Duas semanas após assumir o mandato, o presidente Jair Bolsonaro cumpriu uma promessa de campanha ao assinar o Decreto nº 9.685, que facilita o acesso a armas de fogo e munição para qualquer cidadão que apresente justificativa de “efetiva necessidade”. Entre as motivações consideradas aceitáveis está a de residir em cidade em que a taxa de homicídios por 100 mil habitantes seja maior que 10, ou seja, 62% dos municípios brasileiros, compreendendo um contingente de quase 160 milhões de pessoas ou 76% da população do país, segundo levantamento divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo.
Anunciado como uma medida para dar mais segurança e proporcionar um meio de defesa para a população diante da escalada da violência no país, o decreto permite que cada cidadão tenha até quatro armas e munição dentro de casa ou de estabelecimento comercial. Pode parecer óbvio, mas é importante lembrar que inúmeros estudos nacionais e internacionais “levam à conclusão inequívoca de que uma maior quantidade de armas em circulação está associada a uma maior incidência de homicídios cometidos com armas de fogo”, afirmam dezenas de pesquisadores brasileiros e estrangeiros em manifesto lançado em 2016 contra a revogação do Estatuto do Desarmamento.
Mais armas, mais feminicídios
No dia seguinte à divulgação do decreto que amplia o acesso a armas de fogo, um grupo de defensoras públicas emitiu uma nota declarando que “a ampliação da posse de armas de fogo agravará o já preocupante número de vítimas de feminicídio no país. (…) Nesse contexto, entendemos que legislações que flexibilizam o uso de arma de fogo vão de encontro à função do Estado de proteger todos os membros da família das diversas formas de violência, tal como previsto na CF”.
Nessa direção, pesquisas já comprovaram que a casa é o local mais inseguro para as mulheres, o que leva diversos especialistas a afirmar que a ampliação do acesso a armas de fogo certamente irá aumentar o número de feminicídios no Brasil, um país que já ostenta a vergonhosa posição de quinta nação no mundo que mais mata mulheres. Segundo o Mapa da Violência, 4.645 mulheres foram assassinadas em 2016, o que resulta em uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil mulheres. Além da violência de gênero, os números revelam o peso do racismo no Brasil, onde a taxa de homicídios é maior entre mulheres negras (5,3) do que entre as não negras (3,1), uma diferença de 71%!
Dados do Ministério da Saúde mostram que metade das mulheres foi assassinada com o uso de arma de fogo em 2016. Grande parte dessas mortes pode ser caracterizada como feminicídios, pois aconteceram em circunstâncias de violência doméstica, como dispõe a Lei nº 13.104/2015, mais conhecida como Lei do Feminicídio. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 76% das tentativas de feminicídio e 57% dos feminicídios consumados em 2017 foram cometidos por companheiros ou ex, com 53% das mortes tendo ocorrido dentro da residência da vítima.
Dessa forma, fica evidente que o governo deveria preocupar-se em restringir a posse dessas armas, pois ampliar a permissão contribuirá para armar agressores em potencial. Com esse decreto, o Brasil coloca-se na contramão da tendência mundial de promover políticas de desarmamento, que já mostraram efeitos positivos, como a diminuição dos assassinatos de mulheres com armas de fogo. Um dos exemplos mais conhecidos é o da África do Sul, que desde 2000 tem uma legislação mais restritiva de controle de armas e assistiu a uma redução do índice de assassinatos a tiros por parceiros de 34% para 17%, entre 1999 e 2009.
A relação entre o aumento do risco de morte para mulheres com o crescimento do acesso a armas é tão evidente que a posse de armamento em casa por um agressor é um dos fatores que pesam na hora da justiça decidir se concede uma medida protetiva em caso de violência doméstica. Nesse sentido, a Lei Maria da Penha já prevê que uma mulher em situação de violência peça medidas protetivas que podem incluir a suspensão da posse de arma do autor da violência.
Em 2017 foram emitidas mais de 230 mil medidas protetivas, mas as delegacias não têm como saber se o agressor tem registro de arma de fogo. Depende então da mulher informar a presença de arma em casa ou que o agressor tem acesso a uma. Mas quem conhece a rotina de violências enfrentada pelas mulheres no âmbito doméstico e afetivo sabe que, se já é muito difícil denunciar um companheiro violento, a presença de uma arma de fogo em casa com certeza inibirá ainda mais qualquer disposição de denúncia, servindo apenas para prender a vítima ainda mais ao chamado “ciclo da violência”, termo cunhado para descrever padrões de comportamento abusivo que se repetem em uma escalada crescente de violência e que podem culminar em um feminicídio. Por isso em 2016 a Suprema Corte dos Estados Unidos proibiu que condenados por violência doméstica tenham posse ou usem armas de fogo.
