Por Tarso Genro, no site A terra é redonda:
Trato neste artigo dos pequenos e grandes compromissos na História e me inspiro mais uma vez em episódios da grande literatura do Século passado.
Proust e Joyce se encontraram somente uma vez em 1921, numa festa em homenagem a ambos, na casa do romancista Stephen Hudson. No livro O mundo moderno – dez grandes escritores, Malcom Bradbury, crítico literário e romancista, conta assim o encontro: “Naturalmente, todos achavam que Proust não viria, mas ele veio. Joyce chegou tarde, um tanto bêbado, e só se aproximou de Proust quando este já estava saindo. Proust queixou-se do estômago e Joyce reclamou da vista. “Lamento não conhecer a obra do sr. Joyce”, disse Proust. (…) “Nunca li o sr. Proust”, disse Joyce”.
E agrega sor Bradbdury: “Um grande momento da história da literatura foi desperdiçado, como aliás costuma acontecer. Quando Ulisses foi publicado no ano seguinte, Proust já estava lutando contra a morte. As duas gerações jamais chegaram a se encontrar, e somente sucessores como Samuel Beckett enxergariam a ligação entre elas.”
Em 1937, na Alemanha Nazista, ainda permaneciam 1735 judeus, entre os 17.360 advogados do país. No ano seguinte, um Decreto regulamentador da “Lei da Cidadania” revogou o direito de todos os cidadãos não arianos exercerem a profissão de advogados. Os advogados judeus foram qualificados – partir dali – como “Consultores Jurídicos Judeus, que só poderiam atuar representando clientes judeus”.
Tal medida permitiu às autoridades do Reich proclamar que “os advogados alemães pode(riam) voltar a sentir-se orgulhosos de possuir o título de advogados”. Assim como o desencontro de Proust e Joyce preencheu com silêncios um grande momento da história da literatura, a covardia da ampla maioria dos advogados alemães perante o infortúnio dos seus colegas judeus sacrificou um compromisso entre arianos e judeus que desafiasse a desumanidade e o preconceito na luta contra o nazismo.
Depois da Segunda Guerra a Alemanha se reencontra com a República de Weimar, sob as cinzas humanas do Holocausto, quando passamos a recuperar não só as grandes narrativas heroicas, como a defesa de Stalingrado, mas também visualizar as curtas oportunidades de comunhão –como nos diálogos de Churchill e Stálin – que somadas, tanto na história da literatura como na vida política, poderiam projetar resultados diferentes no futuro do mundo. A história se faz História tanto na soma cotidiana dos pequenos gestos como nos grandes enfrentamentos econômicos, políticos e militares.
Proust e Joyce não tinham consciência – no momento do encontro – que seriam considerados mais tarde, por caminhos e razões diferentes, dois grandes monumentos da literatura no Século XX: a beleza inútil da decadência aristocrática e burguesa fundida genialmente por Proust nos volumes do Em busca do tempo perdido, e o fim do realismo revolucionário iluminista – na linguagem e no tema – do portentoso Ulisses de Joyce. Não poderiam ter os dois escritores “compromisso” humanístico de conversar sobre os destinos do mundo porque não tinham consciência da sua própria grandeza e, exigir-lhes isso, seria fazer uma estéril e tardia cobrança.
No caso dos advogados e juristas alemães, que ajudaram formatar a barbárie como ordem jurídica estabilizada pela morte e pela violência, a conclusão é diferente. A brutalidade do nazismo erigida em ordem coerente – como sistema – foi sendo constituída, não somente pelas grandes narrativas de certa parcela do romantismo alemão como idealização do passado, mas também pelos pactos invisíveis no cotidiano da opressão, como este da maioria dos advogados alemães ao apoiar o nazismo.
Eles foram autores da naturalização do ódio ao diferente, ao estranho, ao estrangeiro, que acabaram matando tudo que tinha de bom e generoso na terra de Hegel, Goethe, Schiller, Marx e Thomas Mann. Eles são culpados, co-autores do massacre e poderão ser compreendidos pela História das grandes narrativas, mas jamais perdoados por quem tem compromisso com a igualdade perante a lei e os valores da democracia como substância da vida.
Lembro desses fatos para retomar a questão da luta contra o fascismo no Brasil bolsonárico e dizer – com todo respeito a quem diverge – que os movimentos feitos por Marcelo Freixo e Paulo Teixeira, articulando uma ampla frente para ressecar os aspectos normativos mais agudos do pacote fascista de Moro, me pareceram corretos.
