Por Rodrigo Lentz, no site da Fundação Maurício Grabois:
[1] A respeito, ver a dissertação de mestrado “A imprensa na Justiça de Transição: o problema da ‘cumplicidade civil’ nos casos de Brasil e Argentina”. Disponível em: .
[2] Folha de S.Paulo, Na véspera do julgamento sobre Lula, comandante do Exército diz repudiar impunidade, 3 abr. 2018.
[3] PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
[4] Conforme matéria publicada em 1º de abril de 2004 pelo próprio tribunal: “o Supremo Tribunal Federal e o Golpe de 1964”. Disponível em: .
[5] Revista Época, “Em conversa com Toffoli, Lewandowski ameaçou denunciar desvio de poder no STF”, 1º out. 2018.
A declaração pública do novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, de que “a intervenção militar” de 1964 não foi “nem golpe, nem revolução”, mas um “movimento”, é um espirro de gasolina na fogueira política que nos encontramos desde junho de 2013.
Visto de forma isolada, do ponto de vista acadêmico, nomear de “movimento de 1964” é uma distorção imprudente sobre a participação civil no golpe de 1964. Em verdade, boa parte de empresários, ruralistas, políticos, jornalistas, juízes, advogados, religiosos e organizações sociais conspiraram para impedir a posse de João Goulart e dar o chamado “golpe branco” do parlamentarismo em 1961. Depois seguiram com os militares para desestabilizar e derrubar o governo eleito pela soberania popular. Por isso, historiadores, como o evocado por Toffoli, Daniel Araão Filho, argumentam, com razão, que existiu um “movimento civil militar” no golpe 1964, evento esse reconhecido como autoritário por ampla historiografia, nacional e internacional. E militares, com razão, reclamam que assumiram sozinhos o ônus de quebrar as regras do jogo democrático e colocar em prática uma ditadura. A Globo, por exemplo, só foi admitir “seu erro” em 2013, quase cinquenta anos depois e, mesmo assim, sem assumir suas responsabilidades, especialmente por acobertar a tortura, o desaparecimento e a execução sumária de opositores [1].
Entretanto, a participação ativa de civis em 1964 em nada legitima a quebra da “regra de ouro” democrática – o voto popular e direto – e, muito menos, confere legalidade ao golpe de Estado eufemisticamente chamado de “intervenção militar”. Por isso, é preciso disparar o alerta democrático sobre, ao menos, três significados que essa “revisão histórica” da presidência do STF nos emite.
Primeiro, que é um ponto alto da coalização entre as elites militares e judiciais na atual crise política. Foi o STF que garantiu a intervenção no resultado das urnas de 2014, dando legalidade ao que carecia de legitimidade: o impedimento de 2016. Depois, sob pressão pública do Comando das Forças Armadas, decidiu, casuisticamente, suspender a garantia constitucional da presunção de inocência até o trânsito em julgado, antecipando o cumprimento de pena, para manter na prisão o “candidato inimigo”, apontado como vencedor das eleições à época. Os principais beneficiados pela decisão do STF foram dois militares, candidatos a presidente e à vice, apoiados pelo Comandante da Escola Superior de Guerra (ESG), por todos os dezenove generais que compõem a Escola e pelo Alto Comando do Exército (ACE), que “empresta” generais do ACE, isto é, da ativa, para aconselharem a candidatura militar na formulação de seu plano de governo e na estratégia eleitoral nos estados. Na véspera de assumir como presidente, Toffoli chamou o general da reserva, ex-integrante do ACE, Fernando Azevedo e Silva, que faz campanha aberta pela candidatura militar, para compor seu gabinete da presidência do STF. Qual será o próximo capítulo dessa coalização?
Segundo, que essa aproximação é um sintoma histórico do autoritarismo das elites judiciais e militares. Vale lembrar que o presidente do STF, em 3 abril de 1964, Álvaro Ribeiro Moutinho Ribeiro da Costa, declarou que “o desafio feito à democracia foi respondido vigorosamente. Sua recuperação tornou-se legítima através do movimento realizado pelas Forças Armadas, já estando restabelecido o poder de governo pela forma constitucional”’. Sublinhe-se, porque importante: assim como Ribeiro Costa, Toffoli agora chama de “movimento” o golpe de 1964. É um reencontro conceitual com sua história. Anthony Pereira, brasilianista do Instituto Brasil na King’s College (ING), demonstrou o alto grau de cooperação entre Judiciário e militares durante a ditadura.[3] Apesar do STF, desde 2004, reconhecer o golpe de 1964,[4] jamais admitiu sua decisiva participação na quebra da regra de ouro da democracia e, consequentemente, na implementação de uma ditadura.
