Com a sua habitual sinceridade e, aparentemente, total falta de senso de oportunidade, o general Hamilton Mourão, vice-presidente eleito, revelou poucas horas antes do anúncio oficial o arranjo que levou o juiz Sergio Moro a aceitar o convite para assumir um “superministério” da Justiça no governo de Jair Bolsonaro.
Segundo Mourão, a sondagem ficou a cargo de outro futuro “superministro” (esta administração mais parece um filme da Marvel), o economista Paulo Guedes, ainda no primeiro turno. “Isso faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”, descreveu o militar.
Vamos esclarecer a situação: Moro foi sondado quando a campanha estava em curso. Mesmo assim, não teve pudor em valer-se de sua posição de magistrado para dar uma força ao candidato que lhe prometera um cargo no governo e acenara com outra possibilidade, uma cadeira no Supremo Tribunal Federal.
Uma semana antes do primeiro turno, quando a ascensão de Bolsonaro nas pesquisas ainda não tinha se transformado em um tsunami, o juiz abriu o sigilo de trechos da delação do ex-ministro Antonio Palocci que repisavam acusações contra Lula e o Partido dos Trabalhadores, cujo candidato Fernando Haddad experimentava até então certo crescimento na preferência do eleitorado.
No despacho que avocou trechos da delação e os tornou públicos, Moro deixou claro que as acusações de Palocci não teriam nenhuma serventia no inquérito que investigava o suposto pagamento de propina de empreiteiras na reforma de um sítio em Atibaia atribuído ao ex-presidente Lula.
Sem utilidade para o processo, as declarações do ex-ministro alimentaram por dias o noticiário e engrossaram as iniciativas, entre elas a farta distribuição de notícias falsas contra a candidatura de Fernando Haddad nas redes sociais, para reavivar o antipetismo.
“É de uma gravidade espantosa a revelação de Mourão. É a prova testemunhal da relação criminosa e perversa da Lava Jato e Bolsonaro. Quando Moro vazou a delação de Palocci, já se sabia que, se Bolsonaro fosse eleito, ele seria ministro”, protesta o deputado Paulo Pimenta, líder da bancada do PT na Câmara dos Deputados.
“Agora fica mais fácil entender a implacável perseguição da Lava Jato contra Lula, o desespero de Moro para que o habeas corpus para soltá-lo não fosse cumprido e a decisão para que permanecesse isolado durante a campanha, sem nenhum contato com a imprensa.”
A atuação na reta final do primeiro turno, que a revelação de Mourão permite definir como deliberada, partidária e eleitoreira, coroa a atuação parcial de Moro desde o início da Operação Lava Jato. Para eliminar o principal adversário de Bolsonaro na corrida presidencial, ele afrontou repetidas vezes o Estado Democrático de Direito.
Ordenou a espetaculosa condução coercitiva de Lula sem antes chamá-lo para depor, mandou grampear o escritório dos advogados de defesa, divulgou escutas ilegais com a então presidente da República, Dilma Rousseff, entre outras arbitrariedades consentidas pelas cortes superiores.
De olho no calendário eleitoral e articulado com os desembargadores do TRF da 4ª Região, Moro acelerou a condenação do petista sem provas, por “crimes indeterminados”. Concluída a interdição judicial de Lula, franco favorito a vencer as eleições deste ano, empenhou-se para mantê-lo amordaçado. Decidiu até mesmo adiar depoimentos do réu para impedir qualquer manifestação pública que pudesse influir no processo eleitoral.
De fato, poucos se empenharam tanto em impulsionar a campanha do capitão da reserva do Exército. O inquisidor de Curitiba nem precisaria ter se exposto tanto, como fez ao parabenizar Bolsonaro pela vitória com 98% das urnas apuradas. “Encerradas as eleições, cabe congratular o presidente eleito e desejar que faça um bom governo”, manifestou-se por meio de nota.
