Por Rosalina de Santa Cruz Leite, no sítio Vermelho:
Este texto recupera a história dos primeiros jornais nacionais dirigidos às mulheres e feitos por mulheres (1) no período pós-1975: o Brasil Mulher e o Nós Mulheres. O surgimento desses jornais e os princípios por eles defendidos estão relacionados ao contexto histórico do país e ao movimento feminista nacional, destacando-se o compromisso com uma nova linguagem e com as reivindicações e propostas diretamente relacionadas com a condição das mulheres.
Inicialmente vale ressaltar que, durante os anos do governo militar, surgiu no Brasil um tipo de imprensa denominada democrática ou alternativa por uns, e, por outros, de imprensa nanica. Esses jornais, com formato tablóide e muitas vezes de tiragem irregular e circulação restrita, eram vendidos em bancas, porém a venda mais significativa ocorria no âmbito da militância. Tratava-se de uma imprensa com características de esquerda e de oposição ao regime, artesanal e comercializada, prioritariamente, mão a mão, ou seja, através da venda por militantes dos movimentos populares em eventos ou nas sedes das próprias organizações.
Essa imprensa era representada por jornais de vários tipos e de diferentes tendências políticas, entre os quais podemos citar Pasquim, Opinião, Movimento e Em Tempo, com posições e informações fundamentalmente políticas, e Versus, Ovelha Negra, Lampião e De Fato, com orientação cultural, sexual e ideológica.
Na fase de maior efervescência política e de abrandamento da censura, cresce essa imprensa alternativa e aparecem também dois jornais feministas em São Paulo: O Brasil Mulher e o Nós Mulheres. De acordo com Maria Paula Araújo, esses jornais feministas foram inovadores não apenas em termos de linguagem, de reivindicações e de propostas, mas também na forma de divulgar uma visão de mundo e uma nova concepção de política (2).
Se um dos caminhos da política alternativa era buscar unir público e privado; tornar político o que antes era considerado assunto pessoal, íntimo e subjetivo; levar em conta e politizar as emoções, sentimentos, relações pessoais e laços familiares; dar importância à transformação do cotidiano e às questões domésticas do dia-a-dia; falar de amor e sexo, de dor e frustração, de alegria e esperanças individuais, valorizando as experiências pessoais, o vivido, a troca dessas experiências - o movimento feminista e a sua imprensa são os melhores exemplos dessa concepção de política (3).
No período-pós 1975, o primeiro jornal dirigido às mulheres e feito por mulheres foi o Brasil Mulher, publicado pela Sociedade Brasil Mulher (foram 16 edições regulares e mais quatro denominadas "extras"), de 1975 a 1980. O segundo, Nós Mulheres, publicado pela Associação de Mulheres (4), teve oito edições, que circularam de 1976 a 1978. O fato de estarem vinculados a uma associação já mostra que esses jornais eram instrumentos de divulgação de coletivos de mulheres organizadas e, como tal, davam cobertura a assuntos não veiculados pela imprensa oficial, na época sob forte censura política, refletindo o pensamento político da militância feminista.
As feministas militantes do Brasil Mulher e do Nós Mulheres eram majoritariamente oriundas da esquerda, muitas das quais com passagem pela experiência da militância clandestina, da prisão, da tortura e/ou do exílio. Não foram, entretanto, diferenças profundas de concepção os motivos que as levaram a editar dois jornais e não apenas um, em uma mesma conjuntura, com tão poucos recursos financeiros e humanos.
É preciso recorrer a análises do período para levantar hipóteses sobre essa decisão das feministas, a meu ver muito próximas em suas concepções do feminismo e da política. É preciso entender bem um processo que pode ser explicado, em parte, pela tendência às cisões, o que constitui uma marca da atuação política da esquerda nesse período.
