Iniciei minha carreira jornalística na Veja em 1970. Era dirigida por Mino Carta, tendo abaixo de si dois grandes secretários de redação: Luiz Garcia, um mestre na arte do jornalismo, Sérgio Pompeu, um mestre na psicologia das redações. Foram substituídos por outros jornalistas, igualmente talentosos, mas de estilo mais truculento, Luiz Roberto Guzzo, que assumiu o posto ainda na era Mino, e Elio Gaspari, que foi convocado na era Guzzo, depois de ter saído da Veja para assumir uma coluna no Jornal do Brasil.
Depois de três anos de experiências, até atingir o azul, Veja tinha todos os ingredientes de um ambiente inovador campeão.
De um lado, a importação do modelo Times e Newsweek, de simplificar os grandes temas da semana, até o limite de entendimento da dona de casa de Botucatu - como se dizia na época. Depois rechear o texto com truques de estilo, uma ampla adjetivação, uma arrogância editorial, um comportamento superior, valorizando as informações e análises, a maioria ao alcance de qualquer leitor, fulminando os personagens das matérias com um humor ácido. Lendo a Veja, qualquer imbecil entendia e se via parceiro de um pensamento superior.
Havia ainda um cuidado de ourives com os pequenos detalhes irrelevantes - como o vinho servido na refeição, a reconstituição algo literária de cenas que o repórter não presenciou, para contornar a falta de profundidade da maioria das reportagens, fruto de uma opção editorial, não da falta de talento da redação.
Trabalhando essa receita, capas criativas, inovadoras, variadas, retratando as mudanças do país, a nova atriz que surgia, os novos empresários que apareciam. Tudo isso sendo trabalhado por uma redação entusiasmada, campeã, tendo em Mino um líder referencial.
Sérgio Pompeu humanizava o temperamento de Mino Carta, alertando sobre pontos de tensão que eventualmente surgiam na redação.
Na época em que a TV Globo explodiu, com o trabalho brilhante de Boni, Veja conseguiu ser o porta-voz máximo do pensamento médio paulista - da classe média à empresarial - e o sonho de consumo de opinião da classe média ascendente e de empresários tradicionais de outros estados.
Era oficialista, sim, até o momento em que Mino resolveu apostar na redemocratização e entrou em conflito com Roberto Civita. E o oficialismo assegurou à Abril grandes benesses, como a montagem da rede de hotéis Quatro Rodas com recursos da Sudene.
Depois de três anos de experiências, até atingir o azul, Veja tinha todos os ingredientes de um ambiente inovador campeão.
De um lado, a importação do modelo Times e Newsweek, de simplificar os grandes temas da semana, até o limite de entendimento da dona de casa de Botucatu - como se dizia na época. Depois rechear o texto com truques de estilo, uma ampla adjetivação, uma arrogância editorial, um comportamento superior, valorizando as informações e análises, a maioria ao alcance de qualquer leitor, fulminando os personagens das matérias com um humor ácido. Lendo a Veja, qualquer imbecil entendia e se via parceiro de um pensamento superior.
Havia ainda um cuidado de ourives com os pequenos detalhes irrelevantes - como o vinho servido na refeição, a reconstituição algo literária de cenas que o repórter não presenciou, para contornar a falta de profundidade da maioria das reportagens, fruto de uma opção editorial, não da falta de talento da redação.
Trabalhando essa receita, capas criativas, inovadoras, variadas, retratando as mudanças do país, a nova atriz que surgia, os novos empresários que apareciam. Tudo isso sendo trabalhado por uma redação entusiasmada, campeã, tendo em Mino um líder referencial.
Sérgio Pompeu humanizava o temperamento de Mino Carta, alertando sobre pontos de tensão que eventualmente surgiam na redação.
Na época em que a TV Globo explodiu, com o trabalho brilhante de Boni, Veja conseguiu ser o porta-voz máximo do pensamento médio paulista - da classe média à empresarial - e o sonho de consumo de opinião da classe média ascendente e de empresários tradicionais de outros estados.
Era oficialista, sim, até o momento em que Mino resolveu apostar na redemocratização e entrou em conflito com Roberto Civita. E o oficialismo assegurou à Abril grandes benesses, como a montagem da rede de hotéis Quatro Rodas com recursos da Sudene.
