O ex-deputado Eduardo Cunha personificou o mal. Sua figura se insinuou no escândalo que desembocou no impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1991. Manteve prudente recolhimento até 1999, quando foi secretário do governador Garotinho, do Rio de Janeiro. Caiu também devido a um escândalo. Elegeu-se pela primeira vez deputado federal em 2002. Em 2014, já era o mais poderoso político do país: tornou-se presidente da Câmara e tinha sob sua liderança direta quase uma centena de deputados eleitos com a sua ajuda.
Cunha operava como uma espécie de tesoureiro de um esquema de financiamento de campanha particular que elegeu para a Câmara uma bancada com representantes de partidos variados, espalhados por todo o país. Ele captava dinheiro de empresas e bancos e o distribuía entre seus candidatos. Sua bancada era unida por um compromisso semelhante à ormetà (o código de lealdade da máfia italiana).
Os deputados financiados pelos grupos econômicos atraídos por Cunha, os ruralistas, a bancada da bala (da indústria armamentista) e a evangélica tinham um acordo segundo o qual o interesse de qualquer um dos grupos era apoiado por todos os outros. Ajudou a tornar o ano de 2015 o inferno de Dilma Rousseff, que sofreu o impeachment no ano seguinte. O deputado foi preso logo depois.
O financiamento privado de campanha era o núcleo do sistema de poder montado por Cunha. Sem isso, não teria construído bancada. Sem bancada própria, não conseguiria negociar com o agronegócio nem com a bancada da bala – embora mantivesse o acesso à bancada evangélica, da qual era um dos líderes. Sem apoio das outras bancadas, não teria maioria. Sem maioria, não disporia do poder que capturou de um governo fragilizado por uma “guerra híbrida” em franco andamento, e da qual era parte. `
Em 2011, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) pedindo o fim do financiamento empresarial de campanha, com o argumento de que isto incentivava a corrupção e o tráfico de influência e violava os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade. Por quatro anos, a iminência de uma decisão do Supremo favorável ao pedido da ABI pairou sobre o projeto de poder do deputado.
Até que o STF finalmente considerasse inconstitucional o financiamento eleitoral empresarial sem limites, Cunha tentou manobrar para constitucionalizar a permissão a essas doações, ou para aprovar leis que pudessem vir a constranger o Supremo. O assunto só seria resolvido em setembro de 2015, contra os interesses do poderoso político. Seu império não caiu. Ao que tudo indica, Cunha adequou o seu projeto à nova realidade. Os compromissos assumidos na campanha de 2014 com as empresas que compuseram o pool de financiadores da bancada de Cunha foram honrados.
O estilo Cunha colocou a nu a venalidade e a fragilidade do sistema partidário brasileiro. Quem assistiu o deputado manipular o poder do voto em seu favor particular, e de sua bancada, não se assombrou com a ascensão do capitão da reserva Jair Bolsonaro, com a sua patente de capitão da reserva e um séquito de generais dispostos a ocupar todos os postos de confiança do governo federal.
Nem estranhou a facilidade com que os governos que sucederam o de Dilma – do vice que deu o golpe, Michel Temer, e depois de Bolsonaro – empreenderam um verdadeiro processo de destruição do país com a ajuda inestimável de uma bancada parlamentar que não era mais liderada por Cunha, mas operava com os mesmos elementos, e pelas mãos do seu dileto herdeiro, Arthur Lira (PP-AL).
Num quadro político onde a reação – entendida no sentido de força reacionária – praticamente explodiu o acordo de convivência, o pacto social selado na Constituinte de 1988, causa atordoamento aos atores que se opuseram à conspiração contra a democracia e contra os interesses da maioria da população o fato de que tudo isso aconteceu numa conjuntura em que o STF já havia derrubado o financiamento empresarial de campanha.
É certo: é absolutamente indefensável um sistema que permite uma doação empresarial sem limites. Isso deturpa a máxima democrática de que cada eleitor deve valer um único voto. Mas uma visão mais abrangente do problema, e menos simplista, poderia ter sido mais útil para pelo menos atenuar as fissuras sofridas pela democracia, para as quais os partidos conservadores e os de negócios deram uma contribuição inestimável. Passados seis anos do fim do financiamento eleitoral das empresas, é cristalino que este não era o único problema do sistema partidário brasileiro.
A democracia brasileira lida com dificuldades estruturais. As distorções políticas e sociais do país apenas conferem organicidade aos meios de representação política em momentos de grande disputa ideológica. Na normalidade, as alianças institucionais feitas nos períodos democráticos não dão conta de transformar os partidos políticos conservadores (e mesmo os de centro) em aparelhos políticos de ideologia – na história recente, a única exceção foi o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002). De outro lado, e institucionalmente, o próprio fantasma do passado ditatorial cria uma dificuldade de estabelecer regras mínimas para o funcionamento dessas instituições.
O Brasil viveu uma situação maluca de 21 anos de uma ditadura militar que fez questão de ter partidos (embora os tivesse reduzido a apenas dois) e um Congresso na maior parte do tempo em funcionamento (embora o pudesse fechar com o poder autoconferido por um “ato institucional”). Em 1979, nos seus estertores, a ditadura acabou com o bipartidarismo, instituindo um pluripartidarismo cheio de regras, controles e possibilidade de intervenção. O quadro partidário que ainda é a base do atual foi criado pela ditadura antes de seu suspiro final, em 1985.
Na Constituinte, concluída em 1988, as regras eleitorais e partidárias que ataram o sistema partidário foram aos poucos eliminadas do Código Eleitoral. De lá para cá, o Congresso tem resistido a toda e qualquer ofensiva da Justiça – e de setores do próprio Legislativo – para definir regras que permitam o controle externo das agremiações e zelem pela democracia interna delas.
Segundo Fernando Gaspar Neisser, presidente da Comissão de Estudos em Direito Político e Eleitoral e diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), se instalou uma situação de disputa de cabo-de-guerra entre o Congresso e o Judiciário em torno de regras de funcionamento das eleições e dos próprios partidos políticos.
Desse estado de disputa permanente emergem partidos sem transparência e sem compromisso com regras mínimas de democracia interna. Os partidos políticos brasileiros tornam-se, então, facilmente capturáveis por chefes políticos que dominam toda a máquina partidária. Impedir financiamento empresarial não teve o poder mágico de transformar partidos de negócios em partidos de verdade.
Os chefes políticos mantêm as agremiações sob o seu poder, agora com uma enorme quantidade de dinheiro público para despejar nos candidatos de sua preferência. São eles que constroem a base parlamentar conservadora que corrói democracia. E o Congresso legisla cada vez mais para reduzir o controle e a fiscalização do Judiciário.
É claro, existem exceções, mas quando parlamentares estão reunidos para decidir assuntos de interesse do país salta aos olhos a condição minoritária dos partidos orgânicos. É difícil imaginar um projeto democrático mais duradouro sob a hegemonia de partidos de negócios.
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