Curitiba, 29/5/21. Foto: Giorgia Prates/MST |
Além das diferentes visões do significado do que é o “humano” – nas suas imperfeições misérias e grandezas – e de como a visão destas condições do ser humano influencia os diferentes projetos políticos modernos, há uma questão de fundo (estrutural) que faz a base mais sólida e diferencia o que podemos designar no contexto nacional como os “fascistas” e os “não fascistas”. Trata-se do apreço ou o desprezo pela ciência.
A questão da ciência, na sua universalidade concreta, é o que – como “progresso” do gênero humano – tanto possibilita a ampliação da barbárie através do seu uso na guerra, – por exemplo – como pode projetar o adiamento da finitude do ser humano (o “adiamento” da morte”) e também propiciar condições para uma harmonia social fundada no fim da carência dos meios básicos de sobrevivência (para todos), dentro de um regime político democrático de igualdade e de liberdade.
A Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan simbolizam a importância estrutural da ciência para o Brasil moderno. Quando se observa ou se sente na vida diária do país, o que eles pesquisam, fazem, realizam – em qualquer momento da sua história e sob qualquer Governo dirigido por pessoas “normais” – sabe-se que eles laboram com critérios baseados no conhecimento.
A observação, a experimentação, os testes laboratoriais e de campo – com precedentes e exemplos buscados no mundo – são conexões fundamentais do conhecimento científico que maximizam, tanto as suas finalidades humanísticas como uso de normativas científicas para propagar o mal, a opressão, a morte e a degradação do gênero humano no seu caminho milenar para compor religiões, filosofias, protocolos de convívio e de dissenso.
As conquistas teóricas e técnicas da ciência são capazes de responder demandas universais de interesse de toda a sociedade, independentemente da classe social ou da ideologia dos seus “clientes”. O fato de que as formas de produção científica são universais não elide, todavia, o fato de que os objetivos das pesquisas (e a distribuição dos seus resultados na sociedade) estão na órbita da política e da ética: um projeto baseado no conhecimento científico tanto pode ser usado para aumentar o tempo de vida das pessoas como suprimir vidas, para facilitar certos tipos de dominação e controle pela violência.
Quando a Capitã Cloroquina fala, sustenta, que o logotipo dos 130 anos da Fundação Oswaldo Cruz é a imitação (mimese) de um pênis – que passa a estruturar todo o seu posicionamento sobre a ciência e seus produtores – ela revela não só a perversão ideológica fascista que deforma o real-artístico, mas também mostra como o fascismo está ancorado em determinados mitos que descartam a experiência da vida comum, que produzem a ciência, a política e a arte. Dizer que a terra é plana, para obter determinada consequência política, passa a ser tão natural como identificar um pênis como amigo da cloroquina para atacar os produtores da vacina.
A compreensão da mímese na concepção frentista da política tem uma importância excepcional nos dias que correm, não somente na apreciação da perversão fascista.
A Declaração de formação da Frente Ampla uruguaia (Fev.72) na sua “Plenária Constitutiva” assentou que “a unidade política das correntes progressistas que culminou com a formação da Frente Ampla, fechando um ciclo da História do país e abrindo outro (foi) gestada na luta do povo contra a política fascistizante da força”. A Frente Popular dos anos 30 com leitura latino-americana.
O Golpe de Estado de 1973 vinha sendo gestado lentamente, acumulando forças “por dentro” do Governo eleito de Juan Maria Bordaberry, apoiado numa sequência de atos ilegais- respaldados por grupos irregulares de extrema direita – voltados para eliminar, por qualquer meio, a guerrilha do MLN-Tupamaros, que já ganhava forte respaldo popular. Nos seus termos clássicos, o Uruguai aparentava estar à beira de uma revolução nacional-popular de caráter anti-imperialista e anti-oligárquico. A Frente Ampla do Uruguai surgida em 73, portanto, emergiu em um momento particular de ascenso revolucionário armado e visava unificar as forças progressistas que, prevendo o reforço das políticas “fascistizantes” da direita no país, deveriam preparar-se para responder, o que se demonstrou impossível, mas não eliminou o propósito frentista recuperado duas décadas depois: em 1973 estas forças foram jogadas na clandestinidade, pelo mesmo golpe “fascistizante” que denunciavam.
A “Frente Ampla” adquire sua marca, portanto, com a premonição do ascenso fascista, identificado diretamente com a instauração de um “estado de fato”, comandado pelos militares de extrema direita, com forte apoio de parte dos políticos tradicionais, tanto “blancos” como “colorados”, impressionados pela insurgência Tupamara. O compromisso Frentista de resistir na legalidade foi frustrado pelo golpe que já estava em adiantado estado de preparação. A diferença da ideia de “Frente Ampla” com a outra Frente que surgiu no solo uruguaio em 1966, quando o ex-Presidente João Goulart recebeu seu arqui-inimigo Carlos Lacerda – defenestrado pelos militares brasileiros depois do Golpe de 64 – é enorme. Em 66, o líder da direita golpista brasileira visita o Presidente exilado e enfraquecido, para lhe propor uma articulação “redemocratizante”, para que o líder civil do golpe pudesse buscar a Presidência pela via eleitoral, que ele militou para suprimir dois anos antes.
