Por Pedro Paulo Zahluth Bastos, no site Carta Maior:
In memoriam, para Wilson Cano, professor de muitas gerações e combatente incansável por um país que não deixe ninguém para trás em todas as dimensões da vida
Parece piada pronta: o ministro Paulo Guedes afirmou que só se deu conta da gravidade da Coronacrise quando faltou laranja para o suco que pediu em um hotel de luxo de Brasília. O prêmio de consolação por não ler o Financial Times e a Economist foi um suco de abacaxi e o convite de Bolsonaro para que passe a morar na Granja do Torto.
Como nem todos têm a mesma sorte, Paulo Guedes foi obrigado a arquivar seu plano de empurrar mais reformas como remédio amargo para a crise. O desgaste do presidente e a rejeição popular também forçaram o arquivamento da primeira ideia para salvar as empresas matando os trabalhadores, ou seja, a suspensão de salários por 4 meses.
A possibilidade de suspensão do contrato, agora por dois meses, não foi revertida nas iniciativas anunciadas na quarta 01/04, porém, em troca, o trabalhador garante o seguro-desemprego, que varia de R$ 1.045 a R$ 1.813. Um corte de 50% ou 70% do salário por até três meses garante 50% ou 70% do seguro-desemprego. Uma redução brutal, dado o valor do seguro-desemprego.
O governo não vai proteger a renda de quem não tem onde cortar. Segundo a última Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE (2017-8), brasileiros que recebem até dois salários mínimos gastam tudo o que ganham. Isso, 100% no mínimo, acumulando dívidas quando sobra mês no fim do salário. Não porque não gostem de poupar, como Paulo Guedes imagina.
Resultado: o corte no gasto das famílias que tiverem membros desempregados ou com salários suspensos ou cortados vai gerar fome, mas não deve evitar o aumento da inadimplência. A consequência a curto prazo é reforçar a queda da demanda para as empresas. O que algumas ganham com corte de custos, outras perdem em vendas, o que deve levá-las a cortar também as encomendas para as primeiras.
Depois de ouvirmos os economistas neoliberais repetirem por anos que a economia como um todo deve funcionar como uma casa com orçamento restrito, não podíamos esperar mesmo que entendessem macroeconomia. A longo prazo, o aumento da inadimplência das famílias vai atrasar em muito a convalescência da economia brasileira. Inclusive porque vai provocar o endividamento e a falência de muitas das empresas que se salvarem da Coronacrise.
Para evitar isso, o governo deveria se comprometer a pagar a parte necessária para manter o emprego e os salários intactos, pelo menos até três salários mínimos. É pensando assim que, ao redor do mundo, os Estados estão assumindo como dívida pública os gastos de famílias e empresas. Ao limitarem o endividamento privado, há mais chances de se garantir o retorno do gasto privado depois da crise, condição indispensável para o aumento da arrecadação de impostos (que, aliás, já caiu 2,71% em fevereiro).
Teoricamente é muito mais fácil pagar a dívida pública do que a privada. O custo do endividamento público é muito menor, e os países podem elevar impostos (ou cortar gastos em uma expansão). No limite, podem até emitir moeda para pagar sua dívida, embora no Brasil isto seja proibido por lei.
Dizer que é mais fácil não quer dizer que seja fácil. Por isto, embora até neoliberais estejam recorrendo ao planejamento e ao gasto público para evitar o colapso da saúde pública e da economia (para não dizer o caos social), não podemos afirmar que o neoliberalismo vai morrer de Covid-19. Nem no mundo, muito menos no Brasil.
As vozes de sempre já se levantam para dizer que o aumento do gasto público deve se limitar ao período de emergência. Passada a crise de saúde pública, o aumento da dívida pública – louvado como salvação hoje em dia – vai se transformar no pretexto que os neoliberais de plantão vão usar para tentar “flexibilizar” ainda mais salários e jornada de trabalho, inclusive no serviço público, e cortar aposentadorias ao redor do mundo. Ou até para ousar, no Brasil, privatizar a Petrobrás e os bancos públicos.
Eles também vão dizer que os juros de longo prazo não podem ser contidos no Brasil como é praxe no resto do mundo, ou seja, liberando o Banco Central para comprar títulos da dívida pública de longo prazo depois da autorização de emergência hoje em dia. Vão pedir juros mais elevados para financiar a dívida pública, pois quem nunca tem dinheiro de sobra para pagar o imposto sobre grandes fortunas sempre tem para emprestar cobrando caro ao Estado.
Os neoliberais também vão dizer que, para pagar a dívida, não vai ter dinheiro para arcar com os custos da transição para uma economia verde, ainda que os mesmos cientistas que nos aconselham hoje a praticar o isolamento social nos ensinem que o colapso ambiental trazido pelo aquecimento global nos fará ter saudades da Coronacrise.
Por isso, a médio prazo, um desdobramento muito provável da Coronacrise será o de aprofundar a deterioração fiscal e a instabilidade política que a Grande Recessão de 2008-9 detonou no mundo inteiro, com consequências imprevisíveis. Embora as ideias zumbis do neoliberalismo, ou melhor, os interesses do 1% que elas representam sejam uma causa fundamental da instabilidade, não podemos prever que os zumbis neoliberais sejam enterrados em breve. Ou se levantarão consigo o capitalismo pouco antes do colapso ambiental, ou só depois.
* Pedro Paulo Zahluth Bastos e Professor Associado do Instituto de Economia da Unicamp. Ex-professor visitante na UC Berkeley.
