Por Paulo Kliass, no site Outras Palavras:
O cenário era aquele do período posterior à aprovação definitiva do impedimento de Dilma Roussef, em agosto de 2016. Michel Temer já tinha se aboletado no Palácio do Planalto e havia nomeado Henrique Meirelles para chefiar o ministério da Fazenda. A enorme pressão exercida pelos representantes do sistema financeiro e pelos “especialistas” dos grandes meios de comunicação referia-se – dia sim, outro também – à necessidade de impor um maior rigor no controle dos gastos públicos e mais austeridade na chamada “responsabilidade fiscal”.
Assim, no apagar das luzes daquele ano, em 13 de dezembro, como que a comemorar o 48º aniversário da tragédia do AI-5, o Congresso Nacional aprovava a chamada PEC do Fim do Mundo – a Proposta de Emenda Constitucional nº 241. Com sua promulgação, passava a ter validade a Emenda Constitucional nº 95, por meio da qual era criado o Novo Regime Fiscal. Uma completa insanidade do ponto de vista da política econômica, uma vez que estabelecia o congelamento das despesas orçamentárias pelo longo período de 20 anos. Ou seja, essa medida matava ali mesmo, na origem, toda e qualquer tentativa de se realizar as políticas anticíclicas, quando os Estados são chamados a elevar seu nível de dispêndio público com o intuito de abrir caminho para superar momentos de recessão das economias de seus países.
Ao longo da tramitação da PEC, os economistas não alinhados com o conservadorismo já alertávamos para os riscos embutidos na sua aprovação. Afinal, engessar esse tipo de recomendação de política fiscal no texto da Constituição poderia significar um grave retrocesso no modelo adotado em 1988. A narrativa levada à frente pelos adeptos da ortodoxia dava conta de uma suposta falência iminente do Estado caso não fossem adotadas as panaceias de sempre, como a proposta de Reforma da Previdência e de redução das despesas orçamentárias de forma geral. Porém, a exemplo do que já estava estabelecido na própria Lei de Responsabilidade Fiscal, o foco permanecia sendo o controle rígido apenas nas contas primárias – ou seja, todas as rubricas do Orçamento, com exceção mui malandra daquelas de natureza financeira. Com isso, por exemplo, os gastos com juros da dívida pública seguiam livres e soltos, para crescerem como desejado pelo governo de plantão.
EC 95: crime contra a população
Passados mais de três anos e meio da aprovação do novo modelo, o que se percebeu foram novas dificuldades para a retomada do crescimento das atividades da economia e uma piora significativa nos indicadores de políticas sociais. Afinal, como estabelecido na própria Exposição de Motivos da proposta, a intenção era justamente impedir o crescimento das despesas como saúde, assistência social, educação, previdência social e similares de natureza não-financeira:
“(…) a raiz do problema fiscal do Governo Federal está no crescimento acelerado da despesa pública primária. (…) Torna-se, portanto, necessário estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para conter a expansão da dívida pública. (…)”
A eleição de Bolsonaro e a delegação do comando da economia ao superministro Paulo Guedes terminaram por reforçar as intenções previstas no Novo Regime Fiscal. O seu diagnóstico a respeito dos problemas da economia brasileira não apresentava diferenças significativas em relação a que vinha sendo apresentado pelo seu antecessor. Assim, Guedes mantém e aprofunda o seu compromisso com a manutenção de metas de superávit primário e de redução dos níveis das despesas não-financeiras. Sua obsessão com saldos positivos nas contas públicas virou a marca do governo, às custas do desastre causado para a maioria da população.
Por outro lado, a manutenção da obediência às regras cegas e burras da EC 95 apresenta-se como ótimo argumento para sua estratégia de desmonte de políticas públicas e de destruição do Estado brasileiro. A votação da “Reforma” da Previdência, por exemplo, caminhava nessa direção. O incremento ao processo de privatização surge como uma alternativa de obtenção de receitas extraordinárias para o Tesouro Nacional. A expansão das atividades do capital privado nas áreas de saúde, educação e outras vem ocupar o espaço da retração intencional da presença estatal nas três esferas de administração pública – federal, estadual e municipal.
O surgimento da pandemia termina por aprofundar ainda mais o quadro dramático que já vinha sendo carregado dos anos anteriores. Tornaram-se mais do que evidentes as falácias envolvidas no argumento do “não temos recursos”. As necessidades de elevação das despesas públicas como estratégia de combate aos efeitos da crise da covid-19 passam a ser aceitas até mesmo por setores que antes também apregoavam a manutenção da austeridade a qualquer custo. A diferença de tratamento conferida por Paulo Guedes na liberação de recursos foi escandalosa. Logo no início da crise, o governo liberou de um dia para outro mais de um trilhão de reais para facilitar a vida dos bancos e demais instituições financeiras. Porém, até hoje a área econômica ainda apresenta óbices e dificuldades para fazer com que os recursos do “auxílio emergencial” – a fortuna de R$ 600 mensais – cheguem nas contas da população mais necessitada.