No caso da Frente Ampla de Jango e Lacerda, portanto, o golpe já estava consolidado sobre os escombros das bases organizadas da esquerda, que, no momento não desenvolviam qualquer iniciativa destinada a liderar uma Frente. A Frente Ampla uruguaia surgiria depois, num empate estratégico entre conservação e revolução, ao contrário da ideia da tentativa de Frente Ampla brasileira, em 66, que vinha “de dentro” do próprio golpe que derrotou a democracia, a partir de uma clara ação imperial dos EEUU.
São duas experiências que embora encetadas em tempos próximos, adquirem só nomes idênticos, mas projetaram conceitos diferentes sobre o “que fazer”, quem derrotar e para quê compor uma Frente. Desde essas duas experiências até estes dias, o mundo mudou. E muito. Lembremos a análise de Göran Therbon” (FSP, Ilustríssima, abril 2012), que prevê que na Europa ocidental “não há movimentos fascistas com algum significado e (que) eles não ameaçam a democracia, (pois) a ameaça à democracia vem da tecnocracia”, visão que se mostrou-se profundamente equivocada.
Celso Rocha Barros, mais tarde, em abril de 2015 (na mesma FSP, Ilustríssima), faz o prognóstico de um possível fracasso socialdemocrata, entre outras causas porque “a tarefa da socialdemocracia é mover o imposto para cima e o gasto governamental para baixo”, porque “uma socialdemocracia com um Estado em crise é como um liberalismo alavancado no “sub prime”. Na análise de Therbon estava implícita a visão que a socialdemocracia, mesmo com as suas vacilações e vicissitudes conhecidas, resistiria. Na análise de Celso pairava uma suave e correta desconfiança que a esquerda poderia não estar à altura de dar as respostas mais razoáveis para combinar cuidado com os gastos públicos e taxação de fortunas e ganhos improdutivos.
O termo filosófico-crítico mimese, que pode ser usado no sentido comum de “imitação”, é adequado para propor algumas considerações sobre o frentismo político nas sociedades democráticas que abrigam-nas repúblicas atuais em crise – organizações políticas de diferentes matizes ideológicas. Os programas prometidos, as visões de mundo destas “partes” políticas, embora conflitantes diluem-se – num certo período – de forma consciente, para possibilitar uma defesa contra o que entendem como um “mal maior”: é a política “frentista” que também adapta – nas conjunturas de disputa pelo poder – inclusive as “promessas” que são realizáveis num futuro Governo, numa conjuntura de ascenso do fascismo ou simplesmente não revolucionárias. Na mimese da natureza, a “semelhança” adquirida pelas formas orgânicas vivas ocorre através de mudanças milenares, por dentro de uma cadeia de mutações químicas, físicas e biológicas, que não gera o “momento” em que algum “elemento” desta cadeia possa dizer o que ocorreu, como – por exemplo – verbalizar: “mudei”. Não há “consciência” na mimese da naturalidade.
Ao contrário do que ocorre na mimese das relações sociais, que são produzidas pela consciência e querem chegar a uma finalidade conscientemente orientada, os processos de mimese da naturalidade são cadeias de repetição sem consciência. No caso da Frente Política, que deve buscar referências em outras Frentes – já experimentadas em outros momentos históricos, – as transformações dos últimos 50 anos de política com tempos curtos e relações globais comutativas, a “interpretação” do passado tem dificuldades para considerar as experiências anteriores, pois a velocidade da história tende a dar a impressão que “tudo é sempre o presente”. A Frente Ampla brasileira de 1966 tem pouca semelhança com a Frente Ampla uruguaia, eis que ela foi composta pela vontade política de poucos dirigentes, sem base real de massas e foi extinta – embora não tivesse personalidade jurídica – por uma simples Portaria Ministerial do Ministro da Justiça Gama e Silva!
Quais as diferenças entre estas duas Frentes e uma Frente a ser formada, aqui no Brasil, com partidos e líderes com programas diversos e visões de mundo conflitantes, mas que se unem para enfrentar ou derrogar um “mal” maior? Ouso dizer que são três e profundas: primeiro, a universalidade da crise sanitária e os seus efeitos sobre o modo de fazer política e as novas tecnologias usadas pelos grupos fascistas para influenciar a população; segundo, que estamos enfrentando um fascismo novo tipo, que tem apoio em recursos tecnológicos usados globalmente, para a desmoralização da política nos regimes de democracia política; e terceiro, o fascismo novo tipo, aqui, emerge em conluio com o capital financeiro hegemônico em escala global e promove reformas que criam uma nova (e sua) base social, fora dos padrões tradicionais de dominação capitalista. A visão de um Pênis Estrutural inventado pelas mentes perversas do fascismo demanda um certo tipo de Frente, que unifica pela ciência que vacina, pela democracia que civiliza e pelo pão na mesa que derrota a fome, que não habita suas obsessões políticas nem suas preferências estéticas.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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