In memoriam, para Wilson Cano, professor de muitas gerações e combatente incansável por um país que não deixe ninguém para trás em todas as dimensões da vida
Parece piada pronta: o ministro Paulo Guedes afirmou que só se deu conta da gravidade da Coronacrise quando faltou laranja para o suco que pediu em um hotel de luxo de Brasília. O prêmio de consolação por não ler o Financial Times e a Economist foi um suco de abacaxi e o convite de Bolsonaro para que passe a morar na Granja do Torto.
Como nem todos têm a mesma sorte, Paulo Guedes foi obrigado a arquivar seu plano de empurrar mais reformas como remédio amargo para a crise. O desgaste do presidente e a rejeição popular também forçaram o arquivamento da primeira ideia para salvar as empresas matando os trabalhadores, ou seja, a suspensão de salários por 4 meses.
A possibilidade de suspensão do contrato, agora por dois meses, não foi revertida nas iniciativas anunciadas na quarta 01/04, porém, em troca, o trabalhador garante o seguro-desemprego, que varia de R$ 1.045 a R$ 1.813. Um corte de 50% ou 70% do salário por até três meses garante 50% ou 70% do seguro-desemprego. Uma redução brutal, dado o valor do seguro-desemprego.
O governo não vai proteger a renda de quem não tem onde cortar. Segundo a última Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE (2017-8), brasileiros que recebem até dois salários mínimos gastam tudo o que ganham. Isso, 100% no mínimo, acumulando dívidas quando sobra mês no fim do salário. Não porque não gostem de poupar, como Paulo Guedes imagina.
Resultado: o corte no gasto das famílias que tiverem membros desempregados ou com salários suspensos ou cortados vai gerar fome, mas não deve evitar o aumento da inadimplência. A consequência a curto prazo é reforçar a queda da demanda para as empresas. O que algumas ganham com corte de custos, outras perdem em vendas, o que deve levá-las a cortar também as encomendas para as primeiras.
Depois de ouvirmos os economistas neoliberais repetirem por anos que a economia como um todo deve funcionar como uma casa com orçamento restrito, não podíamos esperar mesmo que entendessem macroeconomia. A longo prazo, o aumento da inadimplência das famílias vai atrasar em muito a convalescência da economia brasileira. Inclusive porque vai provocar o endividamento e a falência de muitas das empresas que se salvarem da Coronacrise.
Para evitar isso, o governo deveria se comprometer a pagar a parte necessária para manter o emprego e os salários intactos, pelo menos até três salários mínimos. É pensando assim que, ao redor do mundo, os Estados estão assumindo como dívida pública os gastos de famílias e empresas. Ao limitarem o endividamento privado, há mais chances de se garantir o retorno do gasto privado depois da crise, condição indispensável para o aumento da arrecadação de impostos (que, aliás, já caiu 2,71% em fevereiro).
Teoricamente é muito mais fácil pagar a dívida pública do que a privada. O custo do endividamento público é muito menor, e os países podem elevar impostos (ou cortar gastos em uma expansão). No limite, podem até emitir moeda para pagar sua dívida, embora no Brasil isto seja proibido por lei.
Dizer que é mais fácil não quer dizer que seja fácil. Por isto, embora até neoliberais estejam recorrendo ao planejamento e ao gasto público para evitar o colapso da saúde pública e da economia (para não dizer o caos social), não podemos afirmar que o neoliberalismo vai morrer de Covid-19. Nem no mundo, muito menos no Brasil.
As vozes de sempre já se levantam para dizer que o aumento do gasto público deve se limitar ao período de emergência. Passada a crise de saúde pública, o aumento da dívida pública – louvado como salvação hoje em dia – vai se transformar no pretexto que os neoliberais de plantão vão usar para tentar “flexibilizar” ainda mais salários e jornada de trabalho, inclusive no serviço público, e cortar aposentadorias ao redor do mundo. Ou até para ousar, no Brasil, privatizar a Petrobrás e os bancos públicos.
Eles também vão dizer que os juros de longo prazo não podem ser contidos no Brasil como é praxe no resto do mundo, ou seja, liberando o Banco Central para comprar títulos da dívida pública de longo prazo depois da autorização de emergência hoje em dia. Vão pedir juros mais elevados para financiar a dívida pública, pois quem nunca tem dinheiro de sobra para pagar o imposto sobre grandes fortunas sempre tem para emprestar cobrando caro ao Estado.
Os neoliberais também vão dizer que, para pagar a dívida, não vai ter dinheiro para arcar com os custos da transição para uma economia verde, ainda que os mesmos cientistas que nos aconselham hoje a praticar o isolamento social nos ensinem que o colapso ambiental trazido pelo aquecimento global nos fará ter saudades da Coronacrise.
Por isso, a médio prazo, um desdobramento muito provável da Coronacrise será o de aprofundar a deterioração fiscal e a instabilidade política que a Grande Recessão de 2008-9 detonou no mundo inteiro, com consequências imprevisíveis. Embora as ideias zumbis do neoliberalismo, ou melhor, os interesses do 1% que elas representam sejam uma causa fundamental da instabilidade, não podemos prever que os zumbis neoliberais sejam enterrados em breve. Ou se levantarão consigo o capitalismo pouco antes do colapso ambiental, ou só depois.
* Pedro Paulo Zahluth Bastos e Professor Associado do Instituto de Economia da Unicamp. Ex-professor visitante na UC Berkeley.
0 comentários:
Postar um comentário