Não é pouco, num Congresso que tem maioria política para implantar leis fascistas (que já são normas “de fato” apoiadas pela mídia) conseguir colocar uma cunha – ainda que modesta – na legalidade fascista, que viaja da vida real para se integrar nas formas penais da dominação ultraliberal no Brasil.
Penso que este compromisso, que se irradiou pela maioria parlamentar, deveria aliás servir de exemplo para que as magnas lideranças e dirigentes políticos de esquerda e do campo democrático – Lula, Ciro, Boulos, Haddad, Manuela, Requião, Marina, Randolfe, Carlos Siqueira, Lupi –dirigentes manifestamente anti-fascistas – se preocupassem menos com as suas agendas pessoais imediatas e mais com a unidade capaz de derrotar o fascismo.
Pensemos nisso: (1) depois de uma agressão fascista, o Estado de Direito não voltará a ser mais o mesmo. Ou será outro ou será o caos; (2) depois do ultraliberalismo, o nacional-desenvolvimentismo dependente – apoiado pelo capital privado “nacional” subsidiado, será uma miragem no passado;
(3) se a esquerda e os democratas autênticos não se unirem na diferença – para dar uma perspectiva mínima de segurança de futuro – as massas alienadas do trabalho regular e dispersas pela cultura do mercado, se deslocarão para o autoritarismo de direita em busca de socorro e
proteção das milícias.
Nossos dirigentes nacionais com influência política terão a “consciência de compromisso” que Joyce e Proust não poderiam ter? Ou darão o passo adiante, que não deram os advogados e juristas alemães, quando ocupados pelas suas tarefas imediatas e partidárias, não perceberam a catástrofe da Europa como catástrofe da totalidade do mundo, deixando os judeus jogados a sua própria sorte?
Acho que esta pequena movimentação de Freixo e Paulo Teixeira pode sim, ser criticada, porque afinal estamos tateando na organização da luta contra o fascismo ultraliberal, que é novo na História. A minha opinião, porém, é que foram corajosos e ousados e desidrataram o pacote fascista de Moro. A partir do seu exemplo nossos líderes poderiam propor movimentos mais ousados e unitários para bloquear os ovos da serpente, com mais democracia e mais coragem política.
* Tarso Genro foi Governador do Rio Grande do Sul e Ministro da Justiça no Governo Lula.
Trato neste artigo dos pequenos e grandes compromissos na História e me inspiro mais uma vez em episódios da grande literatura do Século passado.
Proust e Joyce se encontraram somente uma vez em 1921, numa festa em homenagem a ambos, na casa do romancista Stephen Hudson. No livro O mundo moderno – dez grandes escritores, Malcom Bradbury, crítico literário e romancista, conta assim o encontro: “Naturalmente, todos achavam que Proust não viria, mas ele veio. Joyce chegou tarde, um tanto bêbado, e só se aproximou de Proust quando este já estava saindo. Proust queixou-se do estômago e Joyce reclamou da vista. “Lamento não conhecer a obra do sr. Joyce”, disse Proust. (…) “Nunca li o sr. Proust”, disse Joyce”.
E agrega sor Bradbdury: “Um grande momento da história da literatura foi desperdiçado, como aliás costuma acontecer. Quando Ulisses foi publicado no ano seguinte, Proust já estava lutando contra a morte. As duas gerações jamais chegaram a se encontrar, e somente sucessores como Samuel Beckett enxergariam a ligação entre elas.”
Em 1937, na Alemanha Nazista, ainda permaneciam 1735 judeus, entre os 17.360 advogados do país. No ano seguinte, um Decreto regulamentador da “Lei da Cidadania” revogou o direito de todos os cidadãos não arianos exercerem a profissão de advogados. Os advogados judeus foram qualificados – partir dali – como “Consultores Jurídicos Judeus, que só poderiam atuar representando clientes judeus”.
Tal medida permitiu às autoridades do Reich proclamar que “os advogados alemães pode(riam) voltar a sentir-se orgulhosos de possuir o título de advogados”. Assim como o desencontro de Proust e Joyce preencheu com silêncios um grande momento da história da literatura, a covardia da ampla maioria dos advogados alemães perante o infortúnio dos seus colegas judeus sacrificou um compromisso entre arianos e judeus que desafiasse a desumanidade e o preconceito na luta contra o nazismo.