Exultante, a esposa do magistrado, Rosângela Moro, compartilhou nas redes sociais um vídeo, no qual a estátua do Cristo Redentor se move em reverência ao número 17. “Feliz”, dizia a legenda. Em outro post, divulgou uma ilustração do mapa do Brasil, com a frase “Sob nova direção”.
Bolsonaro só revelou a intenção de nomear Moro para o Ministério da Justiça ou para o STF na segunda-feira 29, em sua primeira entrevista exclusiva após a vitória, para a TV Record de Edir Macedo. Depois, diante da bancada do Jornal Nacional, da Rede Globo, reiterou o convite público, deixando a critério do magistrado escolher o caminho a trilhar.
“É um homem com passado exemplar no combate à corrupção e, em qualquer uma das duas casas, levaria avante a sua proposta”, afirmou o novo presidente. “Fico honrado com a lembrança. Caso efetivado oportunamente o convite, será objeto de ponderada discussão e reflexão”, disse Moro no dia seguinte, deixando a expectativa no ar.
Após encontrar-se com Bolsonaro no Rio de Janeiro, na manhã da quinta-feira 1º de novembro, Moro pôs fim às especulações ao anunciar, por meio de nota, ter aceitado o “honrado convite”. Para o juiz paranaense, o Ministério da Justiça é uma forma de antecipar a sua ida para Brasília, uma vez que a primeira vaga na Suprema Corte só deve ser aberta em 2020, quando o ministro Celso de Mello completa 75 anos e será aposentado compulsoriamente.
“Fiz com certo pesar, pois terei de abandonar 22 anos de magistratura. No entanto, a perspectiva de implementar uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado levaram-me a tomar essa decisão”, afirmou o juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba.
“A Operação Lava Jato seguirá em Curitiba com os valorosos juízes locais. De todo modo, para evitar controvérsias desnecessárias, devo desde logo afastar-me de novas audiências.” Curiosa mudança. Em novembro de 2016, em entrevista a O Estado de S. Paulo, Moro foi peremptório: “Jamais entraria para a política”.
O magistrado deixou o condomínio onde mora Bolsonaro por volta das 10h45 da quinta-feira 1º, após cerca de uma hora e meia de reunião. Na saída, Moro chegou a descer do carro onde estava para falar com jornalistas, mas desistiu de dar qualquer declaração após o tumulto criado em sua volta.
A ele, foi oferecido o tal superministério, fusão das estruturas da Justiça, Segurança Pública, Transparência e Controladoria-Geral da União e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), este último ligado atualmente ao Ministério da Fazenda. Dessa forma, o juiz teria não apenas o controle da Polícia Federal, mas livre acesso às movimentações financeiras de qualquer cidadão.
Em novembro 2016, a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça havia dispensado a exigência de autorização judicial para que a corporação policial pudesse consultar dados do Coaf, mas jamais houve tanto poder concentrado nas mãos de um único ministro. Ademais, o que ocorreria se o órgão de fiscalização e controle interno do governo identificasse algum malfeito na pasta a qual estaria subordinado?
Pelo Twitter, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, dono de uma invejável fortuna, celebrou a indicação de Moro, paladino do combate à corrupção que jamais o importunou. “Preferia vê-lo no STF”, opinou o tucano. Exultantes, auxiliares de Bolsonaro já especulam sobre a possibilidade de o juiz disputar a Presidência da República em 2022, como sucessor do “mito”.
Para o senador petista Lindbergh Farias, essa é “a mais escandalosa promoção” por serviços prestados. “Depois de prender Lula e, objetivamente, influenciar na disputa eleitoral em benefício de Bolsonaro, Moro recebe como prêmio uma cadeira privilegiada para passar um bom ano revirando escaninhos e buscando vírgulas para gerar manchetes e perseguir o PT, a CUT e os governos populares, enquanto aguarda a aposentadoria de Celso de Mello no STF.”
“Moro aceitou integrar a equipe de Bolsonaro por saber que é muito complicada a nomeação de um juiz de primeira instância para o Supremo, passando por cima de grandes nomes da advocacia, do Ministério Público, do STJ, de tribunais regionais”, observa Gilberto Bercovici, professor da Faculdade de Direito da USP. “A nomeação de um ministro da Justiça não é, porém, algo tão incomum. Foi assim com Alexandre de Moraes, Maurício Corrêa e Paulo Brossard, para citar alguns exemplos.
