Em meio ao constrangimento internacional deste Brasil que mata e desmata impunemente, as discussões em torno da Cúpula do Clima na semana passada, dias 22 e 23 de abril, trazem a oportunidade de acompanharmos as hipocrisias domésticas do agronegócio, protagonista de contínuas irregularidades e violências no campo. Neste sentido, é providencial o lançamento de Formação Política do Agronegócio, do antropólogo Caio Pompeia, pela Editora Elefante.
Fruto das pesquisas de doutorado (Unicamp/Harvard) e pós-doutorado (USP) do autor, o livro nos permite adentrar (em segurança) as porteiras do agronegócio, e observar o movimento de suas principais entidades, ao longo de vários governos, em um intervalo de setenta anos.
O autor parte da investigação de um conceito, o de agribusiness ou agrobusiness, surgido nos anos 1950, na Escola de Negócios de Harvard (Harvard Business School), que desembarcaria no Brasil, no bojo da política imperialista de Lyndon Johnson (Estados Unidos), travestida de “guerra contra a fome” durante a Guerra Fria.
Um conceito, como o termo indica, que buscava agregar vários segmentos envolvidos com a cadeia produtiva agropecuária, do plantio/criação até a venda desses produtos nas gôndolas dos supermercados. Um dos principais divulgadores dessa ideia, como John H. Davis, à frente da cátedra em Harvard, propunha três estratégias empregadas para fomentar uma política de agribusiness:
“A reorganização da produção agrícola com base em grandes unidades corporativas; a promoção de unidades familiares conectadas a cooperativas; e a integração vertical sem monopolização das unidades produtivas, com base na cooperação mais direta entre produtores e corporações” (p.50).
As críticas não tardaram. Além do favorecimento dos grandes grupos pertencentes a este arranjo intersetorial, este modelo se alinhava, explica Pompeia, a uma “proposta político-econômica que legitimava – e aprofundava – a seleção que já ocorria há décadas entre produtores familiares que estariam aptos ou inaptos a se inserir nos sistemas agroalimentares” (p.50).
Apesar disso, o modelo se popularizou e foi abraçado pela agricultura patronal brasileira que, ao lado de gigantes internacionais como Monsanto, Cargill, Nestlé, Du Pont, Bunge etc., ampliou seu poder de barganha, fortalecendo sua representação política no poder público.
Como é sabido, o agronegócio detém sua própria bancada no Congresso, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), mais conhecida como bancada ruralista, decisiva no golpe de 2016. Além disso, as lideranças do setor são presença no comando de ministérios em sucessivos governos, vide os nomes atuais de Tereza Cristina e Ricardo Salles (governo Bolsonaro), Kátia Abreu e Blairo Magri (governo Dilma), Roberto Rodrigues (governo Lula), entre outros.
Desde que adotado como modelo pela agricultura patronal, através de vários arranjos esmiuçados por Pompeia, o agronegócio vem repaginando o antigo latifúndio, com efetiva modernização tecnológica e científica, e aumento das exportações. Entretanto, a imensa concentração (e subaproveitamento) de terras, e as práticas criminosas que beneficiam diretamente o setor descambam em tragédias ambientais como, por exemplo, a transformação do país em imenso território de pastagem, à revelia de biomas como o Cerrado brasileiro, aceleradamente substituído pela monocultura e pela pecuária.
Utilização das terras no país, em hectares
Fonte: Censo Agropecuário de 2017, do IBGE |
“Extraordinária heterogeneidade”
Um dos pontos fortes da pesquisa de Pompeia é a revelação de uma faceta muito mais diversa que homogênea do setor do agronegócio, com momentos de maior ou menor alinhamento. Ele analisa o comportamento das principais entidades do setor, ao longo de vários governos. Desde as primeiras articulações, quando os representantes da Agribusiness Council vieram ao país, passando por instituições recentes, como o Instituto Pensar Agropecuária (IPA), a Coalização Brasil Clima, Floresta e Agricultura, e pela revitalização da União Democrática Ruralista (UDR), à extrema-direita das demais, impulsionada pela eleição de Bolsonaro.
Com base na ação e nas pautas programáticas de entidades como Agroceres, Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Fórum Nacional de Agricultura (FNA), Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp (Cosag-Fiesp), Rural Brasil, Pompeia demonstra a “extraordinária heterogeneidade” do agronegócio, que irá apresentar “diferentes gradientes de adesão e oposição” em relação a pautas civilizatórias, como meio ambiente, reforma agrária e luta no campo, trabalho escravo, Código Florestal, demarcação de terras indígenas e dos povos quilombolas, uso de transgênicos e agrotóxicos.
