No dia 3 de julho, a juíza da Corte Nacional de Justiça do Equador ordenou a captura do ex-presidente Rafael Correa, sob a acusação de ordenar o sequestro de um delinquente equatoriano, Fernando Balda, dentro do território da Colômbia. Segundo a informação oficial difundida pela secretaria de comunicações do atual presidente, Lenín Moreno, a ordem de detenção será apresentada em breve à Interpol, para solicitar sua detenção em Bruxelas, onde o líder da Revolução Cidadã vive atualmente com sua família.
A medida tomada pelo mais alto tribunal equatoriano se efetivou quatro dias depois de o vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, concluir sua visita a Quito e – segundo os meios hegemônicos locais – anunciar o fim de “dez anos de tensas relações entre ambos os países”, o exato período em que Correa impulsou uma política autônoma dos mandatos provenientes de Washington. A ordem de detenção coincide também com a recepção dada pelo atual presidente aos técnicos do FMI – também rejeitados no Equador nesses últimos dez anos – e o anúncio da privatização de funções que outrora eram realizadas pelo Banco Central, como a gestão e o controle do dinheiro eletrônico.
A visita de Pence também acontece em paralelo com a liberalização das importações, que provocou uma queda de 21% do superávit comercial, e a consequente deterioração do tecido produtivo. Outra das coincidências foi o anúncio de Moreno de medida que limita a chamada “lei da mais-valia”, que impedia a especulação econômica e financeira sobre terras em zonas urbanas, para impedir que os pobres se vejam obrigados a abandonar o centro das cidades.
Também foi (aparentemente) coincidência o anúncio sobre a possível (ou provável) perda do status de asilado de Julian Assange, o ciberativista que se encontra na embaixada equatoriana em Londres, desde que Correa lhe concedeu abrigo. Há dois meses, o governo de Moreno – a pedido dos Estados Unidos – já havia restringido a comunicabilidade de Assange, para evitar que continue com sua política de democratizar a informação dos centros de poder internacional de dentro da sede diplomática.
Assim, no dia 5 de julho a chancelaria do Equador informou que “o senhor Assange deve chegar a um entendimento com as autoridades britânicas. O Equador é um facilitador”. Não há dúvidas de que Mike Pence foi convincente. Antes de abandonar o Equador, felicitou Moreno por seu compromisso na luta contra a corrupção, evidenciado no encarceramento – com pena de seis anos de prisão – de seu vice-presidente eleito, Jorge Glas, que é acusado de receber propina da empresa brasileira Odebrecht.
A causa contra Glas se iniciou a partir de um informe entregue pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que falava de pagamentos de 33,6 milhões de dólares provenientes da empresa brasileira entre 2007 e 2016.
A documentação enviada por Washington chegou aos tribunais equatorianos poucos meses antes da campanha eleitoral de 2017. A difusão dessas denúncias beneficiou eleitoralmente a fórmula direitista de Guillermo Lasso e Andrés Páez, que, apesar das ajudas imperiais, não conseguiram derrotar a Aliança País, de Moreno e Glas.
O vice-presidente eleito, foi um dos funcionários de maior confiança de Correa quando o governo expulsou do território equatoriano a empresa brasileira Odebrecht, em 2008, pelo não cumprimento das normas no contrato para a construção da represa hidroelétrica de San Francisco.
Em dezembro de 2016, quando os documentos provenientes de Washington foram conhecidos em Quito, os analistas internacionais se interrogavam sobre a óbvia contradição que a respeito de receber recompensas ilegais e ao mesmo tempo expulsar aqueles que supostamente eram os corruptores.
A causa judicial pela qual se emitiu a ordem de captura de Rafael Correa se iniciou a partir da denúncia do advogado Fernando Balda, que foi condenado em 2010 por injúrias e calúnias contra um funcionário próximo a Correa. O próprio Balda foi sentenciado, tempo depois, a 12 meses de prisão, por atentar contra a segurança do Estado. Em ambos os casos, para evadir a detenção, ele fugiu para a Colômbia, sendo um prófugo da Justiça equatoriana entre 2009 e 2010.
Em 2012, Balda sofreu uma tentativa de sequestro em Bogotá, pela qual culpou integrantes dos serviços de inteligência equatorianos. Três meses depois, em outubro de 2012, Balda foi deportado pela Colômbia ao seu país natal, para cumprir as duas sentenças de prisão contra si.
