Por Marcelo Zero
“La démocratie c'est moi” (a democracia sou eu) pareceu ter dito, em entrelinhas sombrias, o desassombrado capitão, quando mencionou, de forma aparentemente inocente, que a nossa liberdade e democracia só existem quando as Forças Armadas permitem.
Muitos questionam o QI, se algum, do capitão.
Outros colocam em dúvida sua sanidade mental.
Mas não se pode questionar sua intempestiva sinceridade e sua desavergonhada coragem.
A coragem dos néscios, mas coragem, enfim.
Com efeito, o capitão fala desabridamente o que lhe vem ao coração ou o que lhe sopra ao ouvido o seu solitário, porém corajoso neurônio.
Como de hábito, causou indignação em certos círculos e provocou polêmica.
Mas estou certo de que não mentiu e suspeito que tenha expressado bem o que vai na cabeça de muita “gente de bem”.
Mais tarde, em “live” certamente inspirada em Ionesco, o capitão e dois dos seus generais tentaram aparar arestas semióticas. Em vão.
O capitão, ouvindo os sábios conselhos do seu neurônio eremita, mais uma vez afirmou que “no Brasil, nós devemos às Forças Armada nossa democracia e nossa liberdade e assim é em todo o mundo”.
Inquirido pelo capitão, o general Heleno afirmou que a fala não tinha nada de polêmica e que, se bem as Forças Armadas são as “guardiãs da democracia e da liberdade”, isso não era “um presente para os civis”.
Não esclareceu, contudo, se podia ser um presente de grego.
Heleno disse, ainda, que as Forças Armadas têm o “monopólio legal da violência” e, por isso, conseguem manter governos “praticamente depostos” como o da Venezuela e o de Cuba.
Bom, o general parece ter ouvido o galo weberiano cantar, mas não sabe bem onde.
Na realidade, não são as Forças Armadas que têm o monopólio da violência legítima, mas sim o Estado.
E, numa democracia, as Forças Armadas, presume-se, são instrumento do Estado democrático.
Entretanto, ao citar o exemplo dos governos de Venezuela e Cuba, que, segundo ele, se mantêm por obra e graça dos militares, o general advoga a tese de que as Forças Armadas podem, se quiserem, sustentar governos que, na sua visão, são impopulares e antidemocráticos. Previsão sombria?
O general assevera que isso não ocorreria no Brasil, pois aqui, ao contrário do que ocorre nas democracias avançadas, nas quais o povo e as instituições civis são os garantes do poder democrático, as Forças Armadas são as “guardiãs da liberdade e da democracia”.
Mas a história recente do país demonstra exatamente o contrário.
A ditadura militar, sustentada por nossas democráticas Forças Armadas por longos 21 anos, foi justificada, como quase todos os regimes ditatoriais da América Latina, precisamente sob o manto obscuro da “defesa da liberdade e da democracia”.
Inspirado pelo mesmo neurônio eremita que habita o microcéfalo do baixo clero, o jornal “O Globo” chegou a estampar, em primeiro de abril de 1964, triunfante editorial com o obsceno título: “Ressurge a Democracia”.
Foi uma espécie de golden shower na democracia do Brasil.
Como se vê, no Brasil a definição de democracia é ciência relativística, talvez até pornografia de ocasião.
Por isso, as falas do capitão e, mais ainda, a fala do general Heleno, não acalmaram as hoje agonizantes almas democráticas da Nação.
Afinal, sempre que as nossas Forças Armadas se arvoram em guardiãs da liberdade e da democracia, alguma coisa vai muito mal com as duas.
Lembre-se que tanto o capitão como os numerosos, talvez demasiadamente numerosos, generais de seu governo defendem o notável legado democrático da ditadura militar, o qual inclui até mesmo a tolerante prática da tortura.
Coisas de zelosos guardiões.
No contexto de uma democracia já muito golpeada pelo golpe de 2016, a prisão política de Lula, a criminalização da atividade política, a crise do sistema de representação e o Estado de Exceção seletivo, as falas desabridas de Bolsonaro sobre a questão democrática ou sobre a democracia em questão não são nada apaziguadoras e não podem ser minimizadas.