Um trabalho exaustivo que expõe, também, as estratégias de influência do agronegócio sobre o poder público, ao longo de vários governos. Lá estão os embates contra a reforma agrária na Constituinte, a institucionalização do agronegócio nos anos FHC, a tentativa de coexistência, nos governos petistas, da pauta agrícola (ministério da Agricultura) e agrária (Ministério do Desenvolvimento Agrário), até o golpe de 2016, que contou com adesão majoritária (82,7%) da bancada ruralista.
Toma lá dá cá
Fundamental ao golpe e à sustentação de Temer nos anos seguintes, as entidades do agronegócio não apenas entregaram um manifesto de confiança ao golpista, como impediram seu julgamento pelo Supremo, quando do escândalo envolvendo a JBS, dos irmãos Batista.
Pompeia recorda que, um dia antes da apreciação da matéria no Congresso, Temer reduziu, por Medida Provisória, as dívidas previdenciárias de fazendeiros e de agroindústrias, além de diminuir a alíquota que deveria ser paga por eles ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural), conquistando da bancada ruralista 144 dos 172 votos necessários para derrubar a análise da denúncia contra ele pelo STF.
O pior, porém, estava por vir. Como destaca no prefácio da obra, Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga e professora emérita da Universidade de Chicago, a partir do governo Bolsonaro, abertamente anti-indígena e antiambientalista,
“Os atores do agronegócio se acharam finalmente no centro do próprio governo e ocuparam ministérios essenciais. E até o Ministério do Meio Ambiente e a Fundação Nacional do Índio (Funai) ficaram sob o comando de aliados do setor (...) Com Bolsonaro que, ideologicamente, se alinha à UDR, o agronegócio não só está no governo como sua ala de extrema-direita está mais atuante dentro dele” (p.15).
Pressão internacional
Frente a pressão internacional, sobretudo da China, e os novos ventos nos Estados Unidos pós-Trump – e não deixem de ler a crítica do documentário “Os falsos verdes” de Léa Maria Aarão Reis –, é notória a movimentação de várias lideranças do agronegócio, por exemplo, pela queda de ministros, como vimos durante a saída de Ernesto Araújo; ou em dissociar sua imagem à do atual governo.
Aliás, Pompeia destaca a preocupação do setor em construir uma imagem positiva perante a opinião pública. Ele inclusive traz algumas campanhas midiáticas, analisando suas estratégias discursivas, como a retirada de “negócio” do termo “agronegócio”, restando apenas “agro”. É o que vemos em 2011, no movimento “Sou Agro”, patrocinado pela Fiesp, Única e Bunge, com a participação de atores globais e exibição em horário nobre. Nos impressos, revistas e jornais, a campanha estampava neologismos como “agrotaxista”, “agromãe”, “agroestudante” e por aí afora...
Outra campanha, promovida pela CNA, em 2012, convocava os brasileiros a participarem do “Time Agro Brasil”. Protagonizado por Pelé, e com a presença de lideranças do setor, inclusive, Kátia Abreu, então ministra da Agricultura do governo Dilma, a propaganda trazia uma versão de “Pra Frente Brasil”, um dos “hinos” Ditadura. Aliás, esta campanha é permeada de símbolos que seriam posteriormente capitalizados no processo do golpe. Vale assistir à peça em retrospecto [aqui]:
Eis o latifúndio repaginado a partir da negação do desmatamento, da supressão do conflito no campo, da tomada do todo pela parte e, em particular, da usurpação dos louros da agricultura familiar, alijada do processo decisório das variadas entidades do agronegócio, apesar de corresponder a 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros. Aliás, entre os 351 milhões de hectares de estabelecimentos agropecuários no Brasil, a grande maioria deles (70%), como revela o Censo Agropecuário de 2017 (IBGE), não ultrapassa 50 hectares:
Frente às mudanças no ambiente internacional, com base nestes e tantos outros números, é de se compreender o esforço do “Agro” em se tornar cada vez mais familiar e palatável. Algo que estudos como Formação Política do Agronegócio não corrobora, ao desvelar, para além das narrativas, as tensões internas, pressões políticas, querelas e estratégias de uma das mais poderosas forças políticas da direita brasileira.
* Vale destacar o trabalho cuidadoso do objeto-livro pela Editora Elefante, desde a escolha do papel à diagramação, tornando muito prazeroso o ato de leitura. Adquira aqui.
* Tatiana Carlotti é jornalista de Carta Maior, mestre e doutora na seara das Letras.
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* Tatiana Carlotti é jornalista de Carta Maior, mestre e doutora na seara das Letras.
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