Em meio a um evidente acordo jurídico-político, os governos da Colômbia e do Equador concordaram em endossar a tentativa de sequestro de Balda a Correa, partindo por uma única declaração testemunhal – sem nenhuma prova material que confirme o relato – de um agente policial que se desempenhava na Direção Geral de Inteligência do Equador (Raúl Chicaiza), que se encontra preso e à disposição da Justiça. Correa rechaça as acusações, e as classifica como uma farsa, um elemento que compõe toda uma operação de lawfare – utilização da justiça como ferramenta de perseguição política, ou guerra jurídica.
Brasil, Argentina e Equador
O neoliberalismo latino-americano vem concretizando a operacionalização de um novo dispositivo orientado a perseguir os líderes sociais e/ou políticos que se opõem ao pensamento único desenhado nos centros financeiros internacionais, que são essenciais para o funcionamento e sobrevivência dos seus interesses estratégicos. A judicialização da política é viabilizada e desenvolvida em países cuja cultura política não permite, na atualidade, a execução paramilitar de tais ativistas opositores, como acontece habitualmente na Colômbia, no México e em Honduras, países onde esses referentes sociais são assassinados semanalmente. O lawfare existe, portanto, onde não se pode ainda desaparecer ou assassinar. É um recurso que supre o extermínio.
As características da judicialização política repressiva se assentam numa ditadura dos juízes que se assumem como uma supra-instituição, acima da sociedade civil e que não pode ser avaliada nem retificada por ela ou por nenhum outro dos poderes.
Os sócios estratégicos do lawfare são os principais meios de comunicação (geralmente monopólicos, como o Grupo Clarín na Argentina, a Rede Globo no Brasil ou a Televisa no México), crescentemente articulados com as redes sociais, cuja big data é monitorada por centrais de inteligência, como fica em evidência com o escândalo envolvendo Cambridge Analytica e Facebook. O objetivo é a “desaparição” do inimigo político do neoliberalismo, que se instrumenta a partir da deslegitimação dessa ameaça, passo prévio à posterior judicialização do seu atuar político.
O estratagema linguístico lançado para impulsar essa cruzada contra os dirigentes políticos (que se atrevem a enfrentar a lógica rentista e especulativa) é a famosa “luta contra a corrupção”. Passam a ser corruptxs todxs aquelxs que pregam a favor da centralidade do Estado e contra os interesses das empresas multinacionais e grandes corporações. São passíveis de ser judicializados todos aqueles que reivindicam o público e questionam o mercantil, ou que estabelecem política de desenvolvimento produtivo como modelos que substituam as aberturas comerciais, que tendem a destruir tecidos produtivos locais.
Serão vítimas prioritárias do lawfare aqueles que considerem que há um território do político associado ao valorativo, superior à mitológica “eficiência tecnocrática dos especialistas (formados habitualmente dentro do microclima favorável aos interesses das multinacionais).
O lawfare é a superação da imparcialidade jurídica. É o Estado de exceção a serviço da luta contra a centralidade do Estado, contra a política (equiparáveis à corrupção) e contra a defesa do sentido comum neoliberal – auto percebido como uma forma de naturalidade – desafiado pelos populistas: rótulo que serve para progressistas, keynesianos, peronistas, lulistas e esquerdistas em geral, não somente comunistas. Para os que se colocam contra essa lógica dominante (especialmente os dirigentes sociais e líderes políticos de esquerda), não existe presunção de inocência, e os meios de comunicação se encarregam de instalar a culpabilidade com uma insistência diária e sistemática desse discurso. Isso é o que justifica as prisões arbitrárias ou até mesmo a instrução de uma causa somente a partir de provas testemunhais ou outras superficialidades, ou até a atuação de juízes enviesados capazes de destruir todo o protocolo de jurisdição.
Na Argentina, o caso da dirigente social Milagro Sala, que permanece presa há três anos por uma causa que julga o lançamento de ovos ao então deputado Morales, hoje governador de Jujuy. Nesse gravíssimo atentado, Sala não esteve presente, e o fator que determinou a sua detenção foi simplesmente o testemunho de um empregado de Morales, que a indicou como a pessoa que “incitou o lançamento de ovos”. Julio de Vido – deputado e ex-ministro de Cristina Kirchner – também está preso, pelo crime de trabalhar por melhores condições de vida dos trabalhadores da indústria petrolífera e por um suposto superfaturamento de preços na compra de gás.
