Charge: Marco De Angelis/Itália |
O confinamento social ao qual foram submetidos milhões de pessoas em todo o mundo, nos últimos meses, é algo jamais experimentado pela sociedade humana ao longo da história. É verdade que a nossa existência no planeta foi colocada à prova em dezenas de episódios factuais: disputas inter-impérios, doenças e pestes, guerras mundiais e continentais, confrontos étnicos, raciais e religiosos, enfim, uma coleção de fenômenos naturais e não naturais que submeteram a humanidade à diversos impasses existenciais.
Por que podemos afirmar que o momento que atravessamos é único em toda a trajetória humana? Ao olharmos o mundo e os avanços científicos alcançados nos últimos anos, podemos afirmar que sim. Jamais em toda trajetória do Homo sapiens tínhamos acumulado tanto conhecimento e experimentos nas várias áreas do conhecimento e das ciências aplicadas. A humanidade alcançou, nesse último período, níveis extraordinários de conhecimento. Nesses últimos 40 anos, acumulamos mais conhecimento que em toda a história humana na Terra.
Nesse sentido, destaco duas áreas que avançaram de forma extraordinária: as ciências biológicas e as ciências da informação. O primeiro caso do novo coronavírus anunciado publicamente foi em Wuhan, na China. Em poucos dias cientistas já tinham isolado o agente patogênico, identificado o RNA e a cadeia proteica, a capacidade de reproduzir e contaminar humanos, possíveis mutações da família corona etc. Foram analisados e diagnosticados os principais sintomas derivados da contaminação, métodos de isolamentos para evitar a propagação exponencial da doença, reações etárias para a patogenia. A corrida alucinante para produção de vacinas, remédios e métodos terapêuticos capazes de evitar a mortalidade de milhões de pessoas estão entre várias outras iniciativas de cientistas, profissionais da saúde, governos e organizações da sociedade civil pelos quatro cantos do mundo. Tudo isso em menos de 60 dias.
Se rápida foi a mobilização para identificar todos os elementos científicos que circundam a Covid-19, não foram diferentes a intensidade e a extensão demonstradas pelos meios de comunicação para fazer chegar informações e conhecimento dos mais diversos lugares a bilhões de pessoas, em tempo real e em escala global. Em poucos dias era possível saber de todos os meandros que envolviam a pandemia mundial. A aldeia global agora está quase que 100% envolvida nas questões que envolvem o vírus e suas consequências individuais, coletivas, sanitárias, econômicas, sociais etc. Informações, vídeos, palestras, seminários, colóquios, fake news, reuniões a distância… enfim, tudo transita pelas redes sociais em velocidade estonteante.
Certo é que a Covid-19 mudou de forma acelerada a forma de viver e interpretar o mundo para pessoas, comunidades, cidades, países, toda a sociedade planetária. Uma das questões e/ou inquietações derivadas da crise provocada pelo novo coronavírus diz respeito ao indivisível ser humano. Como temos nos comportado emocionalmente diante do isolamento social? Quais as implicações psicológicas e sociológicas para cada indivíduo e grupo social? Sairemos desta crise mais individualistas ou mais coletivistas? Seremos mais afetivos e humanos ou seremos mais rancorosos e odiosos? Sairemos mais divididos e mais egoístas ou mais unidos e mais participativos socialmente? Essas e outras perguntas são apenas algumas das inquietações presentes nessa fase dramática de nossas vidas individuais e coletivas.
Se a resposta no campo individual ainda está para ser formatada e destrinchada, no campo político, econômico e social as transformações serão aceleradas e profundamente impactantes para todos povos e países. Um novo ciclo que se abre diante da corona-crise, para o bem ou para o mal da humanidade, a depender das escolhas de governantes e sociedade.