Mas não deixa de ser irônica essa situação. Nos últimos anos, muitos magistrados de cortes superiores passaram a mão na cabeça de Moro, perdoaram os seus pecados e, agora, podem ficar subordinados a ele. Outra questão: o Senado vai aprovar a nomeação de um juiz que criminalizou a política?”
Professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo, o advogado Pedro Serrano estranha a forma como o anúncio foi feito. “Nunca vi um ministro ser convidado em público. Não é assim que se faz. Normalmente, é feita uma sondagem discreta, até para evitar constrangimentos ao presidente em caso de negativa”, observou Serrano, antes de Mourão entregar o jogo de cena. “Ao aceitar esse convite, Moro apenas reforça a impressão de que atuou politicamente na Lava Jato desde o início.”
Não era preciso esperar a confissão de Moro para constatar que o magistrado está na origem do golpe de 2016, e um dia haverá de prestar contas à história. Como apontaram diferentes delatores, a corrupção na Petrobras remonta ao período do ditador Ernesto Geisel (1974-1979), em que a estatal era comandada por Shigeaki Ueki.
Com novos atores, o esquema manteve-se ativo durante todos os governos democráticos que se sucederam, inclusive na gestão do tucano Fernando Henrique Cardoso, vestal intocável. Moro optou, porém, por circunscrever a operação aos malfeitos ocorridos nos governos petistas, elegendo Lula como o seu alvo preferencial.
O magistrado, é forçoso reconhecer, jamais se preocupou em dissimular a atuação política e nunca hesitou em participar de convescotes com adversários do PT. Confraternizou com João Doria em Nova York e participou de palestras promovidas pelo Lide, empresa de eventos mantida pelo tucano, recém-eleito governador de São Paulo após pregar o voto “BolsoDoria”.
Em uma premiação promovida pela revista IstoÉ, foi flagrado em animadas conversas ao pé do ouvido com o senador Aécio Neves, recordista de inquéritos na Lava Jato. Michel Temer também figurava na foto. Da mesma forma, posou para selfies com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o “Botafogo” das planilhas da Odebrecht.
“Moro não é juiz, é político e deveria assumir logo esse ministério. Assim, ele poderia mostrar como pode ajudar o Brasil sem os arbítrios judiciais”, afirmou o pedetista Ciro Gomes, que terminou a corrida presidencial em terceiro lugar, enquanto Moro ainda dissimulava hesitação diante da proposta de assumir a pasta da Justiça.
Nas alegações finais do processo relacionado à suposta compra de um terreno para o Instituto Lula, a defesa do ex-presidente voltou a apontar a suspeição de Moro. Como ignorar a flagrante parcialidade do magistrado após essa nebulosa negociação com Bolsonaro em plena campanha?
Na quarta-feira 31, a Executiva Nacional do PT disse que vai reforçar a campanha Lula Livre no Brasil e no exterior. A decisão de Moro acabou por reforçar a denúncia de perseguição política contra o ex-presidente. Em março do próximo ano, o Comitê de Direitos Humanos da ONU deve analisar a queixa apresentada pela defesa de Lula.
Difícil será explicar aos conselheiros das Nações Unidas a declaração do candidato derrotado do PT à Presidência, que em 17 de outubro afirmou ao SBT que Moro não apresentou provas contra Lula, mas no geral “fez um bom trabalho”. Desconfia-se que a bajulação não rendeu um único e escasso voto a Haddad.
Para alguns, a maior surpresa foi a súbita admiração manifestada por Bolsonaro. Em março de 2017, o capitão perseguiu Moro no saguão do aeroporto de Brasília. Ao aproximar-se, bateu continência para o magistrado, que o cumprimentou sem entusiasmo e tratou de apertar o passo. A fria reação, registrada em vídeo, virou motivo de chacota nas redes sociais contra o então parlamentar.