Armas são feitas para matar, não para defender; mulheres querem menos armas
O argumento de que o decreto presidencial beneficiaria as mulheres que, armadas, poderiam se defender das agressões é falacioso. Segundo especialistas em segurança pública, os casos em que a vítima tem êxito ao reagir são extremamente raros e estatisticamente insignificantes.
Além disso, pesquisa Datafolha divulgada no final de 2018 revelou um aumento na rejeição da população brasileira às armas de fogo: 61% dos entrevistados afirmaram ser contrários à posse de armas (no levantamento anterior eram 55%). As mulheres são as que mais rejeitam a posse de armas: 71% contra 51% dos homens.
Outra medida do novo governo, o projeto do ministro da Justiça Sergio Moro para a segurança pública inclui entre suas propostas mais circunstâncias para a aplicação do “excludente de ilicitude”. Pensado para reduzir penas ou livrar policiais que praticarem um “excesso” justificado por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, na prática isso significa que um acusado de feminicídio poderá alegar que cometeu o crime tomado por “violenta emoção” e ter sua pena diminuída ou até ser absolvido. Ao comentar o projeto em entrevista para o portal de notícias UOL, a subprocuradora-geral da República Ela Wiecko explica que, embora a alteração proposta tenha sido pensada para facilitar a aplicação do argumento da legítima defesa nas ações policiais, como a mudança altera a parte geral do Código Penal, isso poderá ser aplicado a todas as situações em que a justificativa da “legítima defesa” possa ser usada.
Depois da “violenta emoção”, o próximo retrocesso será a ressurreição do argumento da “legítima defesa da honra” para absolver os feminicidas, uma justificativa que a própria justiça deixou de aceitar no final dos anos 1970, quando anulou o julgamento que absolveu Doca Street, o assassino da mineira Ângela Diniz, morta com quatro tiros no rosto, e que foi posteriormente condenado a quinze anos de prisão.
Com o “decreto do armamento”, o governo federal não apenas contraria o desejo da maioria da população, que quer menos armas, e vai na contramão da tendência mundial de desarmamento, mas está estimulando um inescapável aumento dos feminicídios no país.
* Marisa Sanematsu é jornalista, diretora de conteúdo do Instituto Patrícia Galvão e editora dos portais da Agência Patrícia Galvão e da Campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha.
Anunciado como uma medida para dar mais segurança e proporcionar um meio de defesa para a população diante da escalada da violência no país, o decreto permite que cada cidadão tenha até quatro armas e munição dentro de casa ou de estabelecimento comercial. Pode parecer óbvio, mas é importante lembrar que inúmeros estudos nacionais e internacionais “levam à conclusão inequívoca de que uma maior quantidade de armas em circulação está associada a uma maior incidência de homicídios cometidos com armas de fogo”, afirmam dezenas de pesquisadores brasileiros e estrangeiros em manifesto lançado em 2016 contra a revogação do Estatuto do Desarmamento.
Mais armas, mais feminicídios
No dia seguinte à divulgação do decreto que amplia o acesso a armas de fogo, um grupo de defensoras públicas emitiu uma nota declarando que “a ampliação da posse de armas de fogo agravará o já preocupante número de vítimas de feminicídio no país. (…) Nesse contexto, entendemos que legislações que flexibilizam o uso de arma de fogo vão de encontro à função do Estado de proteger todos os membros da família das diversas formas de violência, tal como previsto na CF”.
Nessa direção, pesquisas já comprovaram que a casa é o local mais inseguro para as mulheres, o que leva diversos especialistas a afirmar que a ampliação do acesso a armas de fogo certamente irá aumentar o número de feminicídios no Brasil, um país que já ostenta a vergonhosa posição de quinta nação no mundo que mais mata mulheres. Segundo o Mapa da Violência, 4.645 mulheres foram assassinadas em 2016, o que resulta em uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil mulheres. Além da violência de gênero, os números revelam o peso do racismo no Brasil, onde a taxa de homicídios é maior entre mulheres negras (5,3) do que entre as não negras (3,1), uma diferença de 71%!
