Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
Pode um presidente eleito democraticamente deixar de se solidarizar com a população de seu país em meio à maior emergência de saúde pública do século, inclusive sem fazer uma única visita aos atingidos pela doença? Se for Jair Bolsonaro, sem dúvida, já que sempre há outras prioridades além da saúde e da dor de seu povo, como compra de armas, o ataque à democracia e a invasão de terras indígenas. Além da reeleição e da dura missão de salvar os filhos da cadeia.
Dá para imaginar alguém incapaz de empatia com a morte de uma pessoa e o sofrimento daqueles que o amam. E se, em vez de uma, forem 600 mil pessoas? Para o ex-capitão, que se jacta de ser fuzileiro e por isso especializado em matar, é apenas uma consequência infeliz da realidade. E como não é coveiro, não tem o que fazer. Há uma consagração da indiferença, como um alheamento a tudo que é humano e universal.
Existe maior maldade do que indicar medicamentos sem eficácia para que as pessoas se disponham a frequentar lugares em que um vírus altamente contagioso é transmitido e, assim, dar corda na roda da economia? Para o patrão de Paulo Guedes, certamente. Além de remédios sem serventia, nada de usar máscaras e de distanciamento social. No máximo a separação das pessoas entre as viáveis para a produção e as que devem ser guardadas enquanto a morte não chega.
É possível ser mais cruel com os familiares de uma pessoa que morre sem ar do que imitar o som e o esgar agoniado de desespero, em performance macabra que mescla deboche com pura maldade? Para o bufão insensível na presidência, sem dúvida. Além de fingir sufocamento, ele emenda o gesto com um cínico: “E daí?”. Sem falar na desconsideração pela enfermidade, que revelaria apenas a confissão de fraqueza de seu portador. A morte como merecimento.
Uma autoridade pode ser tão incompetente a ponto de abrir mão da oferta de vacinas em meio a uma pandemia, deixando os laboratórios sem resposta por meses, enquanto a doença avança e ganha força e novas variantes? Para o principal gestor público do país, é claro, afinal ele era o comprador e o trabalho deveria caber às empresas interessadas. O que abriu caminho para a corrupção, atravessadores e lobistas. Mau negócio político no primeiro momento, a vacina prometia bons negócios financeiros no médio prazo. Sobretudo se estivesse em falta.
Em meio a uma crise de saúde pública, é justificado abrir mão da ciência, desvalorizar medidas técnicas e entregar a administração sanitária a generais despreparados e seus recrutas submissos de todas as patentes, trocando o jaleco pela farda? Se for o negacionista do Planalto, é óbvio. Afinal, ciência nada mais é que objeto de crença sujeita a diferentes opiniões que circulam em redes de ódio e ignorância e deve ser submetida às demandas do interesse econômico e da pauta eleitoral.
Sob o risco de contágio numa epidemia de doença respiratória virótica, é justificado promover aglomerações e atacar o uso de máscaras como sintoma de fraqueza e falta de virilidade? Para quem participa de motociatas, comícios extemporâneos, atos antidemocráticos e carrega crianças no colo sem proteção de seus perdigotos mefíticos, é mais do que evidente. Além, é claro, de acelerar o trabalho do vírus em direção à salvadora imunidade vacum.
Deixar de se vacinar e incentivar que os outros também o façam como sinal de afirmação de liberdade individual é uma atitude defensável? Para o mandatário da nação, é ato de coragem que merece ser destacado até mesmo no plenário da ONU, para vergonha internacional. Afinal de contas, a vacina é experimental e menos eficaz que a prevenção feita com vermífugos ou mesmo a própria contaminação, desde que o portador seja atendido – como o presidente o foi com sua gripezinha – por uma junta de médicos e especialistas. Ou que, como a primeira-dama, a vacina seja aplicada nos EUA.
Confluência mórbida
Para cada uma dessas situações é possível encontrar nas redes uma declaração do próprio presidente Jair Bolsonaro. Ele desfez da doença, criticou o uso de máscaras e promoveu medicamentos inúteis e condenados pela Organização Mundial de Saúde. Deixou de comprar vacinas no primeiro momento, abriu mão de coordenar o combate à pandemia, atacou a eficácia dos imunizantes, não se vacinou. Incentivou aglomerações, criticou medidas de proteção, nomeou autoridades incompetentes, conviveu de forma leniente com a corrupção na área da saúde.
Comandou o ataque à ciência por meio de mentiras e notícias falsas, que circularam a peso de ouro nas redes sociais. Montou um gabinete paralelo em desprestígio aos técnicos de carreira e especialistas reconhecidos entre seus pares, formando um núcleo espúrio composto por médicos obtusos e vaidosos e empresários ridículos e ambiciosos. Gente que ria de suas piadas, grosserias e imitações patéticas de sufocamento.
Completou sua jornada negacionista promovendo resultados falsos de uma empresa de serviços médicos que rompeu com a ética, enganou pacientes e trouxe de volta trágica memória de experimentos que remontam aos piores tempos do nazismo.
Há uma confluência mórbida entre o governo e a Prevent Senior: começa com o desprezo à ciência, trata os mais velhos e doentes como descartáveis, põe o dinheiro acima da vida e elege a mentira como estratégia de convencimento. Coloca numa coluna o dinheiro e na outra a vida, para depois barganhar uma pela outra.
Não seria preciso uma Comissão Parlamentar de Inquérito para comprovar cada uma dessas atitudes. Tudo isso é sabido, conhecido, registrado e, em muitos casos, defendido de viva voz de forma arrogante pelo presidente. A CPI talvez tenha sistematizado a lógica genocida (ainda que tenha deixado de registrar o termo no relatório final) e elencado os cúmplices, mas não trouxe efetivamente nada de novo. Bolsonaro não é outro depois da CPI, já era um monstro muito antes. E continua sendo.
O que chama atenção não é o fato de a comissão propor indiciamento do presidente por nove tipos de crime, de resto já conhecidos de todos. Mas sim o fato de que um patamar foi superado: não se trata de atos ilegais contra outras pessoas, contra o patrimônio, a saúde pública, a ordem democrática ou mesmo crimes de epidemia que resultam em morte. O que já seria por si só a antessala do horror.
Mas Jair Messias Bolsonaro cometeu crimes contra a humanidade. É preciso que essa situação cause revolta, estranhamento, dor e indignação. O presidente brasileiro é um adversário da noção de humanidade. Ele não ultrapassou a dimensão do condenável, mas extrapolou o limite daquilo que nos faz homens e mulheres. Saiu dos erros políticos para entrar no terreno da metafísica do mal.
O mais grave é que tudo parece se normalizar e pode ser que não dê em nada. Mesmo com toda a cobrança do trabalho das instituições jurídicas e de controle, inclusive os tribunais internacionais, que precisa ser posta em prática desde já. Não se pode render à entropia paralisante, essa espécie de negacionismo político e jurídico de uma sociedade marcada pela conciliação vinda de cima.
O presidente segue prejudicando o combate à pandemia. Divulgando tratamentos assassinos. Negando as vacinas. Colocando a vida em segundo plano. Continua em campanha. Ainda é candidato viável. Segue atacando a solidariedade, a empatia, a ciência, os valores e a ética.
Bolsonaro é anti-humano, desumano, sub-humano. Mas não está sozinho. Contra essa tragédia brasileira, infelizmente, não tem CPI, Justiça ou vacina que dê jeito, embora não possamos abrir mão delas e seguir lutando até a última instância. Quando os crimes suplantam a ordem da humanidade, o combate a eles também exige radicalidade, criatividade e coragem. Sem metáfora: é caso de vida ou morte.
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