Roberto Civita
Faço essa abertura para introduzir o personagem do artigo: Roberto Civita.
Não sei se ele é o medíocre, descrito por Mino Carta em seus livros. Inescrupuloso, sem dúvida. A pouca convivência que tive com ele foi suficiente para entender a ira santa de Mino. Convivi com outros grandes empreendedores, da mídia e de outros setores, muitos tão frios quanto Civita na administração dos negócios. Mas João Saad e Otávio Frias, por exemplo, eram personalidades fascinantes, ainda que muitas vezes me chocasse a frieza com que encaravam o interesse de suas empresas. Não era o caso de Roberto Civita.
Mesmo assim, foi um campeão, sempre o primeiro a perceber os movimentos da mídia norte-americana e a importa-los para o Brasil.
O grande Luiz Fernando Mercadante, uma das peças chaves da revista Realidade, e já afastado do jornalismo, me falou acerca do talento de Roberto Civita. Foi assim no lançamento da Realidade e, especialmente, quando entendeu a eficácia do modelo Times-Newsweek. Mais ainda, quando selecionou os jornalistas que deveriam levar os projetos adiante.
Foi atrás do maior jornalista desde então, Mino Carta, que trouxe do Jornal da Tarde uma equipe talentosíssima, com Tão Gomes Pinto, Renato Pompeu, ao qual se somaram jovens revelações cariocas, como Elio Gaspari, Dorrit Harrazim, Marco Sá Correa.
Antes disso, com a Realidade, atraiu grandes jornalistas da época, Mercadante, Milton Coelho da Graça, Sérgio de Souza, Hamiltinho, Narciso Kalili. E teve o mesmo discernimento na montagem de Quatro Rodas, Placar, Exame, com Paulo Henrique Amorim, Cláudia.
Playboy, com Mário de Andrade e Juca Kfoury, além do padrão de nus da revista-mãe, notabilizou-se por grandes reportagens.
Nos anos 90, quando as novas tecnologias começaram a se consolidar, deu uma entrevista ao Roda Viva mostrando o conhecimento amplo sobre o novo universo que surgia. E uma megalomania notável, que o fez enveredar por novos setores sem ter domínio sobre o modelo de negócio e sem ter noção sobre a desproporção de capital exigido com o que a Abril conseguiria captar.
Foi assim, quando se habilitou a uma das concessões de TV distribuídas por Antônio Carlos Magalhães no governo Sarney. Meteu os pés pelas mãos. Mais à frente, acertou uma parceria com a TV Gazeta, com a Abril Vídeo. Colocou a programação nas mãos competentíssimas de Mercadante e Narciso Kalili. Mas em um veículo – uma TV pequena, sem rede – impossível de gerar receita publicitária que pagasse o projeto.
Quando percebeu o avanço da TV a cabo nos Estados Unidos, montou a Sky por aqui, outro salto desproporcional em relação ao tamanho da empresa. Em todos os momentos, contava com o poder de persuasão de Veja para resolver os problemas que surgiram.
Dispersão de energia
Civita foi vítima de um vício recorrente em quase todos grandes grupos de mídia: a dispersão de energia em muitas frentes, perdido ante a multiplicidade de frentes que surgiram com as novas tecnologias.
A salvação passou na sua frente com a montagem da BOL, um dos primeiros portais de Internet, competindo com a UOL. A BOL saía na frente porque tinha à sua disposição o conteúdo das dezenas de publicações da Abril.
Deu algumas cabeçadas iniciais, mas teria tudo para se transformar no grande portal de notícias brasileiro. Contava com a revista de informação mais lida, a Veja, com a revista empresarial de maior penetração, a Exame, com a revista esportiva líder, o Placar, com as revistas femininas de maior prestígio, Cláudia, Contigo.
Mas, nos primeiros percalços, Roberto Civita se desfez da BOL, aceitando uma fusão com a UOL. Como narrei no artigo anterior, Luiz Frias se associou à Portugal Telecom, montou um aumento de capital inesperado, que pegou Roberto de calças curtas, diluindo sua participação. Mais tarde, num dos IPOs da UOL, Luiz comprou o restante da participação da Abril.
