Por Wladimir Pomar, no sítio Correio da Cidadania:
Parece haver certo consenso de que o mundo está entrando numa era de turbulências agudas em todos os terrenos. Isto é, na volatilidade das finanças, nas taxas de câmbio e de juros, nos índices de emprego e de padrão de vida, nas insatisfações sociais e nacionais, nas tendências e nas alianças políticas e nas apreciações ideológicas sobre esse conjunto de situações e sobre cada uma delas.
É verdade que, como mostrou a crise de 2008, essas turbulências não ocorrem na mesma extensão e gravidade em todos os países e regiões. Em 2008 concentraram-se principalmente nos Estados Unidos e, agora, concentram-se na Europa, a partir dos países de economias mais fracas. Mas não há qualquer dúvida de que elas causam instabilidades globais que rebatem, de forma mais ou menos intensa, e mais ou menos graves, em todos os demais países.
Também é verdade que é impossível fazer previsões de curto prazo sobre como, e com que rapidez, tais turbulências evoluirão, não apenas nos países centrais, mas no resto do mundo. Em tais condições, basta isso para gerar uma série de ações desencontradas, em cada um dos países ou regiões. Alguns destes tendem a adotar medidas protecionistas, enquanto outros pensam tirar proveito máximo da crise dos outros. No entanto, nada garante que a situação crítica dos Estados Unidos e da Europa possa levar algum benefício a quem quer que seja, em especial no caso de se firmar a tendência de ascensão das correntes políticas de direita e para-fascistas.
No caso do Brasil, o quadro recomenda uma avaliação estratégica mais consistente das relações do país, tanto com as regiões em crise quanto com os BRICS, com a América Latina e com as regiões que ainda estão relativamente a salvo. Talvez seja mais conveniente ao Brasil se preparar para o pior e tratar mais seriamente tal possibilidade.
Nesse sentido, é necessário tratar com especial atenção nossas relações com a China. No momento, parece predominar não só em certos setores empresariais, mas também em diversos setores governamentais e acadêmicos, uma visão negativa sobre tais relações, como se os chineses fossem única e exclusivamente uma ameaça.
Num quadro geral de crise, o predomínio dessa visão não só impedirá o Brasil de aproveitar as oportunidades oferecidas pelo desenvolvimento chinês, como também pode tornar o Brasil o único prejudicado, já que a China é um dos poucos países do mundo que possui um mercado doméstico suficientemente grande para suportar, em certa medida, uma crise realmente global.
Segundo dados conhecidos, a corrente de comércio bilateral Brasil-China saltou de 760 milhões de dólares, em 1989, para 56,8 bilhões de dólares, em 2010. Em outras palavras, a corrente de comércio do Brasil com o país asiático saltou de 1,5% para 15%. Esse aumento do comércio com a China contribuiu não só para reduzir os déficits das contas correntes brasileiras, mas também para manter a inflação brasileira sob controle, tendo em conta os custos mais baixos dos bens importados daquele país.
Além disso, enquanto os investimentos diretos (IED) realizados pela China no Brasil somaram 250 milhões de dólares, entre 1990 e 2009, essa soma se elevou a 13,7 bilhões de dólares em 2010. Ou seja, 28% de todos os investimentos estrangeiros no Brasil. As estimativas são de que, nos próximos anos, esses investimentos oriundos da China se elevem ainda mais, embora muitos temam que eles se dirijam unicamente à fabricação de produtos básicos exportáveis.
A maioria dos analistas considera que esse é o lado aparentemente bom das relações com a China. Mas essa maioria também considera que tal lado bom é apenas um canto de sereia, ou a reedição do infausto acordo Inglaterra-Portugal, como escreveu Luis Nassif em seu blog. Para demonstrar essa tese, apontam vários aspectos preocupantes do comércio externo brasileiro e das relações com a China.
Os produtos básicos e semi-manufaturados, que antes constituíam 43,5% das exportações brasileiras, saltaram para 58,6% em 2010. Em contrapartida, as exportações de manufaturados caíram de 54,3%, em 2006, para 39,4% em 2010. Para tornar ainda mais sombria essa situação do Brasil, estima-se que 71,5% dos investimentos previstos entre 2011/2014 (não só chineses) estarão voltados para commodities, como petróleo, gás e mineração, enquanto os investimentos destinados aos setores de manufaturas exportáveis, como veículos, papel e celulose e têxteis e confecções, cairão para 11,9%.