“Moro é um juiz partidário, antipetista, que em momento algum se declarou impedido de julgar as causas do PT”, afirma Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça de Dilma Rousseff. “Engana-se, porém, quem acha que ele é tucano. Antes de mais nada, ele é antipetista. Até então o antipetismo estava centralizado no tucanato. Agora, tem outro dono.”
A corrida presidencial ficou marcada por um ativismo sem precedentes de setores do Judiciário, sobretudo de magistrados de primeiro grau. O “Partido da Justiça” entrou de cabeça na coligação de Bolsonaro. A três dias do segundo turno, para citar o episódio mais assombroso, uma ação coordenada de juízes eleitorais determinou batidas policiais em 17 universidades de 9 estados.
“Foi uma clara tentativa de censurar alunos e professores, que se manifestavam de forma genérica contra o autoritarismo ou a favor dos direitos humanos”, lamenta Bercovici. “Repare o absurdo: proibiram a fixação de faixas contra o fascismo porque supostamente isso prejudicaria o candidato do PSL. Bolsonaro foi declarado fascista por decisão judicial.”
Diante da avalanche de manifestações de repúdio à tentativa de intimidação, a ministra Cármen Lúcia, do STF, concedeu uma liminar suspendendo todas as ações policiais em universidades. Na quarta-feira 31, por unanimidade, a Corte confirmou a decisão. “São atos inequivocamente autoritários”, observou Luís Roberto Barroso em seu voto. “Remontam a um passado que não queremos que volte.”
Os ministros do Supremo só passaram a reagir com mais firmeza após a divulgação de um vídeo no qual Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito, afirmou que “para fechar o STF bastam um cabo e um soldado”. Antes disso, o vale-tudo corria solto. Logo no início da campanha, o presidente da Corte, Dias Toffoli, chegou a confidenciar, durante um evento para celebrar os 30 anos da Constituição, que, após uma aula do ministro da Justiça Torquato Jardim, passou a se referir ao golpe de 1964 como “movimento”.
Democrata, a desembargadora paulista Kenarik Boujikian recriminou a declaração, a “tripudiar sobre a história brasileira”. Acabou coagida pelo Conselho Nacional de Justiça, que estabeleceu um prazo de 15 dias para a magistrada “dar explicações” sobre a crítica.
Da mesma forma, a atuação do Tribunal Superior Eleitoral ficou maculada por episódios de parcialidade. No segundo turno, o ministro Luís Felipe Salomão chegou a impedir Haddad de associar o adversário à tortura na propaganda eleitoral. “Foi uma decisão teratológica, a campanha petista apresentava declarações públicas do Bolsonaro”, observa Bercovici.
“No caso de denúncias mais graves, como a dos empresários que financiaram disparos em massa de notícias falsas contra o PT no WhatsApp, os ministros da Corte foram absolutamente lenientes, nem sequer chamaram os acusados para depor. Não expediram um único mandado de busca e apreensão. Todos os rastros puderam ser apagados.”
O WhatsApp, aplicativo que pertence desde 2014 ao Facebook, bloqueou contas ligadas às quatro agências citadas na denúncia feita pela Folha de S.Paulo. Anunciou ainda ter banido 100 mil usuários em uma tentativa de conter desinformação, spam e notícias falsas.
A iniciativa, convém lembrar, partiu da própria empresa, e não por provocação da Justiça Eleitoral, que se limitou a acolher uma representação do PT e notificar Bolsonaro e representantes das empresas acusadas a apresentar defesa.
“A falta de isonomia entre os candidatos se fez notar, mas não acredito que a atuação do TSE tenha interferido no resultado final das eleições”, pondera Serrano. “Não tenho dúvidas de que houve, porém, forte ativismo por parte de juízes da primeira instância, como o próprio Supremo reconheceu, ao suspender as decisões que ordenaram ações policiais nas universidades. Essas batidas representam profunda agressão à autonomia universitária e à liberdade de pensamento. Não há sociedade democrática sem centros de reflexão com espaço garantido para o livre-pensar.”