A inquietação, portanto, não vem propriamente da manifestação individual do capitão, que por acaso infeliz é presidente da república, mas do contexto coletivo e histórico no qual ela se insere.
As forças internas que promoveram o golpe de 2016, a prisão política de Lula e a progressiva desconstrução da democracia duramente construída pela população, em desafio aos fardados “guardiões democráticos”, têm uma visão obscenamente instrumental do sistema democrático. As forças externas a elas aliadas também.
Para os EUA, é democrático todo governo que convém aos seus interesses.
Em contraste, todo governo que contrarie seus interesses é sanguinária ditadura, que viola os direitos humanos.
Desse modo, Allende era um tirano e Pinochet um humanista.
Da mesma forma, para nossas oligarquias será democrático qualquer presidente que cumpra a agenda ultraneoliberal que motivou a desconstrução democrática recente. Mas senão cumprir...
Até mesmo o capitão, que afirmou em entrevista que a ditadura devia ter matados uns 30 mil brasileiros, será um notável estadista, caso entregue a fatura exigida pela “turma da bufunfa”: reforma da Previdência, abertura incondicional da economia, privatização de tudo o que for possível, venda do pré-sal, abertura do território nacional às mineradoras estrangeiras, redução do Estado de Bem-Estar, alinhamento aos EUA, erosão dos direitos sociais e econômicos da população, austeridade permanente, extinção dos mecanismos estatais de intervenção na economia, etc.
O problema, para o governo do neurônio eremita, é que essa pauta é muito impopular.
Ademais, ela tende a piorar as condições já muito ruins da nossa economia e do nosso quadro social.
O governo do capitão, assim, não tem nada de cativante a propor aos cidadãos que o elegeram, à exceção, é claro, de coisas como o fim das lombadas eletrônicas e a modificação dos cartões de vacinação.
Tempos piores virão.
Nesse cenário, Bolsonaro pode vir a ter problemas sérios para cumprir a agenda prometida.
Por isso, o capitão e seus generais já adotaram a estratégia do enfrentamento e do enquadramento das forças dissidentes, como forma de procurar se legitimar e governar.
Assim, o capitão faz questão de agredir quem o critica. Não tolera discordâncias.
Sequer se importa em fingir que vai governar para todos.
Faz questão de afirmar que vai governar somente para os “cidadãos de bem”.
Aposta na divisão da sociedade e no combate incessante ao “inimigo interno”.
Faz trapalhadas e erra frequentemente a dosagem, mas a estratégia é essa mesmo.
Pretende apelar sempre para o antipetismo, o anticomunismo, a homofobia, a misoginia para procurar legitimar um governo que não deverá ser capaz de dar respostas para o desemprego, o crescimento da desigualdade e da pobreza, a falta de crescimento sustentado, o sucateamento dos serviços públicos, etc.
Essa estratégia de governabilidade à la Goebbels é antidemocrática por natureza.
Além disso, ela poderá não funcionar, no médio e longo prazo.
Com efeito, num quadro crônico de continuidade do desemprego e de aumento da desigualdade e da pobreza, os coloridos tweets e as toscas lives do capitão poderão não cativar até seus mais fanáticos seguidores.
Nesse caso, a desconstrução da nossa democracia poderá ou terá de avançar ainda mais.
Esse é o sentido geral da fala do capitão, endossada pelos generais.
Se precisar, endureceremos.
Somos os guardiões da democracia e da liberdade e não vamos deixar que elas sejam destruídas pelo marxismo cultural, o comunismo, o petismo, os gays, as feministas, o kit gay, as mamadeiras de piroca e os cartões de vacinação com demoníacas informações sobre educação sexual.
Tudo muito coerente com quem prometeu exílio ou morte para seus opositores.
Até onde poderá ir esse endurecimento, não sabemos. Mas o recado, nada sutil, foi dado.
Nosso Luís XIV e seus generais apossaram-se, como que por direito divino, do poder popular e da democracia.
Cuidado democratas! La démocratie ces´t moi.