Saída da crise: aumento das despesas
No entanto, a piora do quadro social e econômico do país termina por acelerar a cobrança por liberação de mais recursos públicos. Essa pressão atinge a própria base do governo, ainda mais se pensarmos na estratégia de Bolsonaro apostando todas as suas fichas na tentativa de reeleição em 2022. O pibinho de apenas 1,1% de crescimento do PIB em 2019 e a profunda recessão prevista para o ano atual jogam todas as expectativas sobre a apresentação de melhores resultados no último biênio do mandato.
O presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia e até mesmo Paulo Guedes também começam a sentir os efeitos das restrições impostas pela EC 95. Apesar da manutenção do discurso da austeridade, ambos começam a buscar alternativas para furar o teto de gastos, pois a obediência ao rigor ali estabelecido impede qualquer tipo de ação do governo no que se refere à recuperação das políticas públicas. Esse é o caso do debate atual evolvendo os recursos do FUNDEB e das demais parcelas do auxílio emergencial. Caso a rigidez de obediência ao teto de gastos seja mantida, ambas as medidas teriam sua implementação inviabilizada.
Já é passada a hora de as forças progressistas retomarem sua campanha pela flexibilização urgente do teto de gastos. Nessa nova conjuntura, os membros do Congresso Nacional podem ser convencidos a respeito da urgência de tal mudança, uma vez que sentem na própria pele as demandas da população e as necessidades de ampliar a presença do setor público em áreas essenciais e sensíveis das políticas sociais.
Não existe caminho para superação das dificuldades atuais que não seja pela retomada do protagonismo do Estado. A maioria dos governos pelo mundo afora – incluindo Estados Unidos e União Europeia – já perceberam tal necessidade e os próprios dogmas da austeridade começam a ser colocados em xeque. Com isso, torna-se fundamental também por nossas terras promover a elevação dos níveis atuais de despesa pública sob todas as formas, tanto para minorar os efeitos sociais econômicos da pandemia, quanto para lançar as bases de um Plano Nacional de Desenvolvimento.
Todas as alternativas nos levam ao mesmo obstáculo. E para todas elas a solução tem um nome: revogação imediata da EC 95!
O cenário era aquele do período posterior à aprovação definitiva do impedimento de Dilma Roussef, em agosto de 2016. Michel Temer já tinha se aboletado no Palácio do Planalto e havia nomeado Henrique Meirelles para chefiar o ministério da Fazenda. A enorme pressão exercida pelos representantes do sistema financeiro e pelos “especialistas” dos grandes meios de comunicação referia-se – dia sim, outro também – à necessidade de impor um maior rigor no controle dos gastos públicos e mais austeridade na chamada “responsabilidade fiscal”.
Assim, no apagar das luzes daquele ano, em 13 de dezembro, como que a comemorar o 48º aniversário da tragédia do AI-5, o Congresso Nacional aprovava a chamada PEC do Fim do Mundo – a Proposta de Emenda Constitucional nº 241. Com sua promulgação, passava a ter validade a Emenda Constitucional nº 95, por meio da qual era criado o Novo Regime Fiscal. Uma completa insanidade do ponto de vista da política econômica, uma vez que estabelecia o congelamento das despesas orçamentárias pelo longo período de 20 anos. Ou seja, essa medida matava ali mesmo, na origem, toda e qualquer tentativa de se realizar as políticas anticíclicas, quando os Estados são chamados a elevar seu nível de dispêndio público com o intuito de abrir caminho para superar momentos de recessão das economias de seus países.
Ao longo da tramitação da PEC, os economistas não alinhados com o conservadorismo já alertávamos para os riscos embutidos na sua aprovação. Afinal, engessar esse tipo de recomendação de política fiscal no texto da Constituição poderia significar um grave retrocesso no modelo adotado em 1988. A narrativa levada à frente pelos adeptos da ortodoxia dava conta de uma suposta falência iminente do Estado caso não fossem adotadas as panaceias de sempre, como a proposta de Reforma da Previdência e de redução das despesas orçamentárias de forma geral. Porém, a exemplo do que já estava estabelecido na própria Lei de Responsabilidade Fiscal, o foco permanecia sendo o controle rígido apenas nas contas primárias – ou seja, todas as rubricas do Orçamento, com exceção mui malandra daquelas de natureza financeira. Com isso, por exemplo, os gastos com juros da dívida pública seguiam livres e soltos, para crescerem como desejado pelo governo de plantão.
