quinta-feira, 9 de abril de 2020

Subnotificação esconde dimensão da Covid-19

Por Cida de Oliveira, na Rede Brasil Atual:

A flexibilização do isolamento social defendida pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta – e que já vem sendo adotada em muitas cidades em diversos estados –, é uma irresponsabilidade. Em vez disso, devem ser adotadas medidas mais rigorosas em relação à única estratégia capaz de diminuir a velocidade de contágio pelo novo coronavírus causador da covid-19. O alerta é do médico epidemiologista Francisco Job Neto, do Distrito Federal, doutor em epidemiologia de doenças infecciosas no sistema prisional pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

“São fantasiosas as estimativas oficiais de 2 mil mortos em abril em São Paulo. A partir da próxima semana, o número de casos deve aumentar. O Brasil deverá repetir número de mortos semelhante ao dos Estados Unidos, Itália e Espanha. Só poderia ser diferente, com números menores, se estivéssemos fazendo tudo melhor que esses países fizeram e estão fazendo, o que não é o nosso caso”, afirma Job Neto.

Na realidade, o Brasil não sabe o número de casos de infecção espalhados pelo país e muito menos o de óbitos. Ontem (8), durante entrevista coletiva, técnicos do Ministério da Saúde mostraram dados referentes aos casos de infecção suspeitos em comparação com casos confirmados. Segundo quadro apresentado (abaixo), subiu o número sob investigação (coluna em cinza) em relação aos confirmados (em vermelho).

“Da semana 8, quando surgiu o primeiro caso confirmado de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) por covid-19 até agora, são 31.451 casos relatados. Desses, 11% (3.416) foram confirmados”, disse o secretário de vigilância em saúde Wanderson Oliveira. Os dados, informados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), vinculado à pasta, refletem apenas a interpretação do médico sobre o paciente atendido.




Outro gráfico apresentado pelo ministério permite uma noção das proporções de casos de SRAG, categoria na qual está incluída a covid-19, no ano passado, quando comparada com este ano, após a chegada do novo coronavírus.

“Na parte cinza do gráfico (abaixo), mais de 80% do total, estão casos de SRAG sem diagnóstico nos dois anos. Em 2020, depois que o novo coronavírus chegou ao país, a zona cinzenta sobe e lembra um arranha-céu. É a covid-19”, explica Job Neto.




Sem precedentes

Para complicar, os números em investigação refletem apenas os casos suspeitos, em que as pessoas fizeram o exame e ainda não obtiveram o resultado. Não incluem aquelas que, apesar de assintomáticas, seguem espalhando o vírus por onde passam, contaminando pessoas de todas as idades e colocando em risco de vida especialmente as pessoas idosas, com diabetes, pressão alta, cardiopatias, obesidade.

Outra ideia do tamanho da subnotificação vem com uma pesquisa no portal da transparência desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reúne dados atualizados em tempo real pelos cartórios de registro civil. Publicada hoje (9) pelo portal UOL, a reportagem mostra que declarações de óbito apontam um número 48% maior de mortes por covid-19 do que os dados oficiais apresentados pelo governo federal.

Das certidões de óbito registradas entre os dias 16 de março e 5 de abril, 722 trazem a doença como causa da morte. Para o mesmo período, dados do Ministério da Saúde indicavam 486.

“Uma subnotificação sem precedentes. Impossível que tenhamos apenas 15 mil casos nesse momento. Só testamos os casos de moderados a graves. De toda maneira, o número de óbitos, ainda que seja real, há muitas pessoas que morreram sem que o exame tenha ficado pronto. Independente disso, esses números estão crescendo. Estamos com 80 mortos e esse número vem aumentando de maneria impressionante, e nem chegamos ao pico, que será a partir da segunda quinzena de abril”, disse o médico infectologista Marcos Caseiro, da rede municipal e estadual na cidade de Santos (SP).

Em entrevista aos jornalistas Glauco Faria e Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual, ele disse que em Santos há 10 óbitos confirmados e 31 em investigação – três vezes maior que o número confirmado. Há 462 casos suspeitos aguardando exame.

