Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
A esquerda nunca gostou de falar da segurança. Pelo menos no que diz respeito às políticas públicas para o setor, sobretudo quando se tratava de polícia. O tema trazia uma proximidade com a memória da repressão, com ação violenta contra os movimentos democráticos e com organizações que nunca foram abertas ao controle social. Além disso, e em escala determinante para explicar a distância da questão, havia a presença do militarismo, tradicional e organicamente ligado à segurança pública no Brasil, desde que o samba é samba.
Mesmo considerada sempre uma das principais demandas da população, a segurança nunca despertou o mesmo empenho em sua compreensão e proposta racional e democrática de criação e implementação de políticas públicas. Só para lembrar outro tema de grande repercussão popular, a saúde, é nítida a intensa mobilização intelectual e política do setor, o que deu origem ao movimento sanitarista e à criação do Sistema Único de Saúde, o SUS, consagrado na Constituição Federal, coroando um intenso e rico debate público.
Não há nada semelhante na área da segurança. Nem em termos de abrangência, nem de institucionalidade, e menos ainda de consenso construído em escala histórica. Temos orgulho em falar de saúde pública, mas parece ser constrangedor falar igualmente de segurança pública. Algo faz com que a dimensão pública ganhe diferentes conotações nas duas áreas. Entendemos sem esforço a ideia de uma atenção à saúde democrática. Mas para muitos pode parecer uma contradição falar em polícia democrática. Não devia ser assim.
Para grande parte das pessoas ligadas ao pensamento progressista, a violência é apenas um derivativo do capitalismo e da injustiça social. Investir em questões estruturais, como educação, distribuição de renda e emprego, garantiria, a médio e longo prazo, a superação definitiva do problema. Não é bem verdade. Nem toda a verdade. Em primeiro lugar, ninguém quer barganhar o medo de hoje pela tranquilidade de amanhã. A vida é agora. Em seguida, porque a violência urbana é uma questão presente em todas as realidades, ainda que com gradações e características culturais distintas. Não é um fenômeno, é uma estrutura.
Na primeira campanha presidencial pós-ditadura militar, em 1989, o PT veiculou uma campanha publicitária que mostrava uma reunião de pessoas em torno do candidato, Lula. Faziam parte do encontro, que apresentava uma animada reunião de trabalho, especialistas nas mais diversas áreas, da saúde à educação, dos direitos humanos ao setor produtivo. Estavam em torno de Lula pessoas como Paulo Freire, Florestan Fernandes e Antonio Candido, entre outros pensadores e militantes. Não ficou na memória o representante da área de segurança.
A ideia por trás da peça era que a esquerda tinha propostas e gente de primeira para enfrentar todas as questões de interesse nacional. Na área da segurança pública, no entanto, não temos um Paulo Freire. A crítica, justificada, de que a intervenção federal no Rio de Janeiro – que agora passa a ser anunciada como apenas a primeira da fila – não diz a que veio, não apresenta programa, indicadores de resultados e propostas, não tromba com um programa, indicadores e propostas da esquerda. Não temos um SUS da segurança pública para confrontar com o novo brinquedo do general.
A situação se mostra inclusive na dimensão teórica. Há, sem dúvida, um grande avanço entre os estudiosos do setor. Mas, até alguns anos atrás, o grande esforço se concentrava na crítica humanista e na contextualização sócio-histórica dos determinantes da violência. A criminologia crítica tem sido capaz de explicar as raízes dos graves problemas da segurança, tem se superado na forma como defende a pauta dos direitos humanos e avança na interpretação do sistema judicial, mas não demonstrou a mesma eficiência na proposição de novos modelos de ação. Um patrimônio original de conhecimentos precisa ser apropriado pelos formuladores de políticas para o setor.
Fracasso da militarização
Há uma inteligência já disponível que permite começar a mudar o jogo fora do circuito de reforço da violência de parte a parte. Inclusive para defender a vida dos trabalhadores da segurança. A estratégia militarizada, já se sabe, está destinada ao fracasso. Não se trata de buscar comprovação dessa tese no México e na Colômbia, como tem sido feito. A recente derrota na região da Maré, no Rio de Janeiro, mostrou que se trata de estratégia cara (mais de R$ 1 milhão por dia, durante um ano), autoritária e ineficaz. As UPPs e outras ações pontuais, experimentadas em todo o país, mostram resultados apenas momentâneos, sem potencial de evolução ou compartilhamento em outras realidades.
A política pública para a segurança precisa integrar várias questões. A defesa de uma segurança democrática não pode fugir de nenhuma delas. Há o desafio da formação de profissionais e gestão das polícias, inclusive do combate à corrupção. Da garantia da qualidade e rapidez do atendimento ao cidadão, com consequente impacto na confiança das instituições. Das drogas, escapando do moralismo, atuando na esfera da motivação e enfrentando os barões do tráfico. Do sistema judiciário, com o aparato carcerário incluído. Da conquista de confiança das comunidades e da criação de instrumentos democráticos de controle social.