EC 95: crime contra a população
Passados mais de três anos e meio da aprovação do novo modelo, o que se percebeu foram novas dificuldades para a retomada do crescimento das atividades da economia e uma piora significativa nos indicadores de políticas sociais. Afinal, como estabelecido na própria Exposição de Motivos da proposta, a intenção era justamente impedir o crescimento das despesas como saúde, assistência social, educação, previdência social e similares de natureza não-financeira:
“(…) a raiz do problema fiscal do Governo Federal está no crescimento acelerado da despesa pública primária. (…) Torna-se, portanto, necessário estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para conter a expansão da dívida pública. (…)”
A eleição de Bolsonaro e a delegação do comando da economia ao superministro Paulo Guedes terminaram por reforçar as intenções previstas no Novo Regime Fiscal. O seu diagnóstico a respeito dos problemas da economia brasileira não apresentava diferenças significativas em relação a que vinha sendo apresentado pelo seu antecessor. Assim, Guedes mantém e aprofunda o seu compromisso com a manutenção de metas de superávit primário e de redução dos níveis das despesas não-financeiras. Sua obsessão com saldos positivos nas contas públicas virou a marca do governo, às custas do desastre causado para a maioria da população.
Por outro lado, a manutenção da obediência às regras cegas e burras da EC 95 apresenta-se como ótimo argumento para sua estratégia de desmonte de políticas públicas e de destruição do Estado brasileiro. A votação da “Reforma” da Previdência, por exemplo, caminhava nessa direção. O incremento ao processo de privatização surge como uma alternativa de obtenção de receitas extraordinárias para o Tesouro Nacional. A expansão das atividades do capital privado nas áreas de saúde, educação e outras vem ocupar o espaço da retração intencional da presença estatal nas três esferas de administração pública – federal, estadual e municipal.
O surgimento da pandemia termina por aprofundar ainda mais o quadro dramático que já vinha sendo carregado dos anos anteriores. Tornaram-se mais do que evidentes as falácias envolvidas no argumento do “não temos recursos”. As necessidades de elevação das despesas públicas como estratégia de combate aos efeitos da crise da covid-19 passam a ser aceitas até mesmo por setores que antes também apregoavam a manutenção da austeridade a qualquer custo. A diferença de tratamento conferida por Paulo Guedes na liberação de recursos foi escandalosa. Logo no início da crise, o governo liberou de um dia para outro mais de um trilhão de reais para facilitar a vida dos bancos e demais instituições financeiras. Porém, até hoje a área econômica ainda apresenta óbices e dificuldades para fazer com que os recursos do “auxílio emergencial” – a fortuna de R$ 600 mensais – cheguem nas contas da população mais necessitada.
Saída da crise: aumento das despesas
No entanto, a piora do quadro social e econômico do país termina por acelerar a cobrança por liberação de mais recursos públicos. Essa pressão atinge a própria base do governo, ainda mais se pensarmos na estratégia de Bolsonaro apostando todas as suas fichas na tentativa de reeleição em 2022. O pibinho de apenas 1,1% de crescimento do PIB em 2019 e a profunda recessão prevista para o ano atual jogam todas as expectativas sobre a apresentação de melhores resultados no último biênio do mandato.
O presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia e até mesmo Paulo Guedes também começam a sentir os efeitos das restrições impostas pela EC 95. Apesar da manutenção do discurso da austeridade, ambos começam a buscar alternativas para furar o teto de gastos, pois a obediência ao rigor ali estabelecido impede qualquer tipo de ação do governo no que se refere à recuperação das políticas públicas. Esse é o caso do debate atual evolvendo os recursos do FUNDEB e das demais parcelas do auxílio emergencial. Caso a rigidez de obediência ao teto de gastos seja mantida, ambas as medidas teriam sua implementação inviabilizada.
Já é passada a hora de as forças progressistas retomarem sua campanha pela flexibilização urgente do teto de gastos. Nessa nova conjuntura, os membros do Congresso Nacional podem ser convencidos a respeito da urgência de tal mudança, uma vez que sentem na própria pele as demandas da população e as necessidades de ampliar a presença do setor público em áreas essenciais e sensíveis das políticas sociais.
Não existe caminho para superação das dificuldades atuais que não seja pela retomada do protagonismo do Estado. A maioria dos governos pelo mundo afora – incluindo Estados Unidos e União Europeia – já perceberam tal necessidade e os próprios dogmas da austeridade começam a ser colocados em xeque. Com isso, torna-se fundamental também por nossas terras promover a elevação dos níveis atuais de despesa pública sob todas as formas, tanto para minorar os efeitos sociais econômicos da pandemia, quanto para lançar as bases de um Plano Nacional de Desenvolvimento.
Todas as alternativas nos levam ao mesmo obstáculo. E para todas elas a solução tem um nome: revogação imediata da EC 95!
0 comentários:
Postar um comentário