A participação da indústria no valor total da economia brasileira caiu de 19,2%, em 2004, para 14,8% em 2009. Teria ocorrido, portanto, uma desindustrialização. Os analistas supõem que essa situação é ainda mais grave porque tal desindustrialização não teria sido acompanhada do surgimento de um setor de serviços dinâmico e sofisticado, como ocorreu nos Estados Unidos e em vários países da Europa. Só esquecem de dizer que isso não teria sido vantagem alguma, já que serviços dinâmicos e sofisticados não salvaram os Estados Unidos e a Europa da crise, colocando em xeque as vantagens da pretensa modernidade pós-industrial.
A partir desses dados, e do fato de o comércio realizado entre as diversas indústrias brasileiras, destinado a fortalecer suas cadeias produtivas, ter caído de 57% para 50%, entre 2006 e meados de 2011, a maior parte dos analistas conclui que a China estaria contribuindo para agravar essa situação. Afinal, 83,6% das exportações brasileiras para ela são de produtos básicos, contra apenas 4,5% de produtos manufaturados. Em contrapartida, 85% das importações brasileiras da China são de produtos industriais e de altos componentes tecnológicos.
Esses críticos das relações atuais do Brasil com a China reconhecem que o país asiático se tornou importante fonte de crédito externo para o Brasil. Mas não concordam que tais créditos estejam, em geral, vinculados a projetos de produção, logística ou comercialização de produtos brasileiros. E citam como exemplo o empréstimo de 10 bilhões de dólares, concedido em 2009, pelo China Development Bank (CDB) à Petrobrás, em troca da exportação de 200 mil barris de petróleo/dia, durante 10 anos.
Isso comprovaria que as relações econômicas e comerciais com a China, incluindo os investimentos e os créditos, teriam contribuído para estimular a produção e a exportação de produtos básicos e fazer regredir a produção industrial. Por outro lado, os ínfimos 85,3 milhões de dólares (outros falam em 150 milhões de dólares) investidos pelo Brasil na China demonstrariam a existência de barreiras aos investimentos brasileiros naquele país.
Numa análise superficial, os números apresentados podem levar à conclusão de que tais assertivas sobre as relações Brasil-China estão corretas e que a China não passa mesmo de uma das sereias que tentou levar o grego Ulisses ao naufrágio, após a guerra de Tróia. No entanto, uma análise mais acurada, inclusive partindo da experiência industrial da China, pode indicar que tais analistas estão construindo mitos, que pouco têm a ver com a realidade de ambos os países, e que pouco ajudarão a construir uma estratégia de parceria e benefício mútuo de longo prazo. Mas isso é assunto para a próxima semana.
Parece haver certo consenso de que o mundo está entrando numa era de turbulências agudas em todos os terrenos. Isto é, na volatilidade das finanças, nas taxas de câmbio e de juros, nos índices de emprego e de padrão de vida, nas insatisfações sociais e nacionais, nas tendências e nas alianças políticas e nas apreciações ideológicas sobre esse conjunto de situações e sobre cada uma delas.
É verdade que, como mostrou a crise de 2008, essas turbulências não ocorrem na mesma extensão e gravidade em todos os países e regiões. Em 2008 concentraram-se principalmente nos Estados Unidos e, agora, concentram-se na Europa, a partir dos países de economias mais fracas. Mas não há qualquer dúvida de que elas causam instabilidades globais que rebatem, de forma mais ou menos intensa, e mais ou menos graves, em todos os demais países.
Também é verdade que é impossível fazer previsões de curto prazo sobre como, e com que rapidez, tais turbulências evoluirão, não apenas nos países centrais, mas no resto do mundo. Em tais condições, basta isso para gerar uma série de ações desencontradas, em cada um dos países ou regiões. Alguns destes tendem a adotar medidas protecionistas, enquanto outros pensam tirar proveito máximo da crise dos outros. No entanto, nada garante que a situação crítica dos Estados Unidos e da Europa possa levar algum benefício a quem quer que seja, em especial no caso de se firmar a tendência de ascensão das correntes políticas de direita e para-fascistas.
No caso do Brasil, o quadro recomenda uma avaliação estratégica mais consistente das relações do país, tanto com as regiões em crise quanto com os BRICS, com a América Latina e com as regiões que ainda estão relativamente a salvo. Talvez seja mais conveniente ao Brasil se preparar para o pior e tratar mais seriamente tal possibilidade.
Nesse sentido, é necessário tratar com especial atenção nossas relações com a China. No momento, parece predominar não só em certos setores empresariais, mas também em diversos setores governamentais e acadêmicos, uma visão negativa sobre tais relações, como se os chineses fossem única e exclusivamente uma ameaça.
Num quadro geral de crise, o predomínio dessa visão não só impedirá o Brasil de aproveitar as oportunidades oferecidas pelo desenvolvimento chinês, como também pode tornar o Brasil o único prejudicado, já que a China é um dos poucos países do mundo que possui um mercado doméstico suficientemente grande para suportar, em certa medida, uma crise realmente global.
