Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
Já passou a hora da interpretação, do espanto e da denúncia. O governo Bolsonaro e seus satélites em vários estados e municípios já mostraram com sobra a que vieram. Prometeram na campanha e estão cumprindo. O programa neoliberal, de extermínio de direitos, de entrega do patrimônio público, de castração da soberania, de descarte das preocupações ambientais e de submissão aos interesses financeiros e dos Estados Unidos já está traçado e segue com vento pelas costas.
O fundamento moralista, ultraconservador, discriminador e patriarcal completa a ação do projeto em curso. Seus instrumentos são a destruição dos valores do conhecimento, da educação, da cultura, da solidariedade e dos direitos humanos. Uma certa visão miliciana da natureza humana: cada um por si e o medo acima de todos. Num cenário de extermínio da tolerância com a diferença, o outro é sempre o inimigo potencial a ser exterminado. Abatido, merece até mesmo comemoração monstruosa.
Não é um programa que se exibe com orgulho. Tendo como garoto-propaganda uma figura que escorre ódio pelo canto dos lábios e adota táticas diversionistas enquanto seus sequazes tocam o que de fato interessa, o governo segue destruindo o Estado de direito e liquefazendo as instituições. A mídia comercial reage de forma canalha: como tem interesse no atacado material, se permite a discordar no varejo dos símbolos. Celebra a destruição da previdência e condena o cocô.
A cada dia, encostado na grade da saída de casa, cercado de seguranças e com o ar parvo de sempre, o presidente dita a pauta para os repórteres amedrontados com sua grosseria habitual. Mente, despreza dados científicos e assaca acusações irresponsáveis. A isca é mordida e ganha a cena dos comentaristas de plantão pelo dia afora, enquanto a agenda econômica entreguista segue seu rumo desimpedido. Um canastrão que faz a imprensa de palhaço. Ou o contrário.
A mesma mídia corporativa parece ter descoberto o álibi para fundamentar seu partidarismo histórico. Para cada notícia crítica ao atual governo passa a ser obrigação fazer referência ao período dos governos de Lula e Dilma (curiosamente, FHC está liberado desse método comparativo), fortalecendo a teoria não comprovada nos fatos de que “é tudo igual, mas com o sinal trocado”. O importante é buscar equivalências, já de olho na próxima eleição.
O ideal é manter o antipetismo construído ao longo de muitos anos e se defender do risco da resiliência do bolsonarismo. Como se sabe, o ex-capitão não era a primeira escolha dos proprietários dos meios de comunicação e só foi assumido, mesmo assim com reservas, na confiança de que seria domado. O que não se esperava é que a base menos civilizada se tornasse a cabeça da parelha que puxa a carroça dos interesses.
A receita que Paulo Guedes traz da ditadura chilena para a economia, de um ultraliberalismo sem liberdade, parece ganhar sua tradução na política, com uma democracia assumidamente antidemocrática. Depois de eleito, vale apenas a vontade do vencedor, independentemente do respeito devido às instituições. Sai o estadista e entra em cena Johnny Bravo. Fora com o presidente banana e todo poder ao Capitão Motosserra.
Nesse contexto, as perspectivas das forças democráticas precisam vencer a inércia e mesmo a história habitual de formas de luta e resistência. Não dá para esperar apenas a oposição no campo da política institucional – que continua sendo fundamental – nem confiar num grande levante de massas. Está na hora de agir, mas também de inventar novos modelos de organização.
Uma constatação que parece autoevidente entre os democratas de coração, é que está na hora de defender ações conjuntas. A esquerda tem uma grande habilidade em propor teorias que politizam os debates, mas que muitas vezes apontam mais para a diferença do que para os objetivos comuns. A hora é de ação conjunta. O que implica em modernizar as estratégias, atualizar as tecnologias, operar em redes. Ao mesmo tempo, retomar a trajetória vitoriosa da mobilização de base das lutas setoriais, que andam em baixa.
Pode parecer que vivemos o pior dos tempos e que a tarefa é poderosa demais para nossas forças destroçadas por tantas derrotas. Talvez não estejamos longe disso. Mas a história também mostra várias outras encruzilhadas em que foi necessário rever estratégias e táticas, reinventar a participação política, atuar contra adversários poderosos. E vencer. É preciso lembrar esses momentos e aprender com seus acertos e reflexões.
