Começou a operação para blindar o bolsonarista Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central (BC). Sua entrevista ao programa Roda Viva, na TV Cultura, na noite desta segunda-feira (13), foi um desses vergonhosos conluios entre a grande mídia – Globo à frente – e o mercado financeiro, com o objetivo de preservar interesses comuns.
Rentista de origem, Campos Neto chegou ao comando do BC em fevereiro de 2019, nomeado pelo então presidente Jair Bolsonaro. Foi durante sua gestão, dois anos depois, que o Congresso aprovou a nefasta autonomia do Banco Central. O suposto pretexto era “separar o ciclo político do ciclo de política monetária”, o que, em tese, ajudaria a controlar melhor a inflação e dar estabilidade ao sistema financeiro.
Na prática, a mudança não conteve a escalada dos juros no País. Em agosto de 2020, a Selic, a taxa básica de juros do País, definida a cada 45 dias pelo Copom (Comitê de Política Monetária) do Banco Central, caiu a 2% – o percentual mais baixo no País em 23 anos. Bastou a “autonomia” entrar em vigência para que o percentual passasse a subir a cada reunião do Copom, chegando ao patamar de 13,75% em agosto de 2022.
Por trás da alta dos juros não havia apenas a “inflação de Bolsonaro”, que disparou entre 2020 e 2022, turbinada pelos combustíveis e pelos alimentos. Aos olhos do mercado financeiro, mais grave seria a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições presidenciais. Às vésperas do primeiro e do segundo turno, Bolsonaro torrou centenas de milhões de reais dos cofres públicos, numa série de estelionatos eleitorais. Mas o problema era Lula.
Em campanha, Lula prometia uma política econômica com “credibilidade, previsibilidade e estabilidade” – o que, de resto, seus dois governos nos anos 2000 já haviam entregado. Mas o mercado, ao reagir de pronto – e negativamente – a cada estocada de Lula em retrocessos como o “teto de gasto”, dava mostras inequívocas de que preferia Bolsonaro.
Enquanto isso, Campos Neto era membro ativo do grupo de ministros bolsonaristas no WhatsApp. Segundo o jornalista Guilherme Amado, do Metrópoles, o presidente do BC gostava de fazer “previsões estatísticas” para mostrar por que Bolsonaro seria reeleito. No dia da votação, Campos Neto renunciou de vez à discrição e foi à seção eleitoral com uma camisa da Seleção Brasileira. Em janeiro, prestigiou a posse do novo governador de São Paulo, o também bolsonarista Tarcísio de Freitas.
Era esperado que, na primeira reunião sob o governo Lula, o Copom mantivesse a Selic em 13,75% – e os juros reais (descontada a inflação) em 8%, a maior taxa do mundo. Mas o comunicado do Comitê que anunciou a decisão, em 1º de fevereiro passado, foi além de qualquer expectativa, ousando passar pito na gestão Lula e indicando que uma eventual redução da Selic estava descartada a curto e médio prazo.
“O Comitê reforça que irá perseverar até que se consolide não apenas o processo de desinflação como também a ancoragem das expectativas em torno de suas metas, que têm mostrado deterioração em prazos mais longos desde a última reunião”, apontava o comunicado. O tom foi tão duro e desleal que um ex-diretor do BC, Alexandre Schwartsman, comparou o Copom a um boxeador que “saiu do corner batendo”.
Desde então, Campos Neto está sob fogo cruzado, assim como os juros altos e a autonomia do BC. “Quero saber do que serviu a independência (do Banco Central)”, declarou Lula no dia seguinte à renuião do Copom. “Vou esperar esse cidadão (Campos Neto) terminar o mandato dele para a gente fazer uma avaliação do que significou o banco central independente.”
Avesso a entrevistas, Campos Neto aceitou ir ao Roda Viva – mas não sem assegurar, de antemão, que a sabatina seria amistosa. Sem se preocupar com a aparência constrangedora de jogo de cena, ele deixava à vista de todos o briefing que levou ao programa. Alinhado aos entrevistadores, o presidente do BC bateu na tecla de que a política monetária atual é inevitável, a ponto de ele próprio, Campos Neto, ser “irrelevante” na tomada de decisões: “Esse debate está sendo muito personificado em mim. Se eu sair hoje, não muda nada”.
Um bolsonarista querendo se passar por gestor 100% técnico não convence ninguém. Mas a repercussão da entrevista na grande imprensa foi como um segundo comunicado do Copom para manter Banco Central no cerco a Lula. Curiosamente, a primeira a se desmanchar em elogios a Campos Neto – e em novas cobranças a Lula – foi a apresentadora do programa, a jornalista Vera Magalhaes.
“A entrevista de Roberto Campos Neto ao Roda Viva foi, toda ela, um acenar de bandeira branca do presidente do Banco Central em direção ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, escreveu Vera em seu blog no O Globo minutos após a sabatina. “Sua intenção ao aceitar o convite para falar, ficou claro, era contemporizadora, não belicista. Resta saber se isso terá o efeito de fazer o PT retroceder, depois de atiçado por Lula.”
Ainda em O Globo, a beatificação de Campos Neto recebeu o apoio de Míriam Leitão. “Ele mandou vários recados de pacificação”, escreveu a jornalista, que responsabilizou exclusivamente a gestão Lula pelas divergências: “Esse ambiente de crise criado pelo governo, pelo presidente da República e pelo PT só aumenta a tensão e a expectativa de que haja uma intervenção no Banco Central”.
Conforme uma newsletter da Folha de S.Paulo, assinada por Artur Búrigo, “os atores das esferas econômica e política do País pararam para ouvir Roberto Campos Neto”. E coube ao presidente do BC fazer “acenos à nova administração”. No G1 e na Globo News, a jornalista Ana Flor falou em “sinais enviados de parte a parte” no rumo de “um movimento de reaproximação e uma ‘bandeira branca’”.
A mídia econômica também buscou a blindagem de Campos Neto. “Munido de uma ‘cola’, Campos Neto usou o início da entrevista para dar boa parte dos recados que desejava”, registrou a Infomoney. “Os gestos seguiram o script para distensionar as relações entre o novo governo e o Banco Central.” Ao menos o site admitiu que “o armistício já tem possíveis crises contratadas no futuro próximo”.
O Valor Econômico elogiou a postura supostamente humilde de Campo Neto. Ele teria evitado “vestir o figurino de banqueiro central independente e superpoderoso nos dois primeiros pronunciamentos públicos que fez desde os ataques sofridos do governo petista”.
Na CNN, o jornalista William Waack defendeu Campos Neto atacando Lula. Para Waack, a “feroz campanha do presidente” não é “para baixar juros na marra”, nem para “abolir a autonomia” do BC – mas para conquistar o “domínio do espaço da informação”.
Coube a Reinaldo Azevedo, em sua coluna no UOL, dar uma das poucas manchetes críticas à entrevista: “Campos Neto não explica o maior juro da Terra, mas seduz até com subjuntivo”. Tampouco a independência do BC ficou mais inconteste: “O Banco Central teria de ser formado não por pessoas oriundas do mercado financeiro e com óbvios vínculos políticos. Seria necessário que os nove diretores fossem vestais, as virgens que guardavam o templo de Vesta em Roma”, ironizou Azevedo.
Salvo raras exceções, a grande mídia deixou subtendido que precisamos de um governo federal subalterno às diretrizes do Banco Central. E pior: um governo que evite qualquer gesto que possa levar à “tensão”. Nem o Copom, com seus comunicados, foi tão explícito.
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