Charge: Henfil |
Os terríveis acontecimentos do dia 8 de janeiro voltaram a colocar em discussão o papel das forças armadas na vida nacional, pois não há dúvida de que militares da reserva e da ativa tiveram algum grau de participação na pior agressão sofrida pela democracia brasileira desde a ditadura militar.
No esteio do choque nacional e mundial com a violenta e covarde tentativa de golpe de Estado, produziram-se muitos artigos com críticas severas às forças armadas.
Alguns chegaram a afirmar que essas forças, além de serem muito dispendiosas, não servem para nada e, por conseguinte, poderiam ser extintas.
Obviamente, isso seria um erro crasso. Os países que não têm realmente forças armadas constituídas são muito poucos.
Em geral, são países bem pequenos, como Kiribati, Tuvalu, Samoa, Liechtenstein, Islândia etc. Mesmo assim, esses países possuem diversas forças (polícias, guardas costeiras, forças nacionais etc.) que fazem, ou podem fazer, papel de forças armadas.
Alguns desses países “terceirizam” sua defesa nacional. É o caso de Kiribati, que tem um acordo para sua defesa com a Austrália e Nova Zelândia, e o da Islândia que, além de ser membro da OTAN, tem um acordo específico com os EUA para promover a sua defesa.
O Brasil, país de 208 milhões de habitantes, 8,5 milhões de quilômetros quadrados, 16.886 km de fronteiras terrestres e 7.367 km de fronteiras marítimas não pode se dar a esse luxo pacifista.
Porém, não podemos ter qualquer tipo de forças armadas. Temos de ter forças armadas profissionais, eficientes e exclusivamente dedicadas à defesa da pátria contra inimigos externos. Forças que cumpram seu papel constitucional. Ponto final.
Infelizmente, não é o que temos no Brasil de hoje.
Temos forças armadas que estão, em alguma medida, “bolsonarizadas” e que acreditam que devem tutelar o poder civil. Pensam, equivocadamente, que lhes foi dada a missão de combater supostos inimigos internos. Missão dada por eles próprios.
Embora as raízes históricas das forças armadas como uma espécie de “poder moderador”, dedicado a intervir internamente na vida política do país, sejam profundas, fincadas desde os tempos do Império, elas ressurgiram com força após o golpe de Estado de 2016 e, mais recentemente, com o governo Bolsonaro.
Na realidade, as forças armadas (ou parte delas) apoiaram o golpe de 2016 e, como todo o mundo sabe, exigiram publicamente a manutenção da prisão de Lula. Ademais, deram apoio à eleição de Bolsonaro.
Deixaram de ser instituições de Estado e passaram a ser instituições de governo, encastelando quadros, aos milhares, em cargos de confiança do bolsonarismo.
Não se envolveram institucionalmente nesta última tentativa de golpe porque não havia condições internas e, principalmente, externas para seu sucesso. Estivesse no poder nos EUA Trump, um grande aliado de Bolsonaro, e não Biden, seu adversário, a história poderia ter sido bem diferente.
Parte significativa de nossos militares foi detida, em seus intentos golpistas, basicamente por militares norte-americanos e pelo medo do isolamento internacional. Não a deteve o devido respeito às instituições democráticas ou à Constituição.
Tal parte das forças armadas deu guarida aos terroristas e aos golpistas que assaltaram a nossa democracia.
Em nenhum momento esses segmentos condenaram os fanáticos que estavam acampados em suas barbas ou defenderam o processo eleitoral e as instituições democráticas. Ao contrário, participaram ativamente da farsa que colocou em dúvida o sistema eleitoral brasileiro, um dos mais seguros e ágeis do mundo.
Temos, portanto, um problema muito sério para nossa democracia. Não sabemos se essas frações golpistas das forças, politizadas e intervencionistas, respeitarão, nos próximos 4 anos, a vontade popular emanada das urnas. Os covardes que defendem a ditadura e a tortura, a pior forma de covardia, podem voltar a se manifestar.
Esse é um problema que o governo Lula terá de enfrentar. E terá de fazê-lo em pouco tempo. Não podemos mais conviver com essa vergonhosa espada de Dâmocles, que nos transforma numa triste república bananeira.
Em primeiro lugar, será necessário punir exemplarmente quaisquer militares que, por ação ou omissão, contribuíram para o assalto à democracia. Não pode haver hesitação ou anistia. A lei terá de ser cumprida com rigor.
Os golpistas deverão ser excluídos das forças e as vozes legalistas terão de ser amplificadas e promovidas, tal como aconteceu, agora, com a substituição do Comandante do Exército.
Em segundo, será preciso modificar o arcabouço constitucional e legal que normatiza o papel das forças armadas. Em especial, a redação do artigo 142 da CF, que dá margem a interpretações de que as forças armadas poderiam se arvorar em poder moderador, tem de ser modificada, de maneira a sepultar de vez quaisquer especulações sobre essa função inexistente.