O economista e cientista político Albert Hirschman escreveu nos anos 1970 um livro que se propõe a apontar caminhos para momentos de grande instabilidade institucional. De acordo com as ideias expostas em “Saída, voz e lealdade”, há duas formas de enfrentar tempos tormentosos. O primeiro, que se liga mais à economia, ele chamou de saída, uma forma de mudar completamente o rumo, deixando de lado qualquer tentativa de negociação. A outra, que tem mais ligação com a política, é a voz, que atua sem criar cisões, buscando convencer pelo melhor argumento.
De certa maneira, são duas formas aparentemente excludentes de enfrentar problemas, mas que podem se suceder e se alternar, de acordo com a situação. Em alguns momentos é fundamental atuar de forma racional, convencendo o outro e conquistando espaço para outras propostas no interior das instituições. No entanto, por vezes o rompimento é a única saída possível para enfrentar situações em que o limite parece ter sido atingido. A luta pelo aperfeiçoamento social é uma dinâmica permanente entre a saída e a voz.
E, no atual estágio de nossos desafios como nação, que não falta é frente de luta: das mulheres contra todas as formas de machismo e violência, das pessoas LGBTQ, dos quilombolas, do movimento negro e dos defensores dos direitos humanos. Dos ecologistas, dos que prezam a saúde pública e a luta antimanicomial. Dos batalhadores da escola pública de qualidade, com valorização do professor, com mais saber e menos autoritarismo. Dos críticos à censura em favor da liberdade de expressão em todas as suas formas. Daqueles que cultuam seus deuses perseguidos e seus valores libertários. Dos verdadeiros operadores da justiça que não aceitam ver seu ofício entregue ao descrédito.
Dos artistas que defendem políticas públicas que ampliem vozes e visões de mundo e que democratizem o acesso e a diversifique a produção. De jornalistas e comunicadores populares que sonham com uma comunicação pública de qualidade e uma atividade privada regulada de forma democrática e plural. Dos sem-terra que levam adiante o sonho de um território mais igualitário e de uma produção mais saudável e sustentável.
O volume da luta da sociedade vai ser, com certeza, o maior trunfo para o momento posterior de união em torno dos valores da democracia e da emancipação social. Conviver nas trincheiras da liberdade é uma das mais nobres atividades humanas. De tédio ninguém vai morrer. O pessimismo e a reclamação podem ficar guardados para dias melhores.
Já passou a hora da interpretação, do espanto e da denúncia. O governo Bolsonaro e seus satélites em vários estados e municípios já mostraram com sobra a que vieram. Prometeram na campanha e estão cumprindo. O programa neoliberal, de extermínio de direitos, de entrega do patrimônio público, de castração da soberania, de descarte das preocupações ambientais e de submissão aos interesses financeiros e dos Estados Unidos já está traçado e segue com vento pelas costas.
O fundamento moralista, ultraconservador, discriminador e patriarcal completa a ação do projeto em curso. Seus instrumentos são a destruição dos valores do conhecimento, da educação, da cultura, da solidariedade e dos direitos humanos. Uma certa visão miliciana da natureza humana: cada um por si e o medo acima de todos. Num cenário de extermínio da tolerância com a diferença, o outro é sempre o inimigo potencial a ser exterminado. Abatido, merece até mesmo comemoração monstruosa.
Não é um programa que se exibe com orgulho. Tendo como garoto-propaganda uma figura que escorre ódio pelo canto dos lábios e adota táticas diversionistas enquanto seus sequazes tocam o que de fato interessa, o governo segue destruindo o Estado de direito e liquefazendo as instituições. A mídia comercial reage de forma canalha: como tem interesse no atacado material, se permite a discordar no varejo dos símbolos. Celebra a destruição da previdência e condena o cocô.
A cada dia, encostado na grade da saída de casa, cercado de seguranças e com o ar parvo de sempre, o presidente dita a pauta para os repórteres amedrontados com sua grosseria habitual. Mente, despreza dados científicos e assaca acusações irresponsáveis. A isca é mordida e ganha a cena dos comentaristas de plantão pelo dia afora, enquanto a agenda econômica entreguista segue seu rumo desimpedido. Um canastrão que faz a imprensa de palhaço. Ou o contrário.
A mesma mídia corporativa parece ter descoberto o álibi para fundamentar seu partidarismo histórico. Para cada notícia crítica ao atual governo passa a ser obrigação fazer referência ao período dos governos de Lula e Dilma (curiosamente, FHC está liberado desse método comparativo), fortalecendo a teoria não comprovada nos fatos de que “é tudo igual, mas com o sinal trocado”. O importante é buscar equivalências, já de olho na próxima eleição.