Entre tantos cabos eleitorais de Bolsonaro, o Partido da Injustiça, como se vê, foi um dos mais ativos.
Segundo Mourão, a sondagem ficou a cargo de outro futuro “superministro” (esta administração mais parece um filme da Marvel), o economista Paulo Guedes, ainda no primeiro turno. “Isso faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”, descreveu o militar.
Vamos esclarecer a situação: Moro foi sondado quando a campanha estava em curso. Mesmo assim, não teve pudor em valer-se de sua posição de magistrado para dar uma força ao candidato que lhe prometera um cargo no governo e acenara com outra possibilidade, uma cadeira no Supremo Tribunal Federal.
Uma semana antes do primeiro turno, quando a ascensão de Bolsonaro nas pesquisas ainda não tinha se transformado em um tsunami, o juiz abriu o sigilo de trechos da delação do ex-ministro Antonio Palocci que repisavam acusações contra Lula e o Partido dos Trabalhadores, cujo candidato Fernando Haddad experimentava até então certo crescimento na preferência do eleitorado.
No despacho que avocou trechos da delação e os tornou públicos, Moro deixou claro que as acusações de Palocci não teriam nenhuma serventia no inquérito que investigava o suposto pagamento de propina de empreiteiras na reforma de um sítio em Atibaia atribuído ao ex-presidente Lula.
Sem utilidade para o processo, as declarações do ex-ministro alimentaram por dias o noticiário e engrossaram as iniciativas, entre elas a farta distribuição de notícias falsas contra a candidatura de Fernando Haddad nas redes sociais, para reavivar o antipetismo.
“É de uma gravidade espantosa a revelação de Mourão. É a prova testemunhal da relação criminosa e perversa da Lava Jato e Bolsonaro. Quando Moro vazou a delação de Palocci, já se sabia que, se Bolsonaro fosse eleito, ele seria ministro”, protesta o deputado Paulo Pimenta, líder da bancada do PT na Câmara dos Deputados.
“Agora fica mais fácil entender a implacável perseguição da Lava Jato contra Lula, o desespero de Moro para que o habeas corpus para soltá-lo não fosse cumprido e a decisão para que permanecesse isolado durante a campanha, sem nenhum contato com a imprensa.”
A atuação na reta final do primeiro turno, que a revelação de Mourão permite definir como deliberada, partidária e eleitoreira, coroa a atuação parcial de Moro desde o início da Operação Lava Jato. Para eliminar o principal adversário de Bolsonaro na corrida presidencial, ele afrontou repetidas vezes o Estado Democrático de Direito.
Ordenou a espetaculosa condução coercitiva de Lula sem antes chamá-lo para depor, mandou grampear o escritório dos advogados de defesa, divulgou escutas ilegais com a então presidente da República, Dilma Rousseff, entre outras arbitrariedades consentidas pelas cortes superiores.
De olho no calendário eleitoral e articulado com os desembargadores do TRF da 4ª Região, Moro acelerou a condenação do petista sem provas, por “crimes indeterminados”. Concluída a interdição judicial de Lula, franco favorito a vencer as eleições deste ano, empenhou-se para mantê-lo amordaçado. Decidiu até mesmo adiar depoimentos do réu para impedir qualquer manifestação pública que pudesse influir no processo eleitoral.
De fato, poucos se empenharam tanto em impulsionar a campanha do capitão da reserva do Exército. O inquisidor de Curitiba nem precisaria ter se exposto tanto, como fez ao parabenizar Bolsonaro pela vitória com 98% das urnas apuradas. “Encerradas as eleições, cabe congratular o presidente eleito e desejar que faça um bom governo”, manifestou-se por meio de nota.
Exultante, a esposa do magistrado, Rosângela Moro, compartilhou nas redes sociais um vídeo, no qual a estátua do Cristo Redentor se move em reverência ao número 17. “Feliz”, dizia a legenda. Em outro post, divulgou uma ilustração do mapa do Brasil, com a frase “Sob nova direção”.