O primeiro impacto diz respeito à questão geopolítica. O mundo multipolar que se descortinou após a crise financeira de 2008 trouxe enormes dificuldades econômicas e financeiras para os Estados Unidos da América e a Europa. A derrocada do sistema financeiro atingiu-os em cheio. A crise atual, que já estava em gestação, foi acelerada pelo coronavírus, que volta a atingir, agora, de maneira ainda mais impactante, o continente europeu e os EUA. As perspectivas para ambos são de milhares de mortes, crises políticas e financeiras, tensões sociais internas e um cenário de mudanças profundas na sociedade.
Ao mesmo tempo, a China que já vinha ocupando espaços políticos, econômicos e diplomáticos desde 2008, tende a aumentar ainda mais sua influência pelo mundo afora. Os chineses, que foram as primeiras vítimas do vírus, conseguiram controlar a expansão da doença no país, enfrentaram de forma determinada as ações sanitárias e de saúde pública e agora oferecem ajuda humanitária e tecnológica a vários países. A China sairá definitivamente desta crise como a maior potência econômica do mundo. Diante deste novo cenário a pergunta que devemos fazer é: o império estadunidense, diminuindo seu poder econômico e sua influência mundial, perderá sua plena hegemonia conquistada no século XX de forma pacífica? Aceitará de forma natural as mudanças no novo tabuleiro político internacional?
Em segundo lugar, a crise do coronavírus acelerou a derrocada do neoliberalismo e do ultraliberalismo hegemônico nos últimos anos nos quatro cantos do mundo. A situação econômica em desenvolvimento impõe aos estados nacionais a quebra de todos os paradigmas de contenção fiscal e de investimentos sociais. Abre-se nesse cenário a possibilidade de uma intensa e extensa agenda keynesiana para tentar salvar o que resta de capitalismo produtivo no centro e na periferia do sistema. A perspectiva econômica é de recessão longa, com crises sociais e humanitárias se alastrando pelos países e continentes. Ao mesmo tempo, as democracias mais frágeis poderão sofrer rupturas e, consequentemente, a constituição de regimes ditatoriais, centralizados e sangrentos. Nesse cenário a luta democrática ganha força e relevância. A esperança sairá da luta coletiva.
Em terceiro lugar, a tendência privatista do Estado e a política neoliberal do Estado mínimo para a sociedade e máximo para os rentismo entrará em crise. Não faltará, por parte de governantes, bancos centrais, FMI etc., a tentativa de salvar novamente o sistema e acomodar as elites econômicas e financeiras nessa balbúrdia.
A recessão, o desemprego, o subemprego, a informalidade, a falência de milhares de pequenos e médios empreendimentos, a disputa feroz pelos mercados internacionais serão as marcas de grande parte do mundo no curto e no médio prazo. O tensionamento social, a miséria e a crise humanitária serão a face mais cruel da crise. Portanto, a luta por um outro sistema e modelo de desenvolvimento, com garantias de acesso a políticas públicas de saúde, educação, moradia, cultura, segurança tenderá a impulsionar a sociedade global e as organizações populares e democráticas.
Esses são apenas algumas de muitas outras questões que serão enfrentadas no próximo período. A solução do ponto de interrogação neste ambiente histórico de incertezas ficará muito a depender de uma pergunta ainda sem resposta: que tipo de indivíduo saíra do isolamento social? Como iremos interpretar o caos humano, ambiental e social ao qual chegamos? Se a resposta for luta, mobilização, resistência, saída coletiva, ação organizadora e solidária, caminharemos para um novo tempo. Mas, se sairmos desta crise do mesmo modo que entramos, com as forças do mercado e os interesses financeiros acima de tudo e de todos, caminharemos a passos largos para a barbárie total. Façamos da crise um novo tempo: tempo de rupturas individuais e coletivas, tempos de revoluções e rosas, tempos de novas humanidades, tempos de liberdades e poesias.
* Gilson Reis é coordenador-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e vereador em Belo Horizonte (PCdoB/MG).
0 comentários:
Postar um comentário