“La démocratie c'est moi” (a democracia sou eu) pareceu ter dito, em entrelinhas sombrias, o desassombrado capitão, quando mencionou, de forma aparentemente inocente, que a nossa liberdade e democracia só existem quando as Forças Armadas permitem.
Muitos questionam o QI, se algum, do capitão.
Outros colocam em dúvida sua sanidade mental.
Mas não se pode questionar sua intempestiva sinceridade e sua desavergonhada coragem.
A coragem dos néscios, mas coragem, enfim.
Com efeito, o capitão fala desabridamente o que lhe vem ao coração ou o que lhe sopra ao ouvido o seu solitário, porém corajoso neurônio.
Como de hábito, causou indignação em certos círculos e provocou polêmica.
Mas estou certo de que não mentiu e suspeito que tenha expressado bem o que vai na cabeça de muita “gente de bem”.
Mais tarde, em “live” certamente inspirada em Ionesco, o capitão e dois dos seus generais tentaram aparar arestas semióticas. Em vão.
O capitão, ouvindo os sábios conselhos do seu neurônio eremita, mais uma vez afirmou que “no Brasil, nós devemos às Forças Armada nossa democracia e nossa liberdade e assim é em todo o mundo”.
Inquirido pelo capitão, o general Heleno afirmou que a fala não tinha nada de polêmica e que, se bem as Forças Armadas são as “guardiãs da democracia e da liberdade”, isso não era “um presente para os civis”.
Não esclareceu, contudo, se podia ser um presente de grego.
Heleno disse, ainda, que as Forças Armadas têm o “monopólio legal da violência” e, por isso, conseguem manter governos “praticamente depostos” como o da Venezuela e o de Cuba.
Bom, o general parece ter ouvido o galo weberiano cantar, mas não sabe bem onde.
Na realidade, não são as Forças Armadas que têm o monopólio da violência legítima, mas sim o Estado.
E, numa democracia, as Forças Armadas, presume-se, são instrumento do Estado democrático.
Entretanto, ao citar o exemplo dos governos de Venezuela e Cuba, que, segundo ele, se mantêm por obra e graça dos militares, o general advoga a tese de que as Forças Armadas podem, se quiserem, sustentar governos que, na sua visão, são impopulares e antidemocráticos. Previsão sombria?
O general assevera que isso não ocorreria no Brasil, pois aqui, ao contrário do que ocorre nas democracias avançadas, nas quais o povo e as instituições civis são os garantes do poder democrático, as Forças Armadas são as “guardiãs da liberdade e da democracia”.
Mas a história recente do país demonstra exatamente o contrário.
A ditadura militar, sustentada por nossas democráticas Forças Armadas por longos 21 anos, foi justificada, como quase todos os regimes ditatoriais da América Latina, precisamente sob o manto obscuro da “defesa da liberdade e da democracia”.
Inspirado pelo mesmo neurônio eremita que habita o microcéfalo do baixo clero, o jornal “O Globo” chegou a estampar, em primeiro de abril de 1964, triunfante editorial com o obsceno título: “Ressurge a Democracia”.
Foi uma espécie de golden shower na democracia do Brasil.
Como se vê, no Brasil a definição de democracia é ciência relativística, talvez até pornografia de ocasião.
Por isso, as falas do capitão e, mais ainda, a fala do general Heleno, não acalmaram as hoje agonizantes almas democráticas da Nação.
Afinal, sempre que as nossas Forças Armadas se arvoram em guardiãs da liberdade e da democracia, alguma coisa vai muito mal com as duas.
Lembre-se que tanto o capitão como os numerosos, talvez demasiadamente numerosos, generais de seu governo defendem o notável legado democrático da ditadura militar, o qual inclui até mesmo a tolerante prática da tortura.
Coisas de zelosos guardiões.
No contexto de uma democracia já muito golpeada pelo golpe de 2016, a prisão política de Lula, a criminalização da atividade política, a crise do sistema de representação e o Estado de Exceção seletivo, as falas desabridas de Bolsonaro sobre a questão democrática ou sobre a democracia em questão não são nada apaziguadoras e não podem ser minimizadas.