São apenas alguns dos desafios. A boa notícia é que existe saber acumulado no setor, pessoal preparado e sentimento popular de urgência. As universidades e institutos de pesquisa têm ampliado seu conhecimento sobre o tema, tanto em teoria (com abordagens racionais e práticas que se somam à criminologia crítica, até então hegemônica entre os setores progressistas), quanto em proposições de ações substantivas. O repertório se ampliou e oferece novas perspectivas aos responsáveis pela criação e condução de políticas.
Quando o militarismo é convocado mais uma vez para dar conta do setor, há pelo menos três problemas envolvidos. O primeiro é de ordem simbólica: o interventor militar no Rio de Janeiro, general Braga Netto, já convocou um secretário de segurança militar, general Richard Nunes, que vai dialogar com um ministro da Defesa militar, general Luna e Silva. Repare bem: são três generais na mesma frase, pessoas que até há poucos dias não tinham relação com a situação do Rio de Janeiro. O que se observa é uma recomposição do poder fardado que passa por cima da dimensão civil e legitimamente democrática. O governador Pezão se tornou uma figura patética em seu isolamento e entrega do mandato a ele conferido por seus concidadãos. Os militares, sem surpresa, chegam sem voto. A despedida da ativa do general Mourão, na mesma semana, mostra como o simbolismo pode ganhar dimensão real. O general saiu defendendo Bolsonaro e chamando de herói a desprezível figura do torturador Brilhante Ustra.
O segundo prejuízo é de ordem técnica. Trata-se de uma instituição sem história e sem preparo no combate à violência nas cidades. Habitada pelo pensamento único da disputa de posições e do comando vertical burocratizado, vai transformar em guerra o que é uma situação muito mais complexa, sem a divisão moral de patriotas e inimigos, e sem a sensibilidade para a negociação, imprescindível na ação policial. Treinados na disciplina estrita e na hierarquia, os militares são ainda taticamente ineficazes em um território que não conhecem, usando equipamento feito para outras situações e sem o domínio das ferramentas de inteligência disponíveis. Vão comandar forças arredias e desmotivadas.
O terceiro fracasso anunciado da intervenção militar (apesar de o governo insistir em chamar de intervenção federal) é seu caráter político eleitoral. Nitidamente ancorado em ambição pessoal de Temer e em sua falta de apoio popular depois da temporada de contrarreformas, traz para o campo da vida das pessoas a mesma traição que operou nos bastidores do impeachment. Mais uma vez Temer trai. Desta vez seus próprios aliados, buscando cacifar-se como candidato ou, no mínimo, dando uma rasteira nos adversários de sua própria base.
Ao não encontrar uma contestação técnica no primeiro momento – que não seja o fato de surgir sem proposta clara e com autoritarismo – a intervenção precisa ser enfrentada no campo da democracia. É hora de assumir de vez a questão da segurança pública como um direito inalienável. O tempo perdido deve ser motivação para andar mais rápido.
Mesmo considerada sempre uma das principais demandas da população, a segurança nunca despertou o mesmo empenho em sua compreensão e proposta racional e democrática de criação e implementação de políticas públicas. Só para lembrar outro tema de grande repercussão popular, a saúde, é nítida a intensa mobilização intelectual e política do setor, o que deu origem ao movimento sanitarista e à criação do Sistema Único de Saúde, o SUS, consagrado na Constituição Federal, coroando um intenso e rico debate público.
Não há nada semelhante na área da segurança. Nem em termos de abrangência, nem de institucionalidade, e menos ainda de consenso construído em escala histórica. Temos orgulho em falar de saúde pública, mas parece ser constrangedor falar igualmente de segurança pública. Algo faz com que a dimensão pública ganhe diferentes conotações nas duas áreas. Entendemos sem esforço a ideia de uma atenção à saúde democrática. Mas para muitos pode parecer uma contradição falar em polícia democrática. Não devia ser assim.
Para grande parte das pessoas ligadas ao pensamento progressista, a violência é apenas um derivativo do capitalismo e da injustiça social. Investir em questões estruturais, como educação, distribuição de renda e emprego, garantiria, a médio e longo prazo, a superação definitiva do problema. Não é bem verdade. Nem toda a verdade. Em primeiro lugar, ninguém quer barganhar o medo de hoje pela tranquilidade de amanhã. A vida é agora. Em seguida, porque a violência urbana é uma questão presente em todas as realidades, ainda que com gradações e características culturais distintas. Não é um fenômeno, é uma estrutura.
Na primeira campanha presidencial pós-ditadura militar, em 1989, o PT veiculou uma campanha publicitária que mostrava uma reunião de pessoas em torno do candidato, Lula. Faziam parte do encontro, que apresentava uma animada reunião de trabalho, especialistas nas mais diversas áreas, da saúde à educação, dos direitos humanos ao setor produtivo. Estavam em torno de Lula pessoas como Paulo Freire, Florestan Fernandes e Antonio Candido, entre outros pensadores e militantes. Não ficou na memória o representante da área de segurança.