Ainda na fase da lua-de-mel, quando Otávio Frias pediu que eu sondasse João Saad, da Bandeirantes, para uma proposta da Folha e da Abril, tive um almoço com Civita e Thomaz Souto Correia. No almoço, Civita mostrou-se surpreso com o que ele considerava primarismo administrativo da Folha. Sem contar com CEOs, com relatórios sofisticados, no entanto, o velho Frias tinha controle absoluto e foco nos negócios. Com toda a parafernália de gestão, Civita não tinha a estratégia correta.
Aliás, o almoço foi curioso. Na época, apresentei um projeto para Otávio Frias, de jornalismo digital. Ele sugeriu que falasse também com Roberto Civita. No almoço, fui alvo uma saraivada de perguntas. Depois, o Paulo Moreira Leite me telefonou dizendo que eu era um dos jornalistas que Roberto Civita tinha pensado para a sucessão dele e de Mário Sérgio Conti.
Seja como for, nenhum convite foi formalizado para que eu pudesse formalmente recusar. Mas o meu projeto, que deixei com Roberto, acabou resultando em uma série de eventos da Exame, claramente calcados nele. Na época, uma amiga que trabalhara no marketing da Abril me contou desse hábito de Roberto Civita: se apossar das sugestões de terceiros e apresenta-las como suas.
O inferno final da Abril
Tenho a impressão que o inferno de Roberto Civita começou com a constatação de que, com a fusão da BOL com a UOL. jogara fora a grande oportunidade da Abril.
A TV falhara, assim como os hotéis Quatro Rodas, a rede de TV a cabo e o portal de Internet. Ali começou o desespero da busca das oportunidades perdidas.
Dali para frente, adotou duas estratégias inteiramente copiadas de seu guru maior, Rupert Murdok, o australiano que saiu pelo mundo, valeu-se do mercado de capitais global para uma série de aquisições que o transformaram em um dos campeões da nova fase. Em alguns momentos, o grupo de Murdok atingiu níveis de alavancagem perigosos. Superou os percalços e foi um dos vitoriosos nesses tempos de mudanças radicais da mídia. E Roberto tratou de emular a estratégia vencedora.
O primeiro lance foi se valer do estilo jornalismo de esgoto para infundir medo e abrir portas. Ali mostrou seu talento de captador das tendências da mídia norte-americana, ao perceber – mais do que qualquer outro grupo brasileiro – o potencial do discurso do ódio, da criação de um inimigo para a classe média, que legitimasse todas as jogadas comerciais possíveis.
Veja se antecipou aos demais veículos na exploração desse mercado de esgoto. E ganhou um poder de influência absoluto.
A capa da Veja, contra o desarmamento, foi um marco da inauguração do pior momento da história da mídia brasileira. Nos meses seguintes, o discurso de ódio foi introduzido por Tales Alvarenga, um ex-diretor da revista, de baixo calibre, mas que trabalhava diretamente com Roberto. Com a onda pegando, outros veículos seguiram o touro-guia e vários personagens se apressaram a atender a demanda por ódio criada.
Para evitar contrapontos de outros veículos, Roberto convenceu-os a montar o cartel que, durante anos, expôs a imprensa brasileira ao nível mais baixo da história. Depois, a deflagração de uma razia contra os jornalistas não-alinhados, visando afastar os mais independentes, e enquadrar pelo medo os demais. Guerra é guerra!
Foi um jogo em que se tentou, inclusive, redesenhar o universo de celebridades – artistas, intelectuais, compositores, cientistas sociais -, filtrando as fontes e tentando criar novos referenciais no mercado de opinião. Da mesma maneira, aliás, que Murdok nos Estados Unidos e o Clarin na Argentina.
A receita era óbvia e repetitiva. Abriu-se espaço para um colunista de cultura, Diogo Mainardi, atacar os alvos previamente definidos. Atacados, os jornalistas eram impedidos, por seus veículos, de se defenderem. O passo seguinte era a demissão.
Foi a noite da grande infâmia em que se romperam os pactos de lealdade que vigoraram em muitos jornais – até na Globo – nos tempos da ditadura militar.