Bolsonaro só revelou a intenção de nomear Moro para o Ministério da Justiça ou para o STF na segunda-feira 29, em sua primeira entrevista exclusiva após a vitória, para a TV Record de Edir Macedo. Depois, diante da bancada do Jornal Nacional, da Rede Globo, reiterou o convite público, deixando a critério do magistrado escolher o caminho a trilhar.
“É um homem com passado exemplar no combate à corrupção e, em qualquer uma das duas casas, levaria avante a sua proposta”, afirmou o novo presidente. “Fico honrado com a lembrança. Caso efetivado oportunamente o convite, será objeto de ponderada discussão e reflexão”, disse Moro no dia seguinte, deixando a expectativa no ar.
Após encontrar-se com Bolsonaro no Rio de Janeiro, na manhã da quinta-feira 1º de novembro, Moro pôs fim às especulações ao anunciar, por meio de nota, ter aceitado o “honrado convite”. Para o juiz paranaense, o Ministério da Justiça é uma forma de antecipar a sua ida para Brasília, uma vez que a primeira vaga na Suprema Corte só deve ser aberta em 2020, quando o ministro Celso de Mello completa 75 anos e será aposentado compulsoriamente.
“Fiz com certo pesar, pois terei de abandonar 22 anos de magistratura. No entanto, a perspectiva de implementar uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado levaram-me a tomar essa decisão”, afirmou o juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba.
“A Operação Lava Jato seguirá em Curitiba com os valorosos juízes locais. De todo modo, para evitar controvérsias desnecessárias, devo desde logo afastar-me de novas audiências.” Curiosa mudança. Em novembro de 2016, em entrevista a O Estado de S. Paulo, Moro foi peremptório: “Jamais entraria para a política”.
O magistrado deixou o condomínio onde mora Bolsonaro por volta das 10h45 da quinta-feira 1º, após cerca de uma hora e meia de reunião. Na saída, Moro chegou a descer do carro onde estava para falar com jornalistas, mas desistiu de dar qualquer declaração após o tumulto criado em sua volta.
A ele, foi oferecido o tal superministério, fusão das estruturas da Justiça, Segurança Pública, Transparência e Controladoria-Geral da União e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), este último ligado atualmente ao Ministério da Fazenda. Dessa forma, o juiz teria não apenas o controle da Polícia Federal, mas livre acesso às movimentações financeiras de qualquer cidadão.
Em novembro 2016, a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça havia dispensado a exigência de autorização judicial para que a corporação policial pudesse consultar dados do Coaf, mas jamais houve tanto poder concentrado nas mãos de um único ministro. Ademais, o que ocorreria se o órgão de fiscalização e controle interno do governo identificasse algum malfeito na pasta a qual estaria subordinado?
Pelo Twitter, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, dono de uma invejável fortuna, celebrou a indicação de Moro, paladino do combate à corrupção que jamais o importunou. “Preferia vê-lo no STF”, opinou o tucano. Exultantes, auxiliares de Bolsonaro já especulam sobre a possibilidade de o juiz disputar a Presidência da República em 2022, como sucessor do “mito”.
Para o senador petista Lindbergh Farias, essa é “a mais escandalosa promoção” por serviços prestados. “Depois de prender Lula e, objetivamente, influenciar na disputa eleitoral em benefício de Bolsonaro, Moro recebe como prêmio uma cadeira privilegiada para passar um bom ano revirando escaninhos e buscando vírgulas para gerar manchetes e perseguir o PT, a CUT e os governos populares, enquanto aguarda a aposentadoria de Celso de Mello no STF.”
“Moro aceitou integrar a equipe de Bolsonaro por saber que é muito complicada a nomeação de um juiz de primeira instância para o Supremo, passando por cima de grandes nomes da advocacia, do Ministério Público, do STJ, de tribunais regionais”, observa Gilberto Bercovici, professor da Faculdade de Direito da USP. “A nomeação de um ministro da Justiça não é, porém, algo tão incomum. Foi assim com Alexandre de Moraes, Maurício Corrêa e Paulo Brossard, para citar alguns exemplos.