Dados do Ministério da Saúde mostram que metade das mulheres foi assassinada com o uso de arma de fogo em 2016. Grande parte dessas mortes pode ser caracterizada como feminicídios, pois aconteceram em circunstâncias de violência doméstica, como dispõe a Lei nº 13.104/2015, mais conhecida como Lei do Feminicídio. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 76% das tentativas de feminicídio e 57% dos feminicídios consumados em 2017 foram cometidos por companheiros ou ex, com 53% das mortes tendo ocorrido dentro da residência da vítima.
Dessa forma, fica evidente que o governo deveria preocupar-se em restringir a posse dessas armas, pois ampliar a permissão contribuirá para armar agressores em potencial. Com esse decreto, o Brasil coloca-se na contramão da tendência mundial de promover políticas de desarmamento, que já mostraram efeitos positivos, como a diminuição dos assassinatos de mulheres com armas de fogo. Um dos exemplos mais conhecidos é o da África do Sul, que desde 2000 tem uma legislação mais restritiva de controle de armas e assistiu a uma redução do índice de assassinatos a tiros por parceiros de 34% para 17%, entre 1999 e 2009.
A relação entre o aumento do risco de morte para mulheres com o crescimento do acesso a armas é tão evidente que a posse de armamento em casa por um agressor é um dos fatores que pesam na hora da justiça decidir se concede uma medida protetiva em caso de violência doméstica. Nesse sentido, a Lei Maria da Penha já prevê que uma mulher em situação de violência peça medidas protetivas que podem incluir a suspensão da posse de arma do autor da violência.
Em 2017 foram emitidas mais de 230 mil medidas protetivas, mas as delegacias não têm como saber se o agressor tem registro de arma de fogo. Depende então da mulher informar a presença de arma em casa ou que o agressor tem acesso a uma. Mas quem conhece a rotina de violências enfrentada pelas mulheres no âmbito doméstico e afetivo sabe que, se já é muito difícil denunciar um companheiro violento, a presença de uma arma de fogo em casa com certeza inibirá ainda mais qualquer disposição de denúncia, servindo apenas para prender a vítima ainda mais ao chamado “ciclo da violência”, termo cunhado para descrever padrões de comportamento abusivo que se repetem em uma escalada crescente de violência e que podem culminar em um feminicídio. Por isso em 2016 a Suprema Corte dos Estados Unidos proibiu que condenados por violência doméstica tenham posse ou usem armas de fogo.
Armas são feitas para matar, não para defender; mulheres querem menos armas
O argumento de que o decreto presidencial beneficiaria as mulheres que, armadas, poderiam se defender das agressões é falacioso. Segundo especialistas em segurança pública, os casos em que a vítima tem êxito ao reagir são extremamente raros e estatisticamente insignificantes.
Além disso, pesquisa Datafolha divulgada no final de 2018 revelou um aumento na rejeição da população brasileira às armas de fogo: 61% dos entrevistados afirmaram ser contrários à posse de armas (no levantamento anterior eram 55%). As mulheres são as que mais rejeitam a posse de armas: 71% contra 51% dos homens.
Outra medida do novo governo, o projeto do ministro da Justiça Sergio Moro para a segurança pública inclui entre suas propostas mais circunstâncias para a aplicação do “excludente de ilicitude”. Pensado para reduzir penas ou livrar policiais que praticarem um “excesso” justificado por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, na prática isso significa que um acusado de feminicídio poderá alegar que cometeu o crime tomado por “violenta emoção” e ter sua pena diminuída ou até ser absolvido. Ao comentar o projeto em entrevista para o portal de notícias UOL, a subprocuradora-geral da República Ela Wiecko explica que, embora a alteração proposta tenha sido pensada para facilitar a aplicação do argumento da legítima defesa nas ações policiais, como a mudança altera a parte geral do Código Penal, isso poderá ser aplicado a todas as situações em que a justificativa da “legítima defesa” possa ser usada.
Depois da “violenta emoção”, o próximo retrocesso será a ressurreição do argumento da “legítima defesa da honra” para absolver os feminicidas, uma justificativa que a própria justiça deixou de aceitar no final dos anos 1970, quando anulou o julgamento que absolveu Doca Street, o assassino da mineira Ângela Diniz, morta com quatro tiros no rosto, e que foi posteriormente condenado a quinze anos de prisão.
Com o “decreto do armamento”, o governo federal não apenas contraria o desejo da maioria da população, que quer menos armas, e vai na contramão da tendência mundial de desarmamento, mas está estimulando um inescapável aumento dos feminicídios no país.
* Marisa Sanematsu é jornalista, diretora de conteúdo do Instituto Patrícia Galvão e editora dos portais da Agência Patrícia Galvão e da Campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha.
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