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Ontem, voltou aos holofotes o projeto de lei que tem por objetivo reduzir o poder de controle dos governadores sobre as Polícias Militares estaduais. Com parecer favorável do relator e indicação de acordo para apressar a votação, tudo indica que o projeto pode ser aprovado em breve. Tramitando em regime conclusivo, o PL sequer precisaria ser apreciado pelo plenário da Câmara, bastando a aprovação pela CCJ e pela Comissão de Segurança Pública da Casa para ser encaminhado ao Senado.
Mas, afinal, de que trata este projeto de lei e quais os seus riscos?
Primeiramente, vale dizer que esta proposta está tramitando em mais de um projeto na Câmara. O que mais atraiu atenção da mídia, em janeiro do ano passado, foi o mais antigo e ambicioso deles, o PL 4.363/2021. No parecer apresentado pelo relator Capitão Augusto (PL), além da previsão de lista tríplice para a escolha do comandante de cada PM, outras propostas estapafúrdias surgiram, como a criação do posto de general da PM e a ampliação das competências da PM, abarcando até funções políticas e de polícia judiciária.
Apesar do PL 4.363 ter sido colocado em regime de urgência em janeiro de 2021, ele ainda aguarda análise do plenário da Câmara e não foi apensado ao PL que pode ser votado ainda hoje.
O projeto que está prestes a ser votado é o PL 164/2019, mais enxuto que o citado acima, mas igualmente perverso. Ele estabelece que o governador somente poderá nomear para o Comando-Geral da PM um coronel que esteja indicado pela própria corporação em lista tríplice, bem como ele ocupará esta posição em um mandato de dois anos. Em outras palavras, o PL retira do governador, eleito pelo voto popular, a capacidade de nomear o mais alto cargo da PM, dando a policiais militares o poder de escolher seu próprio comandante.
Vale dizer que, ao PL 164/2019, foram apensados outros PLs que também serão apreciados pelos deputados. Dentre eles, o PL 4.184/2021, do Tenente Derrite (PP), o qual, além da lista tríplice, estabelece que o governador só poderá destituir o comandante-geral da PM se contar com a aprovação da maioria absoluta da Assembleia Legislativa de seu estado.
Como ponto em comum, todos estes projetos apontam que visam evitar supostas “ingerências políticas” de governadores nas polícias militares. Na justificativa original do projeto apresentado pelo ex-deputado Cabo Sabino e repetida pelo atual deputado José Nelto, por exemplo, “tais instituições estão, na conjuntura atual, muito expostas aos ditames políticos dos Governadores”.
No projeto apenso do Tenente Derrite, a justificativa vai além e escancara o caráter problemático da proposta. Para o deputado, hoje, existe uma “inevitável ingerência de autoridades não afetas à área da segurança pública nas Instituições, uma vez que, atualmente, o maior posto gerencial de tais órgãos é provido atendendo a critérios políticos”. Ele ainda complementa que a atual forma política de indicação quebra a continuidade de planejamentos estratégicos.
Por fim, o aspecto mais problemático: para Derrite, a indicação pelo governador faz com que o comandante nomeado não goze de “legitimidade para o comandamento” de sua própria tropa e enfrente “falta de apoio dos membros da Instituição”.
Mas por que, exatamente, as propostas aqui colocadas são tão problemáticas e antidemocráticas? As justificativas apresentadas pelos deputados-policiais já apontam o caminho para a resposta a essa pergunta.
Primeiramente, é preciso que se diga: a segurança pública não é um tema meramente técnico. Logicamente, aspectos técnicos devem ser levados em conta na confecção de políticas públicas, mas isso não retira o caráter político que as escolhas da administração de segurança pública têm.
Quando nós, o povo, votamos em um governador, escolhemos um projeto político que, entre tantas questões sociais, contempla um programa de segurança pública, regido por princípios políticos. Se caminharemos para mais ou menos punitivismo, mais ou menos militarização, mais ou menos garantias de cidadania, esta é uma escolha essencialmente política, não técnica. Em outras palavras, esta é uma escolha que deve se submeter ao debate de todo e qualquer cidadão, e não apenas aos próprios policiais.
Sob uma falsa justificativa de “despolitizar” as decisões sobre a administração da segurança pública nos estados, o que os deputados-policiais desejam, de fato, é que as polícias militares fiquem submetidas apenas aos interesses políticos dos próprios policiais militares. Em resumo, querem acabar com o mínimo de controle popular (praticamente já inexistente) sobre as PMs para transformá-las em um instrumento político em suas próprias mãos.
Ora, ao contrário do que diz o Tenente Derrite, não cabe aos policias militares escolherem ou não se vão aceitar um programa de governo eleito pelo voto popular. Isto é insubordinação das mais graves!
Esse movimento é sintomático do momento histórico em que vivemos. Após 2018, a politização das polícias atingiu níveis nunca antes vistos. Tivemos uma eleição recorde de policiais para as casas legislativas do país e, nos anos seguintes, casos de insubordinação policial passaram a ser constantes. No último Sete de setembro, enquanto Bolsonaro incitava policiais a participarem de atos golpistas, governadores de vários estados tiveram de se reunir para debater formas de evitar que as PMs saíssem do controle e embarcassem numa aventura antidemocrática.
Para este ano, se avizinha mais um cenário caótico. Tudo indica que Bolsonaro deve repetir sua movimentação golpista para o bicentenário da Independência. Isto em meio a uma campanha eleitoral que já aponta para novo recorde de policiais candidatos nos estados. A agilização do projeto que confere maior poder político às PMs é um aceno e tanto para esta base bolsonarista cada vez mais radicalizada.
Na Câmara, o clima é de que o PL deve ser facilmente aprovado, com alguns recuos. A complementação de voto apresentada pelo relator Junio Amaral (PL) aponta que, pelo menos, o projeto deve abrir mão de conferir autonomia orçamentária para a PM. A necessidade de autorização das Assembleias Legislativas para a destituição do comandante-geral da PM também deve cair, sendo substituída pela obrigatoriedade da motivação do ato por parte do governador.
Ainda assim, se aprovado, o PL continuará representando um grande retrocesso democrático ao permitir que as Polícias Militares possam trilhar seus próprios caminhos políticos sem qualquer tipo de controle popular sobre elas.
No Brasil, ao longo de nossa história, nos acostumamos a ver as polícias participarem de processos políticos autoritários no papel de coadjuvantes. Foi assim quando serviam como pequenos exércitos das oligarquias estaduais até a década de 1920. Foi assim quando Filinto Müller declarou que, no país, só respondia a Getúlio Vargas. E foi assim quando vieram a reboque de empresários e Forças Armadas após o golpe de 1964.
A aprovação deste PL pode inaugurar um novo passo na história do Brasil, no qual as Polícias Militares assumam maior protagonismo político nos arroubos autoritários com os quais a nossa triste história já se acostumou. É crucial que a oposição consiga barrar este projeto, ganhando tempo para que, na próxima Legislatura, finalmente a gente consiga tirar os militares da política para colocá-los de volta em seus quartéis.
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