Mas não deixa de ser irônica essa situação. Nos últimos anos, muitos magistrados de cortes superiores passaram a mão na cabeça de Moro, perdoaram os seus pecados e, agora, podem ficar subordinados a ele. Outra questão: o Senado vai aprovar a nomeação de um juiz que criminalizou a política?”
Professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo, o advogado Pedro Serrano estranha a forma como o anúncio foi feito. “Nunca vi um ministro ser convidado em público. Não é assim que se faz. Normalmente, é feita uma sondagem discreta, até para evitar constrangimentos ao presidente em caso de negativa”, observou Serrano, antes de Mourão entregar o jogo de cena. “Ao aceitar esse convite, Moro apenas reforça a impressão de que atuou politicamente na Lava Jato desde o início.”
Não era preciso esperar a confissão de Moro para constatar que o magistrado está na origem do golpe de 2016, e um dia haverá de prestar contas à história. Como apontaram diferentes delatores, a corrupção na Petrobras remonta ao período do ditador Ernesto Geisel (1974-1979), em que a estatal era comandada por Shigeaki Ueki.
Com novos atores, o esquema manteve-se ativo durante todos os governos democráticos que se sucederam, inclusive na gestão do tucano Fernando Henrique Cardoso, vestal intocável. Moro optou, porém, por circunscrever a operação aos malfeitos ocorridos nos governos petistas, elegendo Lula como o seu alvo preferencial.
O magistrado, é forçoso reconhecer, jamais se preocupou em dissimular a atuação política e nunca hesitou em participar de convescotes com adversários do PT. Confraternizou com João Doria em Nova York e participou de palestras promovidas pelo Lide, empresa de eventos mantida pelo tucano, recém-eleito governador de São Paulo após pregar o voto “BolsoDoria”.
Em uma premiação promovida pela revista IstoÉ, foi flagrado em animadas conversas ao pé do ouvido com o senador Aécio Neves, recordista de inquéritos na Lava Jato. Michel Temer também figurava na foto. Da mesma forma, posou para selfies com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o “Botafogo” das planilhas da Odebrecht.
“Moro não é juiz, é político e deveria assumir logo esse ministério. Assim, ele poderia mostrar como pode ajudar o Brasil sem os arbítrios judiciais”, afirmou o pedetista Ciro Gomes, que terminou a corrida presidencial em terceiro lugar, enquanto Moro ainda dissimulava hesitação diante da proposta de assumir a pasta da Justiça.
Nas alegações finais do processo relacionado à suposta compra de um terreno para o Instituto Lula, a defesa do ex-presidente voltou a apontar a suspeição de Moro. Como ignorar a flagrante parcialidade do magistrado após essa nebulosa negociação com Bolsonaro em plena campanha?
Na quarta-feira 31, a Executiva Nacional do PT disse que vai reforçar a campanha Lula Livre no Brasil e no exterior. A decisão de Moro acabou por reforçar a denúncia de perseguição política contra o ex-presidente. Em março do próximo ano, o Comitê de Direitos Humanos da ONU deve analisar a queixa apresentada pela defesa de Lula.
Difícil será explicar aos conselheiros das Nações Unidas a declaração do candidato derrotado do PT à Presidência, que em 17 de outubro afirmou ao SBT que Moro não apresentou provas contra Lula, mas no geral “fez um bom trabalho”. Desconfia-se que a bajulação não rendeu um único e escasso voto a Haddad.
Para alguns, a maior surpresa foi a súbita admiração manifestada por Bolsonaro. Em março de 2017, o capitão perseguiu Moro no saguão do aeroporto de Brasília. Ao aproximar-se, bateu continência para o magistrado, que o cumprimentou sem entusiasmo e tratou de apertar o passo. A fria reação, registrada em vídeo, virou motivo de chacota nas redes sociais contra o então parlamentar.