A inquietação, portanto, não vem propriamente da manifestação individual do capitão, que por acaso infeliz é presidente da república, mas do contexto coletivo e histórico no qual ela se insere.
As forças internas que promoveram o golpe de 2016, a prisão política de Lula e a progressiva desconstrução da democracia duramente construída pela população, em desafio aos fardados “guardiões democráticos”, têm uma visão obscenamente instrumental do sistema democrático. As forças externas a elas aliadas também.
Para os EUA, é democrático todo governo que convém aos seus interesses.
Em contraste, todo governo que contrarie seus interesses é sanguinária ditadura, que viola os direitos humanos.
Desse modo, Allende era um tirano e Pinochet um humanista.
Da mesma forma, para nossas oligarquias será democrático qualquer presidente que cumpra a agenda ultraneoliberal que motivou a desconstrução democrática recente. Mas senão cumprir...
Até mesmo o capitão, que afirmou em entrevista que a ditadura devia ter matados uns 30 mil brasileiros, será um notável estadista, caso entregue a fatura exigida pela “turma da bufunfa”: reforma da Previdência, abertura incondicional da economia, privatização de tudo o que for possível, venda do pré-sal, abertura do território nacional às mineradoras estrangeiras, redução do Estado de Bem-Estar, alinhamento aos EUA, erosão dos direitos sociais e econômicos da população, austeridade permanente, extinção dos mecanismos estatais de intervenção na economia, etc.
O problema, para o governo do neurônio eremita, é que essa pauta é muito impopular.
Ademais, ela tende a piorar as condições já muito ruins da nossa economia e do nosso quadro social.
O governo do capitão, assim, não tem nada de cativante a propor aos cidadãos que o elegeram, à exceção, é claro, de coisas como o fim das lombadas eletrônicas e a modificação dos cartões de vacinação.
Tempos piores virão.
Nesse cenário, Bolsonaro pode vir a ter problemas sérios para cumprir a agenda prometida.
Por isso, o capitão e seus generais já adotaram a estratégia do enfrentamento e do enquadramento das forças dissidentes, como forma de procurar se legitimar e governar.
Assim, o capitão faz questão de agredir quem o critica. Não tolera discordâncias.
Sequer se importa em fingir que vai governar para todos.
Faz questão de afirmar que vai governar somente para os “cidadãos de bem”.
Aposta na divisão da sociedade e no combate incessante ao “inimigo interno”.
Faz trapalhadas e erra frequentemente a dosagem, mas a estratégia é essa mesmo.
Pretende apelar sempre para o antipetismo, o anticomunismo, a homofobia, a misoginia para procurar legitimar um governo que não deverá ser capaz de dar respostas para o desemprego, o crescimento da desigualdade e da pobreza, a falta de crescimento sustentado, o sucateamento dos serviços públicos, etc.
Essa estratégia de governabilidade à la Goebbels é antidemocrática por natureza.
Além disso, ela poderá não funcionar, no médio e longo prazo.
Com efeito, num quadro crônico de continuidade do desemprego e de aumento da desigualdade e da pobreza, os coloridos tweets e as toscas lives do capitão poderão não cativar até seus mais fanáticos seguidores.
Nesse caso, a desconstrução da nossa democracia poderá ou terá de avançar ainda mais.
Esse é o sentido geral da fala do capitão, endossada pelos generais.
Se precisar, endureceremos.
Somos os guardiões da democracia e da liberdade e não vamos deixar que elas sejam destruídas pelo marxismo cultural, o comunismo, o petismo, os gays, as feministas, o kit gay, as mamadeiras de piroca e os cartões de vacinação com demoníacas informações sobre educação sexual.
Tudo muito coerente com quem prometeu exílio ou morte para seus opositores.
Até onde poderá ir esse endurecimento, não sabemos. Mas o recado, nada sutil, foi dado.
Nosso Luís XIV e seus generais apossaram-se, como que por direito divino, do poder popular e da democracia.
Cuidado democratas! La démocratie ces´t moi.
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