Foto: Ricardo Stuckert |
Nos últimos dias, devido a que os indicadores do nível de aceitação do governo bolsonarista persistem em se manter na faixa dos 30%, muito vem-se falando sobre como lidar com tal situação.
Conforme indicam as sondagens de opinião, a justificativa para a manutenção deste quadro continua sendo o alto grau de aprovação dado ao governo bolsonarista por parte significativa da comunidade evangélica.
Mas, o que poderia induzir a esse grupo de pessoas, que se consideram tão em sintonia com Jesus, a apoiar um governo que se caracteriza exatamente por não seguir as trilhas que o legado de vida de Jesus nos indica?
Tendo em mente estas preocupações, várias destacadas personalidades do campo popular vêm chamando-nos a atenção para a necessidade de os formuladores das propostas politicas da esquerda se empenharem num trabalho voltado ao levantamento de dados que nos possibilitem detectar com maior nitidez como a comunidade evangélica se posiciona em relação aos principais temas que pautam nossa política na atualidade.
Evidentemente, nos será quase impossível ter êxito em nossos objetivos junto aos evangélicos, se nosso conhecimento a seu respeito for precário. Porém, precisamos ressaltar, conhecê-los não deve implicar em que deveríamos necessariamente aderir a seus posicionamentos para, com isto, ganhar seu voto.
A ampliação de nosso conhecimento deveria estar voltada ao interesse de dotar-nos de uma maior capacidade de transmitir com eficácia nossas propostas políticas ao público visado. Temos de fazer com que os evangélicos entendam que o que propomos tem muito mais a ver com o ideário de vida de Jesus do que muitas das teses propaladas por várias das atuais lideranças religiosas, notadamente entre os neopentecostais. E para isto, não nos será preciso adotar uma visão religiosa. Os ensinamentos do Jesus ser humano são mais do que suficientes.
Para ilustrar meu ponto de vista, quero tecer alguns comentários sobre dois pontos que têm sido motivo de conflitos com essa comunidade ultimamente e, assim, procurar caminhos para superá-los.
Primeiramente, gostaria de me referir ao tema da descriminalização do aborto e à questão da educação sexual nas escolas. Acatando como válido o objetivo de reduzir ao mínimo possível os casos de aborto que vêm sendo praticados em nossa sociedade há bastante tempo, precisamos deixar patente que, em grande medida, isto ocorre em razão do alto nível de desinformação presente em nossa juventude sobre o funcionamento do metabolismo sexual e reprodutivo dos seres humanos.
Ao contrário do que expressa o senso comum, um melhor conhecimento sobre essas questões tem o potencial de afastar os jovens do tão propalado desejo de provar do fruto proibido e, devido a isto, até diminuir a iniciação precoce da vida sexual ativa. Basta comparar nossos índices de gravidez precoce com os de sociedades onde a educação sexual faz parte do currículo escolar para constatar que o quadro se mostra bem pior por aqui.
Em consequência quase direta do anterior, o número de abortos clandestinos onde a interrupção da gravidez é criminalizada também é superior aos índices de abortos realizados em países onde isso está previsto em lei e regulamentado. Como agravante, é preciso salientar a aterradora quantidade de óbitos que ocorrem entre as mulheres que buscam formas não legalizadas de interrupção gestacional. Lamentavelmente, essas mortes afetam quase que exclusivamente as mulheres pobres, visto que as ricas sempre têm acesso a clínicas particulares de bom nível.
Portanto, para que um evangélico atue em sintonia com as aspirações de eliminar ou reduzir drasticamente a ocorrência de aborto, não é admissível que ele se oponha a medidas que claramente contribuem neste sentido. Por isso, não há nenhuma quebra de coerência de um evangélico ao admitir ser favorável à descriminalização do aborto no espírito que nós a defendemos.
Em segundo lugar, trago à tona a questão relacionada com a alteração da legislação que mantém a proibição do consumo e do comércio de drogas. Também creio ser oportuno adiantar que nosso desejo neste caso é erradicar ao máximo possível o consumo e a dependência de drogas e pôr fim ao poder das máfias que controlam o tráfico ilícito de entorpecentes e lucram muito com esta atividade.
É bem sabido que os principais interessados em manter na ilegalidade o uso e o comércio de substâncias consideradas como tóxicas são as quadrilhas que construíram e exercem seu poder em função das condições geradas por sua proibição e criminalização. Seguramente, nenhuma dessas organizações criminosas teria a pujança que têm em uma situação de normalidade. Por contraditório que possa soar, a ilegalidade é uma condição sine qua non para que o tráfico de drogas venha a ser lucrativo. Em um quadro em que predomine o interesse da saúde publica, as estruturas criminosas das quadrilhas não teriam como exercer sua influência, criar suas redes de corrupção e, em consequência, impor suas regras de funcionamento.
A alta lucratividade proporcionada pelo tráfico clandestino de entorpecentes serve como um dos principais estímulos para que as organizações de traficantes desenvolvam políticas visando gerar novos consumidores e criar dependência em um mercado que, por força das proibições governamentais, fica sob completo domínio do crime organizado. E, para que seu controle possa ser exercido, a interferência junto aos órgãos oficiais reguladores se faz sentir e a corrupção de seus agentes passa a ser uma constante. Portanto, ao mesmo tempo em que o crime organizado ocupa e corrompe espaços junto aos jovens das comunidades carentes, que são usados como mão de obra varejista, atua no seio da juventude de classe média alta, que são os potenciais consumidores a serem trazidos para o mercado, ele interfere nas próprias estruturas policiais encarregadas de manter a proibição, que são subornadas para tornarem-se cúmplices do tráfico.
Em vista de tudo o que acabamos de expressar, todos os que desejam sinceramente reduzir e minimizar os problemas que a expansão do consumo de drogas está causando a nossa sociedade devem entender que a manutenção da atual política de criminalização só contribui para que a crise se mantenha e se acentue. Em outras palavras, se quisermos verdadeiramente começar a resolver esta questão, uma das primeiras iniciativas a tomar deveria ser a descriminalização do consumo, passando a considerá-lo um problema de saúde pública, e não criminal.
Então, levando em conta que os evangélicos objetivam sinceramente livrar nossa sociedade das mazelas advindas da expansão da drogadição, não há razões lógicas para que eles não apoiem nossas propostas. As medidas que estamos defendendo apontam para uma resolução efetiva do problema, e não para um mero uso demagógico de uma linguagem que, embora se declare inimiga do uso de drogas, acaba por contribuir com sua expansão.
A conclusão a extrair da argumentação que apresentei é que nós devemos mesmo nos dedicar a entender melhor o que vai pela mente de nossos irmãos evangélicos. No entanto, nosso propósito não deve ser exclusivamente relacionado com a conquista dos votos dessa comunidade. Não resta dúvida da importância de contar com o voto dos evangélicos para somar forças na busca de uma sociedade mais justa e solidária, ou seja, uma sociedade nos moldes do que o próprio Jesus deu mostras de querer quando de sua vida entre nós.
É claro que nós também podemos aprender com eles e devemos estar dispostos a ouvi-los com atenção. No entanto, naquilo que temos clareza de que estamos assumindo a posição correta, não há motivos para abdicarmos de nossa visão tão somente para ganhar votos. Queremos muito esse voto, mas também queremos que o evangélico tenha a consciência de que se trata de um voto coerente com o que eles e nós almejamos.
Devemos lutar com todo afinco para ampliar nossa aceitação em toda a comunidade evangélica, mas que isto não signifique que tivemos de abrir mão de valores que consideramos inalienáveis.
* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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