Segundo dados conhecidos, a corrente de comércio bilateral Brasil-China saltou de 760 milhões de dólares, em 1989, para 56,8 bilhões de dólares, em 2010. Em outras palavras, a corrente de comércio do Brasil com o país asiático saltou de 1,5% para 15%. Esse aumento do comércio com a China contribuiu não só para reduzir os déficits das contas correntes brasileiras, mas também para manter a inflação brasileira sob controle, tendo em conta os custos mais baixos dos bens importados daquele país.
Além disso, enquanto os investimentos diretos (IED) realizados pela China no Brasil somaram 250 milhões de dólares, entre 1990 e 2009, essa soma se elevou a 13,7 bilhões de dólares em 2010. Ou seja, 28% de todos os investimentos estrangeiros no Brasil. As estimativas são de que, nos próximos anos, esses investimentos oriundos da China se elevem ainda mais, embora muitos temam que eles se dirijam unicamente à fabricação de produtos básicos exportáveis.
A maioria dos analistas considera que esse é o lado aparentemente bom das relações com a China. Mas essa maioria também considera que tal lado bom é apenas um canto de sereia, ou a reedição do infausto acordo Inglaterra-Portugal, como escreveu Luis Nassif em seu blog. Para demonstrar essa tese, apontam vários aspectos preocupantes do comércio externo brasileiro e das relações com a China.
Os produtos básicos e semi-manufaturados, que antes constituíam 43,5% das exportações brasileiras, saltaram para 58,6% em 2010. Em contrapartida, as exportações de manufaturados caíram de 54,3%, em 2006, para 39,4% em 2010. Para tornar ainda mais sombria essa situação do Brasil, estima-se que 71,5% dos investimentos previstos entre 2011/2014 (não só chineses) estarão voltados para commodities, como petróleo, gás e mineração, enquanto os investimentos destinados aos setores de manufaturas exportáveis, como veículos, papel e celulose e têxteis e confecções, cairão para 11,9%.
A participação da indústria no valor total da economia brasileira caiu de 19,2%, em 2004, para 14,8% em 2009. Teria ocorrido, portanto, uma desindustrialização. Os analistas supõem que essa situação é ainda mais grave porque tal desindustrialização não teria sido acompanhada do surgimento de um setor de serviços dinâmico e sofisticado, como ocorreu nos Estados Unidos e em vários países da Europa. Só esquecem de dizer que isso não teria sido vantagem alguma, já que serviços dinâmicos e sofisticados não salvaram os Estados Unidos e a Europa da crise, colocando em xeque as vantagens da pretensa modernidade pós-industrial.
A partir desses dados, e do fato de o comércio realizado entre as diversas indústrias brasileiras, destinado a fortalecer suas cadeias produtivas, ter caído de 57% para 50%, entre 2006 e meados de 2011, a maior parte dos analistas conclui que a China estaria contribuindo para agravar essa situação. Afinal, 83,6% das exportações brasileiras para ela são de produtos básicos, contra apenas 4,5% de produtos manufaturados. Em contrapartida, 85% das importações brasileiras da China são de produtos industriais e de altos componentes tecnológicos.
Esses críticos das relações atuais do Brasil com a China reconhecem que o país asiático se tornou importante fonte de crédito externo para o Brasil. Mas não concordam que tais créditos estejam, em geral, vinculados a projetos de produção, logística ou comercialização de produtos brasileiros. E citam como exemplo o empréstimo de 10 bilhões de dólares, concedido em 2009, pelo China Development Bank (CDB) à Petrobrás, em troca da exportação de 200 mil barris de petróleo/dia, durante 10 anos.
Isso comprovaria que as relações econômicas e comerciais com a China, incluindo os investimentos e os créditos, teriam contribuído para estimular a produção e a exportação de produtos básicos e fazer regredir a produção industrial. Por outro lado, os ínfimos 85,3 milhões de dólares (outros falam em 150 milhões de dólares) investidos pelo Brasil na China demonstrariam a existência de barreiras aos investimentos brasileiros naquele país.
Numa análise superficial, os números apresentados podem levar à conclusão de que tais assertivas sobre as relações Brasil-China estão corretas e que a China não passa mesmo de uma das sereias que tentou levar o grego Ulisses ao naufrágio, após a guerra de Tróia. No entanto, uma análise mais acurada, inclusive partindo da experiência industrial da China, pode indicar que tais analistas estão construindo mitos, que pouco têm a ver com a realidade de ambos os países, e que pouco ajudarão a construir uma estratégia de parceria e benefício mútuo de longo prazo. Mas isso é assunto para a próxima semana.
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