Por André Rosa, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
O debate político foi tomado de assalto por um surto de ódio. Nas redes sociais, a mentira e a verdade ganham pesos semelhantes e são postas lado a lado, como se iguais fossem. Não importa o quão inverossímil possa parecer o disparate: os compartilhamentos em massa poderão legitimá-lo como uma realidade em questão de horas. Nesse furacão, os números dizem muito pouco, muito menos do que realmente deveriam. Há poucos dias, o jornal Folha de S. Paulo noticiou que, a cada três dias, uma criança é internada após acidente doméstico com arma (FSP, 8.fev.2019). Frequente também, nos jornais, notícias que levantam a morte de policiais, a grande maioria de folga. Mesmo com porte de armas e treinamento. O próprio vice-presidente, Hamilton Mourão, reconheceu que a posse de armas não é medida contra a violência.
Não podendo contrariar estudos e estatísticas, os adeptos da truculência amiúde recorrem a uma conhecida questão de apelo emocional: e se fosse o seu filho?, perguntam, ao se referir a uma vítima de latrocínio. A pergunta é um coringa e pode servir para justificar muitas coisas, como a pena de morte, o direito à posse e ao porte de armas, a tortura ou mesmo a execução sumária. É um apelo à cólera, à raiva; não há, aqui, uma tentativa verdadeira que mire a raiz dos problemas que devoram o Brasil, mas uma investida que busca usar o medo e o sofrimento das pessoas para construir um discurso político demagógico. Na televisão, programas sensacionalistas se aproveitam da sangueira para atingir esse sentimento nos telespectadores - e também para enriquecer. Políticos da extrema-direita brasileira, alguns em altos cargos, por muitos anos usaram nomes como o de Liana Friedenbach (assassinada e violentada em 2003, junto com seu namorado Felipe Caffé) para fazer palanque, ao limite que o próprio pai da vítima, Ari Friedenbach, disse se sentir “usado”. A educação, o humanismo e a luta contra a desigualdade social nunca aparecem como opções. Dito isso, quero contar uma história ao leitor.
E se fosse o seu filho? A pergunta me remete, inevitavelmente, ao poeta maranhense Odylo Costa Filho, membro da Academia Brasileira de Letras, e ao destino triste de seu garoto. Odylo Costa Neto, filho do poeta, foi morto em 1963, num assalto, em uma rua do bairro Santa Teresa, no Rio. Tinha dezoito anos e “uma vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Odylo, o neto, estava com a sua namorada, Irene Loewenstein, quando foi abordado. “Após responder que nada possuía para satisfazer aos assaltantes, recebeu ordem para fugir e deixar a moça. Num gesto de bravura e coragem, enfrentou os bandidos em defesa da jovem, sendo assassinado fria e covardemente” (Correio da Manhã, 12 de março de 1963, p. 5). O suspeito era menor de idade.
Foi poeta na pena e na vida. Logo após a tragédia, o pai, em um gesto muito humano, iniciou uma campanha pela revisão do sistema de assistência à infância abandonada. A sua importante luta chamou a atenção contra o abandono do Serviço de Assistência ao Menor (Sam), depois extinto, e participou da criação da Fundação Nacional de Assistência ao Menor (Funabem), em 1964. Odylo Costa Filho, que perdoou publicamente o assassino do seu filho, pensava que os jovens infratores eram vítimas de problemas sociais ainda mais graves, como conta a sua filha, Antônia. “Ele não ficou amigo dos bandidos, nem teve uma atitude piegas. Ele acreditava que meninos não podem ser julgados como adultos. Que esses jovens precisavam de ajuda, educação e apoio. A Funabem não deu certo por falta de vontade política de quem governa e, hoje, o problema continua o mesmo.” (O Globo, 23.ago.2015).
Depois de quase quatro décadas, desde que publicou os seus dois primeiros livros de poesia, a morte do filho fez Odylo Costa voltar a escrever versos. Em 1966, publicou o livro “Tempo de Lisboa e outros poemas”, em que dedica um soneto ao seu herdeiro.
Em tempos de cólera, “quando a insensatez humana continua a nos ameaçar com a terra arrasada” (Millôr Fernandes), convém lembrar histórias como a Odylo Costa Filho, que compreendeu que a poesia era inseparável da vida.
A meu filho
Recorro a ti para não separar-me
deste chão de sargaços mas de flores,
em que há bichos que amaste e mais os frutos
que com tuas mãos plantavas e colhias
Por essas mãos te peço que me ajudes
e que afastes de mim com os dentes alvos
do teu riso contido mas presente
a tentação da morte voluntária.
