Por Marcio Pochmann, no site Carta Maior:
Com quase 12 milhões de documentos vazados, Pandora Papers explicitou didaticamente a forma pela qual parcela dos ricos, poderosos e privilegiados (empresários, políticos, membros de famílias reais, líderes religiosos, artistas, atletas e outros) utilizam para ocultar suas riquezas. As chamadas contas denominadas por off-shore podem absorver em até 40% do PIB mundial, sendo que mais de 4/5 daquela quantia depositada se refere a apenas 0,1% das famílias mais ricas do mundo.
Isso é possível porque existem os chamados paraísos fiscais que oferecem condições tributárias facilitadas aos recursos estrangeiros que buscam se deslocar dos sistemas nacionais de tributação e regulação financeira e cambial, sobretudo aqueles que visam “lavar dinheiros” obscuros que resultam das diversas operações ilícitas (tráfico de armas, pessoas, contrabando, drogas, corrupção e terroristas), cujas taxas de subornos podem alcançar cerca de 2 bilhões anuais. Segundo estudos realizados, a fuga de capitais gera prejuízos aos cofres públicos em torno de US$ 800 bilhões ao ano, quase três vezes mais do que a quantidade de recursos necessária para acabar com a fome no mundo [1].
Pelo curso da desregulamentação imposta pelo receituário neoliberal, terminam vazando os recursos conduzidos por empresas multinacionais para o investimento corporativo fantasma que soma cerca de US$ 15 trilhões, ultrapassando em 1/3 o total dos investimentos globais voltados para a economia real. Apenas oito países considerados paraísos fiscais de passagem do dinheiro (Holanda, Luxemburgo, Hong Kong SAR, Ilhas Virgens Britânicas, Bermuda, Ilhas Cayman, Irlanda e Cingapura) absorvem mais de 80% desse tipo de aplicação financeira no mundo.
O caso de Luxemburgo parece exemplar, pois contando com população de apenas 600 mil habitantes concentra US$ 4 trilhões em investimentos estrangeiros, o que equivale a soma dos Estados Unidos, cuja população se aproxima de 330 milhões de pessoas. Em países como o Brasil, por exemplo, mais da metade do investimento estrangeiro direto externo recebido passa por entidade estrangeira sem substância econômica, conforme alerta o próprio FMI [2].
Essa situação tem se agravado muito mais a partir da crise do capitalismo de 2008, quando os paraísos fiscais passaram a ser alternativas mais interessantes aos ricos esconder ativos no exterior do que obter ganhos legais na economia global. A agregação no PIB oficial dos países da contabilidade de riqueza depositada nas contas de offshore faz alterar profundamente as medidas oficiais das desigualdades existentes, o que revela grau absurdo de concentração da renda e riqueza.
Diante da heterogeneidade da aplicação da riqueza nas contas em offshore, que varia de 15% na Escandinávia e Europa Continental até mais de 50% na Rússia e em alguns países do Oriente Médio e da América Latina, os efeitos na desigualdade de renda e riqueza são distintos. O progresso na redução do sigilo bancário, por exemplo, permitiria maior transparência estatística nas informações sobre o grau de desigualdade no capitalismo atual.
Para além dessa faceta da inovação financeira trazida pela globalização, destaca-se também a epidemia que infecta parcela significativa das firmas, convertendo-as em empresas zumbis. Isto é, empresas que operam funcionalmente nos mercados, embora em estado de crescente decomposição, pois não conseguem, através do seu lucro operacional, suportar as despesas com juros, sobrevivendo artificialmente por empréstimos, sobretudo após a crise global de 2008.
Nos Estados Unidos, cerca de 20% de suas empresas se encontram na situação de Zumbis [3], sem viabilidade financeira, enquanto no Brasil a intransparência é enorme, dificultando a precisão na definição. De acordo como a Serasa Experian, 6,1 milhões de empreendimentos estariam com dívidas consolidadas, enquanto 20% do total dos CNPJ’s seriam zumbis, pois tendo deixado de existir, continuariam vivos oficialmente.
Na Índia, por outro lado, 26% das empresas estariam classificadas por empresas zumbis, enquanto na Indonésia seriam 24%, na Coreia do Sul 18% e 3% no Japão. Sob a lógica do capitalismo atual de sustentar lucros aos acionistas por dividendos e recompras de ações, as despesas tendem a crescer mais que o aumento das receitas, tornando maiores as dívidas corporativas, mais dependentes do refinanciamento, bem como da condição de zumbis.
A política governamental de gestão capitalista de instituições fantasmas ou mortas-vivas, conforme adotada por diversos países, tem permitido a sobrevida de empresas zumbis pela rolagem financeira, sob a expectativa que elas possam ser reanimadas. Com o refinanciamento facilitado pelos bancos centrais independentes, os bancos não declaram prejuízos, financiando as dívidas de baixo custo para manter vivas as empresas altamente endividadas e de baixo desempenho, pois sem isso, já teriam falido.
* Marcio Pochmann é Professor da UFABC e do Cesit/Unicamp.
Notas
[1]. Mais detalhes em: Cobham, A. ; Janský, P. (2017) Measuring Misalignment. Development Policy Review, 37 (1): 91–110; Lane, P. ; Milesi-Ferretti, G. (2018) The External Wealth of Nations Revisited. IMF Economic Review, 66 (1): 189–222; FAO (2016) State of Food Security and Nutrition in the World.
[2]. Ver: Damgaard, J. ; Elkjaer, T. (2017) The Global FDI Network. IMF Working Paper 17/258; Damgaard, J. et al. (2018) Piercing the Veil. Finance & Development. Vol. 55, No 2; Zucman, G. et al. (2017) Who Owns the Wealth in Tax Havens? Journal of Public Economics
[3]. A definição de empresa zumbi resulta do índice de cobertura de juros (ICJ) que relaciona o lucro antes dos juros e tributos (LAJIR ou EBIT em inglês) com as despesas de juros (DJ). Se o índice estiver próximo ou abaixo de 1, a empresa seria considerada zumbi, pois não consegue pagar os juros das dívidas contraídas. , somente respirando por aparelhos.
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