Além disso, a Lei Complementar nº 97 de 1999, que disciplina, entre outras coisas, a utilização das forças armadas em GLOs, precisa também ser alterada, de modo a tornar esse uso algo efetivamente excepcional e pontual.
Em terceiro, nossos militares precisam viajar no tempo. Sair da década de 60 do século passado e vir visitar a segunda década do século XXI. Muitos deles ainda estão presos a uma visão de mundo da antiga Guerra Fria, na qual o ubíquo fantasma do comunismo era o grande inimigo a ser combatido. Vivem numa bolha ideológica de fake news arcaicas.
Esse mundo não existe mais há muito tempo.
Não há perigo algum de a bandeira do Brasil venha a se tornar vermelha. O perigo maior é que ela se torne cinza, em razão das queimadas e das mudanças climáticas. É aí que reside o grande e atual perigo contra a segurança nacional.
Essa mudança de mentalidade demandará tempo, é claro. Precisa, contudo, ser iniciada agora.
Mas não são apenas as forças armadas que precisam mudar, se redefinir e voltar ao seu papel rigorosamente constitucional.
A atual política de defesa também precisa de revisão.
Com efeito, após o golpe de 2016, a política de defesa do Brasil passou a subordinar-se estrategicamente aos interesses dos EUA.
As forças armadas brasileiras foram incorporadas como forças auxiliares ao Comando Sul (SOUTHCOM) dos EUA, e o Brasil foi declarado aliado extrarregional da Otan.
Além disso, foi firmado, no plano bilateral, o “Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento”, ou MIEA (Master Information Exchange Agreement), na sigla em inglês. Com tal decisão, os governos conservadores do Brasil decidiram investir na cooperação com os EUA, como forma de “desenvolver” nossa indústria de defesa.
Na prática, isso implica renunciar a ter real autonomia, no campo do desenvolvimento industrial e tecnológico da defesa nacional. Ou seja, significa, em grande parte, deixar de usar a indústria de defesa como estímulo ao desenvolvimento econômico e tecnológico nacional, como fazem vários países.
Tudo isso tem um custo alto para o Brasil, além da óbvia perda de soberania.
Como é amplamente conhecido, os EUA desejam que as forças militares da América Latina atuem basicamente como forças policiais, as quais teriam como função enfrentar “problemas” do interesse de Washington, como narcotráfico, contrabando, terrorismo, migrações irregulares etc.
Há, portanto, o perigo concreto de que as forças armadas brasileiras passem pelos mesmos problemas hoje enfrentados pelas forças armadas da Colômbia e do México.
Também é do interesse dos EUA que essas forças armadas possam, eventualmente, empenhar-se no combate a regimes “inimigos” no continente, como se tentou fazer, sem sucesso, no caso da Venezuela. Isso leva instabilidade e conflito à nossa região. O interesse real do Brasil está na paz e na integração.
Mas o que importa aqui destacar é que essa política de defesa subordinada estrategicamente aos EUA colide com a nova política externa que o terceiro governo Lula quer implantar.
Trata-se de uma política externa universalista e independente, que procurará afirmar os interesses nacionais de forma autônoma em todos os recantos do globo e que, por conseguinte, buscará manter boas relações com quaisquer nações que manifestem interesse pelo Brasil.
Em outras palavras, essa nova política externa não se pautará pela lógica arcaica da nova Guerra Fria, a qual antepõe geopoliticamente os interesses dos EUA e aliados aos interesses de países em ascensão no cenário mundial, como a China, a Rússia etc. Esse é um conflito que não interessa ao Brasil. O único alinhamento admissível ao País é o alinhamento do Brasil aos seus próprios objetivos e necessidades.
No entanto, a atual subordinação estratégica da política de defesa do Brasil a coloca em contradição com essa nova política externa.
Isso não pode acontecer, uma vez quer a política externa (a persuasão diplomática) e a política de defesa (a dissuasão estratégica) têm de ter sinergia, de modo a conformar uma mesma estratégia de afirmação dos interesses do país.
Não se trata, evidentemente, de menosprezar nossas relações com os EUA, que precisam ser fortalecidas e ampliadas, mas de colocá-las em um patamar equilibrado, que nos permita desenvolver, sem embaraços ou obstáculos, outras relações igualmente importantes.
Nesse sentido, uma nova política de defesa, acompanhando a ênfase que a nova política externa coloca na integração regional, poderia investir mais na chamada “cooperação dissuasória” com outros países do subcontinente, no âmbito do Conselho Defesa da Unasul, organismo regional que objetiva promover a defesa da região de forma independente, em relação aos interesses de quaisquer potências extrarregionais.
Como se vê, há muito o que fazer. Mas seria uma covardia não o fazer.
A defesa da democracia e da soberania demanda coragem.
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
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