Brasília, 01/01/23. Foto: Ricardo Stuckert |
Lula foi eleito com um grande objetivo: salvar a ameaçada democracia brasileira.
Com efeito, a frente política que se criou em torno de Lula visou, e visa, derrotar o bolsonarismo neofascista e defender a institucionalidade democrática do Brasil contra uma agenda claramente golpista e autoritária.
A duras penas, e mediante um resultado eleitoral bastante apertado, conseguiu-se obter um primeiro passo nessa direção: Bolsonaro foi derrotado e, aparentemente, foram afastadas as perspectivas imediatas de um golpe de Estado no Brasil.
Ao que tudo indica, Lula deverá tomar posse em 1º de janeiro, mesmo com as sérias ameaças de atos terroristas.
Entretanto, é evidente que isso não basta para dar solidez ao processo democrático brasileiro, tão fragilizado após o golpe institucional de 2016.
É necessário considerar, sobretudo, que o bolsonarismo, embora conjunturalmente derrotado, continua vivo. Fincou bases robustas no Congresso, tem apoio da extrema-direita mundial, controla segmentos expressivos das redes sociais, é hegemônico nas forças de segurança e tem muitos seguidores fanáticos, dispostos a tudo.
Não há dúvida que, a partir de 1º de janeiro, essa horda passará a fazer oposição feroz ao governo Lula, na expectativa de desestabilizá-lo logo em seus primeiros meses.
Porém, o bolsonarismo não se constitui na principal ameaça à democracia brasileira, embora seja ele a face mais imediata e dramática dessa ameaça.
Na realidade, a ameaça mais profunda e estrutural à democracia tange à hegemonia político-ideológica do neoliberalismo.
Com efeito, apesar de historicamente se autoproclamar um defensor da democracia e das “liberdades”, o neoliberalismo é, em última instância, incompatível com sistemas realmente democráticos.
Em primeiro lugar, o neoliberalismo é incompatível com a democracia porque ele mina as bases sociais do sistema democrático.
Não há democracias substantivas no mundo sem uma classe média robusta, sem uma classe trabalhadora organizada e sem um Estado de Bem-Estar minimamente consolidado.
As chamadas liberdades civis e políticas fundam as democracias, mas elas só se aprofundam e se consolidam no contexto da afirmação de direitos sociais e econômicos amplos, que asseguram, na prática, a fruição das liberdades e direitos básicos.
Entretanto, com o predomínio do neoliberalismo as economias tendem a produzir grandes desigualdades, a enfraquecer a classe trabalhadora, a empobrecer as classes médias, a gerar empregos de má qualidade, a solapar o Estado de Bem-Estar e a desconstruir direitos duramente conquistados. Esse quadro tem profundas implicações negativas nos sistemas de representação das democracias.
Muitos autores, como Thomas Piketty, Cristian Laval, Noam Chomsky e Joseph E. Stiglitz, só para citar os mais conhecidos, destacam essa relação estreita entre o capitalismo “financeirizado” e desregulado, típico do neoliberalismo recente, e o aumento das desigualdades, a erosão dos Estado de Bem-Estar e a crise política que atinge em cheio as democracias e a legitimidade dos sistemas de representação política.
Obviamente, são esses fatores que explicam também a eclosão de forças de direita e de extrema direita em todo o mundo.
Mas, em segundo lugar, o neoliberalismo mina também a democracia, no plano ideológico, simbólico e jurídico.
Nesse plano, o neoliberalismo visa construir politicamente as sociedades com base no modelo do mercado. Tal modelo é visto, em tal contexto, como o único que tem “viabilidade técnica e racionalidade”.
Quaisquer demandas ou políticas que ultrapassem a lógica estreita desse modelo são desqualificadas e deslegitimadas como irracionais e populistas.
Assim sendo, há uma tendência, nos regimes neoliberais, de esvaziamento progressivo do poder dos representantes eleitos e da transferência das decisões públicas para gestores e/ou atores de mercado, no quadro de um Estado meramente gerencialista.