Não deixes, filho meu, que a dor de amar-te
me tire o gosto do terreno barro
e a coragem dos lúcidos deveres.
Que estas árvores guardam, no céu puro,
entre rastros de estrelas, a lembrança
dos teus humanos olhos deslumbrados.
(Tempo de Lisboa e outros poemas, 1966, Livraria Martins Editora, p. 59)
Não podendo contrariar estudos e estatísticas, os adeptos da truculência amiúde recorrem a uma conhecida questão de apelo emocional: e se fosse o seu filho?, perguntam, ao se referir a uma vítima de latrocínio. A pergunta é um coringa e pode servir para justificar muitas coisas, como a pena de morte, o direito à posse e ao porte de armas, a tortura ou mesmo a execução sumária. É um apelo à cólera, à raiva; não há, aqui, uma tentativa verdadeira que mire a raiz dos problemas que devoram o Brasil, mas uma investida que busca usar o medo e o sofrimento das pessoas para construir um discurso político demagógico. Na televisão, programas sensacionalistas se aproveitam da sangueira para atingir esse sentimento nos telespectadores - e também para enriquecer. Políticos da extrema-direita brasileira, alguns em altos cargos, por muitos anos usaram nomes como o de Liana Friedenbach (assassinada e violentada em 2003, junto com seu namorado Felipe Caffé) para fazer palanque, ao limite que o próprio pai da vítima, Ari Friedenbach, disse se sentir “usado”. A educação, o humanismo e a luta contra a desigualdade social nunca aparecem como opções. Dito isso, quero contar uma história ao leitor.
E se fosse o seu filho? A pergunta me remete, inevitavelmente, ao poeta maranhense Odylo Costa Filho, membro da Academia Brasileira de Letras, e ao destino triste de seu garoto. Odylo Costa Neto, filho do poeta, foi morto em 1963, num assalto, em uma rua do bairro Santa Teresa, no Rio. Tinha dezoito anos e “uma vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Odylo, o neto, estava com a sua namorada, Irene Loewenstein, quando foi abordado. “Após responder que nada possuía para satisfazer aos assaltantes, recebeu ordem para fugir e deixar a moça. Num gesto de bravura e coragem, enfrentou os bandidos em defesa da jovem, sendo assassinado fria e covardemente” (Correio da Manhã, 12 de março de 1963, p. 5). O suspeito era menor de idade.
Foi poeta na pena e na vida. Logo após a tragédia, o pai, em um gesto muito humano, iniciou uma campanha pela revisão do sistema de assistência à infância abandonada. A sua importante luta chamou a atenção contra o abandono do Serviço de Assistência ao Menor (Sam), depois extinto, e participou da criação da Fundação Nacional de Assistência ao Menor (Funabem), em 1964. Odylo Costa Filho, que perdoou publicamente o assassino do seu filho, pensava que os jovens infratores eram vítimas de problemas sociais ainda mais graves, como conta a sua filha, Antônia. “Ele não ficou amigo dos bandidos, nem teve uma atitude piegas. Ele acreditava que meninos não podem ser julgados como adultos. Que esses jovens precisavam de ajuda, educação e apoio. A Funabem não deu certo por falta de vontade política de quem governa e, hoje, o problema continua o mesmo.” (O Globo, 23.ago.2015).
Depois de quase quatro décadas, desde que publicou os seus dois primeiros livros de poesia, a morte do filho fez Odylo Costa voltar a escrever versos. Em 1966, publicou o livro “Tempo de Lisboa e outros poemas”, em que dedica um soneto ao seu herdeiro.
Em tempos de cólera, “quando a insensatez humana continua a nos ameaçar com a terra arrasada” (Millôr Fernandes), convém lembrar histórias como a Odylo Costa Filho, que compreendeu que a poesia era inseparável da vida.
A meu filho
Recorro a ti para não separar-me
deste chão de sargaços mas de flores,
em que há bichos que amaste e mais os frutos
que com tuas mãos plantavas e colhias
Por essas mãos te peço que me ajudes
e que afastes de mim com os dentes alvos
do teu riso contido mas presente
a tentação da morte voluntária.
Não deixes, filho meu, que a dor de amar-te
me tire o gosto do terreno barro
e a coragem dos lúcidos deveres.
Que estas árvores guardam, no céu puro,
entre rastros de estrelas, a lembrança
dos teus humanos olhos deslumbrados.
(Tempo de Lisboa e outros poemas, 1966, Livraria Martins Editora, p. 59)
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