Em ambos os casos, as evidências foram sustentadas em perícias que foram comprovadamente incorretas ou fraudulentas – um dos peritos do caso de Julio de Vido, David Cohen, foi processado por entregar dados falsos para incriminar os funcionários – e ainda assim não foi concedida a liberdade a nenhum dos dois.
Cristina Kirchner enfrenta três processos, que são tratados pela mídia com o sensacionalismo que o roteiro pede para estes casos: um deles ligado ao memorando de entendimento com o Irã (votado no Congresso por mais de duzentos legisladores das duas câmaras), outro sobre a morte do promotor Nisman (na qual se busca transformar um suicídio em homicídio, ainda que isso signifique violentar as evidências) e um terceiro sobre acusações (risíveis) ligadas à gestão dos hotéis da sua família, no sul do país, que estavam a cargo de administradores autônomos. Carlos Zannini (ex-secretário Legal e Técnico) e Luis D’Elía (dirigente social) permaneceram cem dias em prisão preventiva pelo primeiro dos delitos atribuídos à ex-presidenta. Fernando Esteche permanece detido por essa mesma causa, sem data de audiência programada.
No Brasil, Lula da Silva foi condenado a 13 anos de prisão dentro de um processo conhecido como Operação Lava Jato, no qual é acusado de “corrupção passiva”, por supostamente ter recebido um “apartamento tríplex” localizado na cidade de Guarujá, cuja titularidade, como já foi comprovado, nunca pertenceu a ele, e se encontra dentro do patrimônio da empreiteira OAS. Lula e sua família não habitaram o apartamento sequer um dia. Para condená-lo, o juiz de primeira instância considerou apenas uma mensagem de correio eletrônico e um testemunho favorável à tese da promotoria, e simplesmente ignorou outras 73 testemunhas que negaram a “ocupação do apartamento por parte de Lula”.
O outro lado dessa moeda é o fato de Marcelo Odebrecht, o maior responsável pelo esquema de corrupção na América Latina – com propinas distribuídas por valores superiores aos 300 milhões de dólares –, CEO de empresa que leva o seu sobrenome, permanece em prisão domiciliar desde 17 de dezembro, graças a delações premiadas aceitas pela Justiça brasileira.
Táticas de guerra
O lawfare tem particularidades com relação à prisão preventiva. A maioria das constituições da América Latina possuem esse dispositivo – na etapa de instrução – para ser usado somente quando o acusado pode obstruir uma investigação que o envolve ou se existe a possibilidade de fuga. A sobrevivência do neoliberalismo requer a tergiversação dessa doutrina de encarceramento preventivo como mensagem midiática disciplinadora (um ex vice-presidente em pijamas e algemado passa a expressar o êxtase do lawfare comunicacional). Em todos os casos das detenções preventivas – inclusive a causa que mantém Lula preso, na qual não há sentença em última instância, porque está apresentada uma apelação que ainda não foi analisada – os juízes não explicaram os motivos que justificam essas decisões, detalhando quais são os potenciais perigos de fuga ou obstrução das investigações.
O concepto de lawfare foi gerado pelo general estadunidense Charles Dunlap, assessor do Pentágono, que o definiu como a tática para utilizar a lei como meio para alcançar um objetivo militar. Se trata de transformar “códigos legais em balas”. O lawfare é menos letal, mais econômico, e – em muitas oportunidades – mais efetivo que ações militares planificadas. Também é baseado na ideia de dar uma aparência de legalidade à excepcionalidade, à perseguição e à hostilidade. É uma manobra alheia ao sistema democrático, porque o substitui, escolhe quem não pode ou não deve participar dele, e o exclui. Promove o descrédito midiático através da utilização do tempo jurídico. A condenação nem sempre é o importante, e sim o trajeto. O alvo pode parecer inocente, desde que se crie o ambiente para manter o relato condenatório nas primeiras páginas e nos blocos de destaque dos noticiários televisivos e radiofônicos, visando deslegitimar uma carreira, e sobretudo o vínculo do dirigente com os setores sociais mais desfavorecidos, sobre o que se deve impor o máximo de investimento comunicacional e de redes sociais.
* Jorge Elbaum é sociólogo, doutor em Ciências Econômicas e analista sênior do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE).
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