Isso tende a criar uma blindagem jurídico-política para as políticas neoliberais, vistas como as únicas possíveis, que esvazia a escolha democrática e vulnera a real alternância de poder. Essa tendência é ainda mais efetiva e perigosa, quando ela se dá no contexto atual da criminalização da política, entendida como atividade corrupta e ineficiente.
Estamos vendo esse processo agora mesmo, na transição governamental.
Nossas classes dominantes, ou partes delas, admitiram a derrota de Bolsonaro, até mesmo porque ele, com seu tosco primitivismo, vinha afetando o “ambiente de negócios”, especialmente nas relações econômicas internacionais.
Contudo, elas, ou partes delas, não querem admitir que o novo governo Lula pratique políticas econômicas divergentes das admitidas pelo “mercado”. A pressão por um ministro da Fazenda do “mercado” e as críticas infundadas e precipitadas a Haddad e Mercadante são significativas, nesse sentido.
O ideal, para o projeto neoliberal, é que não apenas o presidente do Banco Central, mas também todos os outros “gestores” das diversas políticas econômicas, como o ministro da Fazenda, o ministro da Indústria e Comércio, os presidentes e diretores dos poucos bancos públicos e das estatais ainda restantes etc., fossem “independentes”, isto é, diretamente dependentes dos interesses do mercado e infensos à alternância de poder.
Em muitos países, esse processo de insulamento jurídico-político das políticas neoliberais vem ocorrendo há algumas décadas, em maior ou menor grau, o que, muitas vezes, impede mudanças significativas num quadro socioeconômico crescentemente negativo e incerto, especialmente em épocas de crise, como a que estamos vivendo.
É justamente essa “mesmice neoliberal” que fragiliza os sistemas de representação política, ao substituir a representação da cidadania pela “gestão técnica” dos interesses de um mercado “financeirizado” e globalizado.
Como nada muda de verdade, independentemente dos governos de plantão, a política tradicional passa a ser vista como algo inútil, que não beneficia ninguém, além dos históricos donos do poder.
Abrem-se, assim, as portas para o crescimento da extrema-direita, que, embora não coloque em questão, de fato, as políticas neoliberais, nutre-se do ressentimento social por elas provocado e canaliza-o para a “antipolítica”, com frequência tentando isolar a centro-esquerda e a esquerda, que ficam, algumas vezes, sozinhas na defesa da real institucionalidade democrática. Foi o que aconteceu na história recente do Brasil.
Bolsonaro, o neofascista, foi, em grande parte, a consequência lógica de Temer, o criador do teto de gastos e da “Ponte para o Futuro”, mais conhecida como “Pinguela para o Passado”.
Entretanto, a derrota do bolsonarismo e a frente democrática que se criou em torno de Lula criam oportunidade histórica para um novo ciclo político que fortaleça e aprofunde a experiência democrática brasileira.
Mas, para que isso ocorra, será necessário que o projeto de reconstrução e transformação do Brasil, eleito agora junto com Lula, possa ultrapassar as estreitas barreiras lógicas, simbólicas, políticas e jurídicas impostas pelo já anacrônico neoliberalismo, a começar pelo fracassado teto de gastos.
Não se trata, é claro, de se romper com toda e qualquer regra fiscal e de se apostar num suicida e voluntarista solipsismo econômico, mas de instituir novos regras viáveis, flexíveis e de longo prazo que permitam que o país volte a crescer, distribuindo renda, gerando empregos e assegurando direitos.
O governo Lula precisa apresentar resultados, num cenário interno conturbado e num cenário externo restritivo. Sem isso, a democracia não se consolidará, e corre-se o sério risco da volta, desta vez avassaladora, do neofascismo bolsonarista.
Não basta, portanto, derrotar o bolsonarismo. É necessário também derrotar política, ideológica e juridicamente o neoliberalismo, que já fracassou economicamente, para que a democracia se “salve”.
Não será tarefa fácil, mas é missão democrática necessária.
Como diria Celso Furtado, é necessário “ampliar o horizonte do campo do possível.”
E isso só é possível em democracia de verdade.
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em relações internacionais.
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