscal, apelido técnico para conflito distributivo, que por sua vez atenua a crueza da tradução real dos acontecimentos que rugem: luta de classes.
A aposentadoria concedida a 370 mil militares é um exemplo das distorções.
Responde por quase 45% do déficit da previdência pública – da ordem de R$ 160 bilhões-- beneficiando menos de 400 mil aposentados de um total de três milhões de servidores civis e fardados.
Desonerações empresariais sem a contrapartida de metas para emprego e investimento compõem outro ralo fiscal.
Precisam ser tampados.
Tudo isso é verdade.
Mas nenhuma verdade é mais gritante do que o fato de que sobre os muito ricos incide uma alíquota média de imposto de apenas 7%, graças a isenções e renúncias .
A classe média paga, em média, 12%; os pobres arcam relativamente com o ônus maior, via impostos embutidos em bens de consumo essenciais.
Mesmo assim, uma rebelião dos endinheirados apoiada pela mídia e o PSDB revogou em 2007 a CPMF no Congresso: o oxigênio do SUS tinha uma alíquota de apenas 0,38% , mas gerava uma receita equivalente a 1,4% do PIB.
Foi um ensaio da frente argentária que oito anos depois derrubaria uma Presidenta honesta, eleita com 54 milhões de votos, acusada, entre outras, de pedaladas fiscais para pagar o Bolsa Família.
Quando se esgota um ciclo de desenvolvimento como hoje no Brasil, a distribuição da riqueza e a iniquidade fiscal adquirem transparência subversiva aos olhos da sociedade.
Foi assim também na Revolução Francesa de 1789.
Predominava ali, como no jornalismo motivacional de mercado aqui, a visão da desigualdade como uma extensão da natureza.
Uma desigualdade espantosa, diga-se.
A tal ponto que, segundo Montaigne, no livro ‘Ensaios’, índios tupinambás levados do Rio de Janeiro a Paris, como animais exóticos, declararam-se impressionados com a diferença entre a plebe miserável e faminta e o fastígio da nobreza.
As despesas para sustentar essa assimetria de espantar tupinambás, bem como as guerras e luxos palacianos, excediam as receitas da monarquia, embora os impostos comessem mais de 75% da produção dos camponeses, por exemplo.
80% da população francesa vivia então no campo
O clero e a nobreza –o 1% do topo da renda— não pagava um centavo de imposto.
Toda a estrutura do Estado era leiloada pela monarquia que vendia cargos públicos à nobreza para fazer caixa.
Os detentores se ressarciam roubando ou dilapidando adicionalmente a plebe, com taxas, barreiras e expropriações.
Despesas de duas guerras (a dos Cem anos e a dos Trintas anos) ademais de uma seca devastadora e a revolta unânime dos sans-culottes convergiram para compor a alavanca popular capaz de reverter a máquina que triturava a nação.
A ruptura alcançou a Bastilha mais inexpugnável: a prisão ideológica de corações e mentes.
Os revoltosos franceses ousaram decretar a igualdade de direitos entre todos os cidadãos no século XVIII.
É desse mesmo calibre o desafio enfrentado pelas forças progressistas brasileiras no tormentoso alvorecer do século XXI tropical.
Seria uma ingenuidade suicida pensar em vencer, não apenas marcar presença na arena, sem uma frente comum para disputar o voto e –sobretudo— sobreviver ao day after de uma eventual vitória, sem frustrar as expectativas de transformação.
Não há muito tempo a perder.
As candidaturas de primeiro turno estão esboçadas.
Mas o espaço para a formalização de um pacto de governabilidade progressista, capaz de unificar o discurso no palanque popular desde já, e descortinar um horizonte de mudança crível, encontra-se em aberto.
A reforma tributária é um item chave nessa lista.
Sem ela será impossível dar credibilidade a referendos revogatórios q anularão a receita de arrocho social imposta ao país pelo golpe.
O compromisso com o indulto para Lula –caso seja preso— é outra linha de aglutinação política e mobilização popular.
O fatalismo conservador tentará, como já faz, convencer o país de que esperança que se alimenta de aspirações por mais justiça, investimento público e democracia social é um atentado ao mercado e às contas públicas.
Trata-se de uma operação para devolver ao seu lugar os que emergiram na década de ‘voluntarismo econômico’, como conceituou mais de uma vez o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, sobre a retirada de 30 milhões de brasileiros da miséria, e a ascensão de outros tantos na pirâmide da renda no ciclo de governos do PT.
Não há improviso, portanto, no ajuste do garrote vil em marcha.
Os custos em libras de carne humana da hidráulica esguicharão sangue em quantidades e frequência cada vez mais assustadoras.
Estancar a hemorragia não é obra que se possa atribuir a uma liderança ou a um partido isolado.
O Brasil necessita urgentemente viabilizar um novo braço coletivo.
Que seja maior do que a soma das partes, capaz de sacudir o torpor da cidadania aturdida, afrontar a soberba da direita, abrir espaço à organização popular e, assim, preencher o vácuo de futuro e esperança no qual a elite pretende asfixiar o destino de mais de 200 milhões de pessoas na oitava maior economia do planeta.
É preciso reunir todos os sans-culotte para isso.
E fazer da campanha eleitoral uma nova referência de credibilidade da população nela mesma. Devolvendo-lhe a confiança e a prerrogativa de assumir o comando do seu próprio futuro.
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