Terceiro, pagamos um alto preço democrático, talvez vital, por não promover reformas institucionais no Judiciário, capazes de conferir garantias de não repetição autoritária dessa elite. Desprezamos a busca pela verdade sobre a participação judicial no autoritarismo, negamos o exercício dessa memória, jamais responsabilizamos, sejam as instituições judiciais ou indivíduos. Agora, junto com boa parte do Alto Comando do Exército, estão francamente tomando medidas graduais que cerceiam as liberdades democráticas, controlam a soberania popular e ameaçam, sem pudor, as frágeis instituições democráticas do país.
É preciso reconhecer que há fortes sinais de um golpe de Estado contra a democracia em plena marcha. Porém, ele é gradual, conforme recomendam os manuais da ESG sobre a ação política. Sobre os próximos capítulos, é importante lembrar do Ato Institucional n.2, de 1965: depois da vitória da oposição nas eleições estaduais, o “movimento de 1964” aumentou de onze para dezesseis o número de ministros do STF, suspendeu as garantias liberais de autonomia judicial (vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade), aumentou as hipóteses de intervenção federal nos estados e extinguiu o pluripartidarismo no Brasil. Será por acaso que a candidatura militar tem propostas muito semelhantes?
Na atual quadra que vivemos, cada vez mais se confirma a “máxima bumerangue” sobre o método autoritário em disputas políticas sob regimes democráticos: quando se opta pela quebra da “regra de ouro” para acessar ao poder, fatalmente “o feitiço se voltará contra o feiticeiro”. A imprensa, depois da censura prévia do ministro Fux, parece que começa “a cair a ficha”. Lewandowski, em encontro com Toffoli logo após sua palestra revisionista, ameaçou “denunciar desvio de poder no STF” caso sua decisão fosse, como desejava Fux, derrubada ilegalmente pelo plenário da Corte.[5] É possível que lembre, por sua idade, que no ano seguinte da “intervenção federal” de 1964 os próprios ministros do STF foram os alvos do autoritarismo.
É hora da democracia se defender de seus algozes. Nas urnas, no domingo, garantindo seu resultado e, a mais difícil de todas, triunfar contra o autoritarismo que grassa sem limites. Porque, lembrando de Guimarães Rosa, o que a democracia nos pede, assim como a vida, é coragem. Tenhamos coragem para defendê-la.
* Rodrigo Lentz é advogado, ex-coordenador da Comissão de Anistia e doutorando em ciência política da Universidade de Brasília com a tese “As relações de poder entre civis e militares no Brasil: o pensamento político da Escola Superior de Guerra pós-88”.
Notas:
Visto de forma isolada, do ponto de vista acadêmico, nomear de “movimento de 1964” é uma distorção imprudente sobre a participação civil no golpe de 1964. Em verdade, boa parte de empresários, ruralistas, políticos, jornalistas, juízes, advogados, religiosos e organizações sociais conspiraram para impedir a posse de João Goulart e dar o chamado “golpe branco” do parlamentarismo em 1961. Depois seguiram com os militares para desestabilizar e derrubar o governo eleito pela soberania popular. Por isso, historiadores, como o evocado por Toffoli, Daniel Araão Filho, argumentam, com razão, que existiu um “movimento civil militar” no golpe 1964, evento esse reconhecido como autoritário por ampla historiografia, nacional e internacional. E militares, com razão, reclamam que assumiram sozinhos o ônus de quebrar as regras do jogo democrático e colocar em prática uma ditadura. A Globo, por exemplo, só foi admitir “seu erro” em 2013, quase cinquenta anos depois e, mesmo assim, sem assumir suas responsabilidades, especialmente por acobertar a tortura, o desaparecimento e a execução sumária de opositores [1].
Entretanto, a participação ativa de civis em 1964 em nada legitima a quebra da “regra de ouro” democrática – o voto popular e direto – e, muito menos, confere legalidade ao golpe de Estado eufemisticamente chamado de “intervenção militar”. Por isso, é preciso disparar o alerta democrático sobre, ao menos, três significados que essa “revisão histórica” da presidência do STF nos emite.
Primeiro, que é um ponto alto da coalização entre as elites militares e judiciais na atual crise política. Foi o STF que garantiu a intervenção no resultado das urnas de 2014, dando legalidade ao que carecia de legitimidade: o impedimento de 2016. Depois, sob pressão pública do Comando das Forças Armadas, decidiu, casuisticamente, suspender a garantia constitucional da presunção de inocência até o trânsito em julgado, antecipando o cumprimento de pena, para manter na prisão o “candidato inimigo”, apontado como vencedor das eleições à época. Os principais beneficiados pela decisão do STF foram dois militares, candidatos a presidente e à vice, apoiados pelo Comandante da Escola Superior de Guerra (ESG), por todos os dezenove generais que compõem a Escola e pelo Alto Comando do Exército (ACE), que “empresta” generais do ACE, isto é, da ativa, para aconselharem a candidatura militar na formulação de seu plano de governo e na estratégia eleitoral nos estados. Na véspera de assumir como presidente, Toffoli chamou o general da reserva, ex-integrante do ACE, Fernando Azevedo e Silva, que faz campanha aberta pela candidatura militar, para compor seu gabinete da presidência do STF. Qual será o próximo capítulo dessa coalização?