Depois da Segunda Guerra a Alemanha se reencontra com a República de Weimar, sob as cinzas humanas do Holocausto, quando passamos a recuperar não só as grandes narrativas heroicas, como a defesa de Stalingrado, mas também visualizar as curtas oportunidades de comunhão –como nos diálogos de Churchill e Stálin – que somadas, tanto na história da literatura como na vida política, poderiam projetar resultados diferentes no futuro do mundo. A história se faz História tanto na soma cotidiana dos pequenos gestos como nos grandes enfrentamentos econômicos, políticos e militares.
Proust e Joyce não tinham consciência – no momento do encontro – que seriam considerados mais tarde, por caminhos e razões diferentes, dois grandes monumentos da literatura no Século XX: a beleza inútil da decadência aristocrática e burguesa fundida genialmente por Proust nos volumes do Em busca do tempo perdido, e o fim do realismo revolucionário iluminista – na linguagem e no tema – do portentoso Ulisses de Joyce. Não poderiam ter os dois escritores “compromisso” humanístico de conversar sobre os destinos do mundo porque não tinham consciência da sua própria grandeza e, exigir-lhes isso, seria fazer uma estéril e tardia cobrança.
No caso dos advogados e juristas alemães, que ajudaram formatar a barbárie como ordem jurídica estabilizada pela morte e pela violência, a conclusão é diferente. A brutalidade do nazismo erigida em ordem coerente – como sistema – foi sendo constituída, não somente pelas grandes narrativas de certa parcela do romantismo alemão como idealização do passado, mas também pelos pactos invisíveis no cotidiano da opressão, como este da maioria dos advogados alemães ao apoiar o nazismo.
Eles foram autores da naturalização do ódio ao diferente, ao estranho, ao estrangeiro, que acabaram matando tudo que tinha de bom e generoso na terra de Hegel, Goethe, Schiller, Marx e Thomas Mann. Eles são culpados, co-autores do massacre e poderão ser compreendidos pela História das grandes narrativas, mas jamais perdoados por quem tem compromisso com a igualdade perante a lei e os valores da democracia como substância da vida.
Lembro desses fatos para retomar a questão da luta contra o fascismo no Brasil bolsonárico e dizer – com todo respeito a quem diverge – que os movimentos feitos por Marcelo Freixo e Paulo Teixeira, articulando uma ampla frente para ressecar os aspectos normativos mais agudos do pacote fascista de Moro, me pareceram corretos.
Não é pouco, num Congresso que tem maioria política para implantar leis fascistas (que já são normas “de fato” apoiadas pela mídia) conseguir colocar uma cunha – ainda que modesta – na legalidade fascista, que viaja da vida real para se integrar nas formas penais da dominação ultraliberal no Brasil.
Penso que este compromisso, que se irradiou pela maioria parlamentar, deveria aliás servir de exemplo para que as magnas lideranças e dirigentes políticos de esquerda e do campo democrático – Lula, Ciro, Boulos, Haddad, Manuela, Requião, Marina, Randolfe, Carlos Siqueira, Lupi –dirigentes manifestamente anti-fascistas – se preocupassem menos com as suas agendas pessoais imediatas e mais com a unidade capaz de derrotar o fascismo.
Pensemos nisso: (1) depois de uma agressão fascista, o Estado de Direito não voltará a ser mais o mesmo. Ou será outro ou será o caos; (2) depois do ultraliberalismo, o nacional-desenvolvimentismo dependente – apoiado pelo capital privado “nacional” subsidiado, será uma miragem no passado;
(3) se a esquerda e os democratas autênticos não se unirem na diferença – para dar uma perspectiva mínima de segurança de futuro – as massas alienadas do trabalho regular e dispersas pela cultura do mercado, se deslocarão para o autoritarismo de direita em busca de socorro e
proteção das milícias.
Nossos dirigentes nacionais com influência política terão a “consciência de compromisso” que Joyce e Proust não poderiam ter? Ou darão o passo adiante, que não deram os advogados e juristas alemães, quando ocupados pelas suas tarefas imediatas e partidárias, não perceberam a catástrofe da Europa como catástrofe da totalidade do mundo, deixando os judeus jogados a sua própria sorte?
Acho que esta pequena movimentação de Freixo e Paulo Teixeira pode sim, ser criticada, porque afinal estamos tateando na organização da luta contra o fascismo ultraliberal, que é novo na História. A minha opinião, porém, é que foram corajosos e ousados e desidrataram o pacote fascista de Moro. A partir do seu exemplo nossos líderes poderiam propor movimentos mais ousados e unitários para bloquear os ovos da serpente, com mais democracia e mais coragem política.
* Tarso Genro foi Governador do Rio Grande do Sul e Ministro da Justiça no Governo Lula.
0 comentários:
Postar um comentário