A ideia por trás da peça era que a esquerda tinha propostas e gente de primeira para enfrentar todas as questões de interesse nacional. Na área da segurança pública, no entanto, não temos um Paulo Freire. A crítica, justificada, de que a intervenção federal no Rio de Janeiro – que agora passa a ser anunciada como apenas a primeira da fila – não diz a que veio, não apresenta programa, indicadores de resultados e propostas, não tromba com um programa, indicadores e propostas da esquerda. Não temos um SUS da segurança pública para confrontar com o novo brinquedo do general.
A situação se mostra inclusive na dimensão teórica. Há, sem dúvida, um grande avanço entre os estudiosos do setor. Mas, até alguns anos atrás, o grande esforço se concentrava na crítica humanista e na contextualização sócio-histórica dos determinantes da violência. A criminologia crítica tem sido capaz de explicar as raízes dos graves problemas da segurança, tem se superado na forma como defende a pauta dos direitos humanos e avança na interpretação do sistema judicial, mas não demonstrou a mesma eficiência na proposição de novos modelos de ação. Um patrimônio original de conhecimentos precisa ser apropriado pelos formuladores de políticas para o setor.
Fracasso da militarização
Há uma inteligência já disponível que permite começar a mudar o jogo fora do circuito de reforço da violência de parte a parte. Inclusive para defender a vida dos trabalhadores da segurança. A estratégia militarizada, já se sabe, está destinada ao fracasso. Não se trata de buscar comprovação dessa tese no México e na Colômbia, como tem sido feito. A recente derrota na região da Maré, no Rio de Janeiro, mostrou que se trata de estratégia cara (mais de R$ 1 milhão por dia, durante um ano), autoritária e ineficaz. As UPPs e outras ações pontuais, experimentadas em todo o país, mostram resultados apenas momentâneos, sem potencial de evolução ou compartilhamento em outras realidades.
A política pública para a segurança precisa integrar várias questões. A defesa de uma segurança democrática não pode fugir de nenhuma delas. Há o desafio da formação de profissionais e gestão das polícias, inclusive do combate à corrupção. Da garantia da qualidade e rapidez do atendimento ao cidadão, com consequente impacto na confiança das instituições. Das drogas, escapando do moralismo, atuando na esfera da motivação e enfrentando os barões do tráfico. Do sistema judiciário, com o aparato carcerário incluído. Da conquista de confiança das comunidades e da criação de instrumentos democráticos de controle social.
São apenas alguns dos desafios. A boa notícia é que existe saber acumulado no setor, pessoal preparado e sentimento popular de urgência. As universidades e institutos de pesquisa têm ampliado seu conhecimento sobre o tema, tanto em teoria (com abordagens racionais e práticas que se somam à criminologia crítica, até então hegemônica entre os setores progressistas), quanto em proposições de ações substantivas. O repertório se ampliou e oferece novas perspectivas aos responsáveis pela criação e condução de políticas.
Quando o militarismo é convocado mais uma vez para dar conta do setor, há pelo menos três problemas envolvidos. O primeiro é de ordem simbólica: o interventor militar no Rio de Janeiro, general Braga Netto, já convocou um secretário de segurança militar, general Richard Nunes, que vai dialogar com um ministro da Defesa militar, general Luna e Silva. Repare bem: são três generais na mesma frase, pessoas que até há poucos dias não tinham relação com a situação do Rio de Janeiro. O que se observa é uma recomposição do poder fardado que passa por cima da dimensão civil e legitimamente democrática. O governador Pezão se tornou uma figura patética em seu isolamento e entrega do mandato a ele conferido por seus concidadãos. Os militares, sem surpresa, chegam sem voto. A despedida da ativa do general Mourão, na mesma semana, mostra como o simbolismo pode ganhar dimensão real. O general saiu defendendo Bolsonaro e chamando de herói a desprezível figura do torturador Brilhante Ustra.
O segundo prejuízo é de ordem técnica. Trata-se de uma instituição sem história e sem preparo no combate à violência nas cidades. Habitada pelo pensamento único da disputa de posições e do comando vertical burocratizado, vai transformar em guerra o que é uma situação muito mais complexa, sem a divisão moral de patriotas e inimigos, e sem a sensibilidade para a negociação, imprescindível na ação policial. Treinados na disciplina estrita e na hierarquia, os militares são ainda taticamente ineficazes em um território que não conhecem, usando equipamento feito para outras situações e sem o domínio das ferramentas de inteligência disponíveis. Vão comandar forças arredias e desmotivadas.
O terceiro fracasso anunciado da intervenção militar (apesar de o governo insistir em chamar de intervenção federal) é seu caráter político eleitoral. Nitidamente ancorado em ambição pessoal de Temer e em sua falta de apoio popular depois da temporada de contrarreformas, traz para o campo da vida das pessoas a mesma traição que operou nos bastidores do impeachment. Mais uma vez Temer trai. Desta vez seus próprios aliados, buscando cacifar-se como candidato ou, no mínimo, dando uma rasteira nos adversários de sua própria base.
Ao não encontrar uma contestação técnica no primeiro momento – que não seja o fato de surgir sem proposta clara e com autoritarismo – a intervenção precisa ser enfrentada no campo da democracia. É hora de assumir de vez a questão da segurança pública como um direito inalienável. O tempo perdido deve ser motivação para andar mais rápido.
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