“Moro é um juiz partidário, antipetista, que em momento algum se declarou impedido de julgar as causas do PT”, afirma Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça de Dilma Rousseff. “Engana-se, porém, quem acha que ele é tucano. Antes de mais nada, ele é antipetista. Até então o antipetismo estava centralizado no tucanato. Agora, tem outro dono.”
A corrida presidencial ficou marcada por um ativismo sem precedentes de setores do Judiciário, sobretudo de magistrados de primeiro grau. O “Partido da Justiça” entrou de cabeça na coligação de Bolsonaro. A três dias do segundo turno, para citar o episódio mais assombroso, uma ação coordenada de juízes eleitorais determinou batidas policiais em 17 universidades de 9 estados.
“Foi uma clara tentativa de censurar alunos e professores, que se manifestavam de forma genérica contra o autoritarismo ou a favor dos direitos humanos”, lamenta Bercovici. “Repare o absurdo: proibiram a fixação de faixas contra o fascismo porque supostamente isso prejudicaria o candidato do PSL. Bolsonaro foi declarado fascista por decisão judicial.”
Diante da avalanche de manifestações de repúdio à tentativa de intimidação, a ministra Cármen Lúcia, do STF, concedeu uma liminar suspendendo todas as ações policiais em universidades. Na quarta-feira 31, por unanimidade, a Corte confirmou a decisão. “São atos inequivocamente autoritários”, observou Luís Roberto Barroso em seu voto. “Remontam a um passado que não queremos que volte.”
Os ministros do Supremo só passaram a reagir com mais firmeza após a divulgação de um vídeo no qual Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito, afirmou que “para fechar o STF bastam um cabo e um soldado”. Antes disso, o vale-tudo corria solto. Logo no início da campanha, o presidente da Corte, Dias Toffoli, chegou a confidenciar, durante um evento para celebrar os 30 anos da Constituição, que, após uma aula do ministro da Justiça Torquato Jardim, passou a se referir ao golpe de 1964 como “movimento”.
Democrata, a desembargadora paulista Kenarik Boujikian recriminou a declaração, a “tripudiar sobre a história brasileira”. Acabou coagida pelo Conselho Nacional de Justiça, que estabeleceu um prazo de 15 dias para a magistrada “dar explicações” sobre a crítica.
Da mesma forma, a atuação do Tribunal Superior Eleitoral ficou maculada por episódios de parcialidade. No segundo turno, o ministro Luís Felipe Salomão chegou a impedir Haddad de associar o adversário à tortura na propaganda eleitoral. “Foi uma decisão teratológica, a campanha petista apresentava declarações públicas do Bolsonaro”, observa Bercovici.
“No caso de denúncias mais graves, como a dos empresários que financiaram disparos em massa de notícias falsas contra o PT no WhatsApp, os ministros da Corte foram absolutamente lenientes, nem sequer chamaram os acusados para depor. Não expediram um único mandado de busca e apreensão. Todos os rastros puderam ser apagados.”
O WhatsApp, aplicativo que pertence desde 2014 ao Facebook, bloqueou contas ligadas às quatro agências citadas na denúncia feita pela Folha de S.Paulo. Anunciou ainda ter banido 100 mil usuários em uma tentativa de conter desinformação, spam e notícias falsas.
A iniciativa, convém lembrar, partiu da própria empresa, e não por provocação da Justiça Eleitoral, que se limitou a acolher uma representação do PT e notificar Bolsonaro e representantes das empresas acusadas a apresentar defesa.
“A falta de isonomia entre os candidatos se fez notar, mas não acredito que a atuação do TSE tenha interferido no resultado final das eleições”, pondera Serrano. “Não tenho dúvidas de que houve, porém, forte ativismo por parte de juízes da primeira instância, como o próprio Supremo reconheceu, ao suspender as decisões que ordenaram ações policiais nas universidades. Essas batidas representam profunda agressão à autonomia universitária e à liberdade de pensamento. Não há sociedade democrática sem centros de reflexão com espaço garantido para o livre-pensar.”
Entre tantos cabos eleitorais de Bolsonaro, o Partido da Injustiça, como se vê, foi um dos mais ativos.
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