O ideal é manter o antipetismo construído ao longo de muitos anos e se defender do risco da resiliência do bolsonarismo. Como se sabe, o ex-capitão não era a primeira escolha dos proprietários dos meios de comunicação e só foi assumido, mesmo assim com reservas, na confiança de que seria domado. O que não se esperava é que a base menos civilizada se tornasse a cabeça da parelha que puxa a carroça dos interesses.
A receita que Paulo Guedes traz da ditadura chilena para a economia, de um ultraliberalismo sem liberdade, parece ganhar sua tradução na política, com uma democracia assumidamente antidemocrática. Depois de eleito, vale apenas a vontade do vencedor, independentemente do respeito devido às instituições. Sai o estadista e entra em cena Johnny Bravo. Fora com o presidente banana e todo poder ao Capitão Motosserra.
Nesse contexto, as perspectivas das forças democráticas precisam vencer a inércia e mesmo a história habitual de formas de luta e resistência. Não dá para esperar apenas a oposição no campo da política institucional – que continua sendo fundamental – nem confiar num grande levante de massas. Está na hora de agir, mas também de inventar novos modelos de organização.
Uma constatação que parece autoevidente entre os democratas de coração, é que está na hora de defender ações conjuntas. A esquerda tem uma grande habilidade em propor teorias que politizam os debates, mas que muitas vezes apontam mais para a diferença do que para os objetivos comuns. A hora é de ação conjunta. O que implica em modernizar as estratégias, atualizar as tecnologias, operar em redes. Ao mesmo tempo, retomar a trajetória vitoriosa da mobilização de base das lutas setoriais, que andam em baixa.
Pode parecer que vivemos o pior dos tempos e que a tarefa é poderosa demais para nossas forças destroçadas por tantas derrotas. Talvez não estejamos longe disso. Mas a história também mostra várias outras encruzilhadas em que foi necessário rever estratégias e táticas, reinventar a participação política, atuar contra adversários poderosos. E vencer. É preciso lembrar esses momentos e aprender com seus acertos e reflexões.
O economista e cientista político Albert Hirschman escreveu nos anos 1970 um livro que se propõe a apontar caminhos para momentos de grande instabilidade institucional. De acordo com as ideias expostas em “Saída, voz e lealdade”, há duas formas de enfrentar tempos tormentosos. O primeiro, que se liga mais à economia, ele chamou de saída, uma forma de mudar completamente o rumo, deixando de lado qualquer tentativa de negociação. A outra, que tem mais ligação com a política, é a voz, que atua sem criar cisões, buscando convencer pelo melhor argumento.
De certa maneira, são duas formas aparentemente excludentes de enfrentar problemas, mas que podem se suceder e se alternar, de acordo com a situação. Em alguns momentos é fundamental atuar de forma racional, convencendo o outro e conquistando espaço para outras propostas no interior das instituições. No entanto, por vezes o rompimento é a única saída possível para enfrentar situações em que o limite parece ter sido atingido. A luta pelo aperfeiçoamento social é uma dinâmica permanente entre a saída e a voz.
E, no atual estágio de nossos desafios como nação, que não falta é frente de luta: das mulheres contra todas as formas de machismo e violência, das pessoas LGBTQ, dos quilombolas, do movimento negro e dos defensores dos direitos humanos. Dos ecologistas, dos que prezam a saúde pública e a luta antimanicomial. Dos batalhadores da escola pública de qualidade, com valorização do professor, com mais saber e menos autoritarismo. Dos críticos à censura em favor da liberdade de expressão em todas as suas formas. Daqueles que cultuam seus deuses perseguidos e seus valores libertários. Dos verdadeiros operadores da justiça que não aceitam ver seu ofício entregue ao descrédito.
Dos artistas que defendem políticas públicas que ampliem vozes e visões de mundo e que democratizem o acesso e a diversifique a produção. De jornalistas e comunicadores populares que sonham com uma comunicação pública de qualidade e uma atividade privada regulada de forma democrática e plural. Dos sem-terra que levam adiante o sonho de um território mais igualitário e de uma produção mais saudável e sustentável.
O volume da luta da sociedade vai ser, com certeza, o maior trunfo para o momento posterior de união em torno dos valores da democracia e da emancipação social. Conviver nas trincheiras da liberdade é uma das mais nobres atividades humanas. De tédio ninguém vai morrer. O pessimismo e a reclamação podem ficar guardados para dias melhores.
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