Um dos alvos da trama, acabei saindo da Folha e me dediquei a estudar melhor o fenômeno que surgia. De imediato, montei uma trincheira na Internet e passei a questionar matérias da Veja. Roberto colocou profissionais do assassinato de reputação para ataques pessoais diários.
Na época juntei 500 páginas de baixarias contra mim. Veja estava o auge do poder, aliada a Ministros do Supremo, a procuradores, assassinando reputações sem o menor pudor. Federações de jornalistas, ABI, sindicatos, Ministério Público? Não recebi uma mísera gota de solidariedade pública, tal o temor infundido pela revista.
O resultado saiu em uma série que escrevi, “O caso de Veja”, desmascarando o estilo que Roberto implementara na revista. Veja saiu machucada, e bastante, do embate. A ponto de bancar cinco ações de seus jornalistas contra mim e, depois, Roberto enviar um assessor pessoal, Sidney Basile – pessoa decente – para propor um armistício. Eu pararia de criticar a Veja e ela suspenderia as ações.
Não aceitei a proposta. Recorri a advogados que montaram defesas pífias e me deixaram na mão na primeira pressão da mídia. Nem adiantaria pensar em denunciá-los à OAB ou qualquer outra instituição, porque havia um temor generalizado da Veja.
A emulação do estilo Murdok arrebentou não apenas com a imagem da Abril e da Veja, mas foi fatal para os negócios de Roberto. Ele passou a buscar desesperadamente novos negócios, recorrendo à estratégia de endividamento do seu tutor.
O primeiro mercado foi o da educação. Como grande parte depende de agentes públicos, especialmente no livro didático, Roberto julgou que o temor infundido pela revista ajudaria a abrir portas.
E ajudou, e muito. Montou grandes pacotes com José Serra vendendo de assinaturas de Veja a gibis para o estado de São Paulo. Tentou afastar concorrentes no mercado de cursos apostilados, denunciando supostas inclinações subversivas dos livros e nos cursos apostilados. Levantou a bola dos governantes que adquiriam seus pacotes.
Certa vez, representantes da Abril chegaram a insinuar ameaças contra o Corinthians, caso não aceitasse a proposta da editora para um projeto de... álbum de figurinhas.
Roberto certamente não contava com os novos agentes que surgiram fora do pacto, o fenômeno dos blogs. Cada tacada da Abril se espalhava pela Internet, ajudando a erodir dia a dia sua credibilidade.
As compras indiscriminadas
Sem rumo, colocou um executivo megalomaníaco na educação, que saiu pelo país afora comprando cursos e editoras de livros didáticos por preços superestimados. Na época, conversei com o dono de um grande grupo educacional, que me mostrou que seria impossível a Abril se equilibrar com os preços pagos pelos cursos.
Em outras áreas, a imprudência foi similar. João Dória Jr vendeu para a Abril sua parte na Casa Cor, da qual a Abril era sócia. Segundo me contou, levou um susto com o preço oferecido, muitas vezes superior ao que ele pensava em pedir por sua parte.
A escalada suicida persistiu com a estratégia para evitar a queda de preços na tabela de publicidade da Veja. À medida em que a tiragem paga ia caindo, a Abril bancava os custos da distribuição gratuita, ou da manutenção das assinaturas não renovadas, para impedir que o IVC (Instituto Verificador de Circulação) apontasse a queda de tiragem. Todas as semanais do planeta tiveram quedas expressivas nas edições impressas, e apenas Veja mantinha impávida os supostos 1,2 milhões de assinantes.
Quando morreu, Roberto já tinha consciência do final inevitável da revista. Um grupo de bilionários paulistas ainda pensou em montar uma fundação para adquirir Veja e Estadão e mantê-los vivos na disputa política. Desistiu quando confrontado com os números da empresa.
A família ainda tentou algumas jogadas atrevidas, como a de passar para um parceiro argentino parte dos títulos da Abril. Desistiu quando os blogs denunciaram a manobra, como provável crime de ocultação de patrimônio.
Em todo caso, a família está financeiramente bem. Consta que os filhos chegaram a adquirir uma ilha no Caribe com recursos corporativos.
Mas a Abril vai morrendo rapidamente, Veja vai sangrando um pouco mais lentamente, mas deixando plantadas as sementes de ódio que ajudaram a destruir um país que parecia promissor.
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