“Temos de melhorar a qualidade do nosso diagnóstico. Há três semanas o governo diz que comprou 20 milhões de testes rápidos. Onde estão? Falam mas as coisas não aparecem. A subnotificação é das coisas mais sérias e importantes, que vai contra o que preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS), de fazer testes para podermos identificar esses casos positivos”, cobrou.
A entrevista com Marcos Caseiro começa a partir do minuto 1:23:20

Fora da realidade

É baseado em dados assim distantes da realidade marcada por um vírus altamente contagioso, que levam as pessoas a acreditar que podem continuar indo às ruas, onde podem se contaminar ou contaminar outras pessoas, que o ministro Mandetta pretende afrouxar o atual modelo de isolamento tão combatido por seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro.

“Qualquer forma de isolamento seletivo é uma bobagem. Só teria sentido dentro de um isolamento ainda maior para aquelas pessoas que têm maior risco. Mas isolar só as pessoas de risco no Brasil é absolutamente impossível. É preciso lembrar que muita gente não tem saneamento básico, não tem moradia digna, o transporte público é caracterizado por aglomeração. Como isolar as pessoas com mais de 60 anos, as com comorbidades? A quantidade de diabéticos, hipertensos e cardiopatas é enorme. Não tem como isolar essas pessoas seletivamente”, questiona Job Neto.

Nem a Inglaterra, que é um país menor, com menor população e mais organizado conseguiu fazer o isolamento seletivo. “O primeiro ministro (Boris Johnson) chegou a dar uma declaração dessas e hoje ele está na UTI. É absolutamente impossível defender isso a essa altura, em que a gente sabe como funciona a epidemia. A defesa dessa ideia é ignorância e oportunismo”.

É baseado em dados assim distantes da realidade marcada por um vírus altamente contagioso, que levam as pessoas a acreditar que podem continuar indo às ruas, onde podem se contaminar ou contaminar outras pessoas, que o ministro Mandetta pretende afrouxar o atual modelo de isolamento tão combatido por seu chefe, o presidente Bolsonaro

Ele avalia que o único país que está conseguindo fazer alguma coisa nesse sentido é a Coreia do Sul, onde as pessoas já têm o hábito de usar máscaras para se prevenir do contágio de outras infecções, a população é bem menor e o território, que não chega ao tamanho de Santa Catarina, é rico. Trata-se portanto de um país que tem a capacidade de seguir as pessoas pelo celular.

Quarentena

“Fazer qualquer comparação de qualquer tipo de estrato da população coreana com a de Paraisópolis, ou com a favela da Maré, os cortiços de São Paulo, é ridículo. Não dá para falar de lugares de baixa incidência, porque não conhecemos a incidência real. E mesmo que existisse local de baixa incidência neste momento, eles deixariam de ser de baixa incidência sem o manejo adequado da quarentena.”

O epidemiologista chama atenção para o fato de que o Brasil não tem condições de fazer testes massivos, como faz a Coreia. E muito menos as mesmas condições de salubridade que os coreanos. E repete: a defesa de isolamento seletivo ou de qualquer outra coisa que não seja o que a OMS recomenda é oportunismo.

Além de inviabilizar a adoção de ações para a emergência em saúde, como prever as necessidades regionais de leitos e UTI, de médicos e demais profissionais para evitar o descontrole da epidemia, a subnotificação no Brasil expõe o colapso dos laboratórios públicos, que, desmontados pelas sucessivas políticas de desmonte desde o governo de Michel Temer, não conseguem realizar os testes.

“Sem testes a gente não tem dados confiáveis. As pessoas estão se infectando e morrendo sem fazer diagnóstico. Teríamos de fazer milhares de testes toda semana. Mandetta fala que vai relaxar o isolamento nas cidades com mais de 50% dos leitos ociosos. Mas como saber se o número de infectados não é bem maior?”, questiona.

Para o epidemiologista, a situação no país resulta da histórica fragilização do sistema público de saúde, que reduziu a capacidade de recursos humanos, de diagnósticos e de leitos. Há então a redução na capacidade de governança, de tratamento e o aumento da letalidade.

“Não tem ambulância, não tem hospital, nem UTI e nem médicos e enfermeiros. É o desmonte do sistema.”

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