Segundo, que essa aproximação é um sintoma histórico do autoritarismo das elites judiciais e militares. Vale lembrar que o presidente do STF, em 3 abril de 1964, Álvaro Ribeiro Moutinho Ribeiro da Costa, declarou que “o desafio feito à democracia foi respondido vigorosamente. Sua recuperação tornou-se legítima através do movimento realizado pelas Forças Armadas, já estando restabelecido o poder de governo pela forma constitucional”’. Sublinhe-se, porque importante: assim como Ribeiro Costa, Toffoli agora chama de “movimento” o golpe de 1964. É um reencontro conceitual com sua história. Anthony Pereira, brasilianista do Instituto Brasil na King’s College (ING), demonstrou o alto grau de cooperação entre Judiciário e militares durante a ditadura.[3] Apesar do STF, desde 2004, reconhecer o golpe de 1964,[4] jamais admitiu sua decisiva participação na quebra da regra de ouro da democracia e, consequentemente, na implementação de uma ditadura.
Terceiro, pagamos um alto preço democrático, talvez vital, por não promover reformas institucionais no Judiciário, capazes de conferir garantias de não repetição autoritária dessa elite. Desprezamos a busca pela verdade sobre a participação judicial no autoritarismo, negamos o exercício dessa memória, jamais responsabilizamos, sejam as instituições judiciais ou indivíduos. Agora, junto com boa parte do Alto Comando do Exército, estão francamente tomando medidas graduais que cerceiam as liberdades democráticas, controlam a soberania popular e ameaçam, sem pudor, as frágeis instituições democráticas do país.
É preciso reconhecer que há fortes sinais de um golpe de Estado contra a democracia em plena marcha. Porém, ele é gradual, conforme recomendam os manuais da ESG sobre a ação política. Sobre os próximos capítulos, é importante lembrar do Ato Institucional n.2, de 1965: depois da vitória da oposição nas eleições estaduais, o “movimento de 1964” aumentou de onze para dezesseis o número de ministros do STF, suspendeu as garantias liberais de autonomia judicial (vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade), aumentou as hipóteses de intervenção federal nos estados e extinguiu o pluripartidarismo no Brasil. Será por acaso que a candidatura militar tem propostas muito semelhantes?
Na atual quadra que vivemos, cada vez mais se confirma a “máxima bumerangue” sobre o método autoritário em disputas políticas sob regimes democráticos: quando se opta pela quebra da “regra de ouro” para acessar ao poder, fatalmente “o feitiço se voltará contra o feiticeiro”. A imprensa, depois da censura prévia do ministro Fux, parece que começa “a cair a ficha”. Lewandowski, em encontro com Toffoli logo após sua palestra revisionista, ameaçou “denunciar desvio de poder no STF” caso sua decisão fosse, como desejava Fux, derrubada ilegalmente pelo plenário da Corte.[5] É possível que lembre, por sua idade, que no ano seguinte da “intervenção federal” de 1964 os próprios ministros do STF foram os alvos do autoritarismo.
É hora da democracia se defender de seus algozes. Nas urnas, no domingo, garantindo seu resultado e, a mais difícil de todas, triunfar contra o autoritarismo que grassa sem limites. Porque, lembrando de Guimarães Rosa, o que a democracia nos pede, assim como a vida, é coragem. Tenhamos coragem para defendê-la.
* Rodrigo Lentz é advogado, ex-coordenador da Comissão de Anistia e doutorando em ciência política da Universidade de Brasília com a tese “As relações de poder entre civis e militares no Brasil: o pensamento político da Escola Superior de Guerra pós-88”.
Notas:
[1] A respeito, ver a dissertação de mestrado “A imprensa na Justiça de Transição: o problema da ‘cumplicidade civil’ nos casos de Brasil e Argentina”. Disponível em: .
[2] Folha de S.Paulo, Na véspera do julgamento sobre Lula, comandante do Exército diz repudiar impunidade, 3 abr. 2018.
[3] PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
[4] Conforme matéria publicada em 1º de abril de 2004 pelo próprio tribunal: “o Supremo Tribunal Federal e o Golpe de 1964”. Disponível em: .
[5] Revista Época, “Em conversa com Toffoli, Lewandowski ameaçou denunciar desvio de poder no STF”, 1º out. 2018.
0 comentários:
Postar um comentário