Para ilustrar tal afirmação, basta observar que o Brasil Mulher já era conhecido pelas feministas exiladas militantes do Círculo de Mulheres de Paris (5). A correspondência e o diálogo eram freqüentes entre a direção do jornal e o coletivo de mulheres exiladas, de onde se origina grande parte das militantes do Nós Mulheres. E, mais, o Brasil Mulher já era sabidamente, nessa época, constituído por mulheres militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), da Ação Popular Marxista Leninista (APML) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8).
Quanto ao Círculo de Mulheres de Paris, cabe dizer que era formado por feministas de esquerda integrantes, em sua maioria, do Debate, dissidência política que surge no exílio agrupando ex-militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e mulheres autônomas. Ao voltar ao Brasil, esse segmento lança o Nós Mulheres. É nesse ponto que, acreditamos, havia possibilidades reais de se constituir um único jornal feminista, se os dois grupos tivessem de fato uma postura plural, democrática e feminista.
As militantes que vão compor o coletivo do jornal Nós Mulheres, que voltam ao Brasil em meados de 1976, bem antes da Anistia, vinham decididas a editar um jornal feminista, de oposição, e que veiculasse as lutas sociais das mulheres. Preferiram garantir sua 'autonomia', fundando um jornal próprio, o Nós Mulheres, a se integrar no já existente Brasil Mulher, reproduzindo, desse modo, a heterodoxia tão presente nas organizações de esquerda.
O Brasil Mulher, por sua vez, temia as feministas que chegavam com muitas críticas à linha que havia adotado. As cisões na esquerda, nessa época, aconteciam na maioria das vezes não por motivos políticos fundamentados em concepções teóricas ou práticas mas por questões de personalismo, luta pelo poder entre grupos de uma mesma corrente política. Essa forma de lidar com as diferenças e com o poder caracteriza os processos políticos tradicionais e têm profundas raízes na forma como se exercita o poder burguês e machista nas sociedades patriarcais. Por isso era de se esperar uma postura diferente por parte de feministas dos dois jornais em estudo.
Outro dado importante é que os dois jornais surgiram no período denominado pós- luta armada (1978-1980), em que se inicia o processo de liberalização do Estado ditatorial, já com certo abrandamento da censura à imprensa e de crítica ao modelo tradicional de se fazer política. Há, nesse momento, uma grande ênfase nos assuntos ligados à subjetividade, ao indivíduo, o que sugere a politização do cotidiano entre as mulheres de esquerda, que buscam novas formas de expressão e mobilização, criticando severamente as relações verticalizadas, hierarquizadas e burocratizadas tão presentes na prática da esquerda tradicional.
O fato mais significativo nesse período é o início do processo de distensão política, a suspensão da censura direta à imprensa (1975), embora nas revistas, no rádio e na TV a censura direta ainda permanecesse. Por outro lado, o governo Geisel (1974-1979) deixa clara para todos sua intenção de não dispensar os instrumentos de exceção, sempre que fossem necessários para manter a estabilidade do governo militar.
Dentro dessa conjuntura, pergunto: como eram pautados os dois jornais feministas? Como eram financiadas suas edições? Qual era sua tiragem? Quem era o seu público e quem os editava? São essas as primeiras questões que nos ocorrem ao tomar contato com os jornais.
A minha experiência como membro do Conselho Editorial de um desses jornais - o Brasil Mulher (6) - permite observar que as pautas dos jornais alternativos feministas eram definidas em reuniões bem semelhantes às dos partidos clandestinos de esquerda, através de um acirrado debate político que envolvia a discussão de temas específicos e análises conjunturais e que podia durar dias. Processo semelhante era vivenciado nas eleições para compor os conselhos editoriais e as equipes de redação.
Os dois jornais enfrentaram 'rachas' em seus coletivos em conseqüência de tais discussões, que iam se tornando desgastantes com o passar do tempo e com a entrada de novas tendências políticas nas suas equipes. Isso propiciava o desenvolvimento das lutas internas e das crescentes disputas políticas. Pode-se perceber o recrudescimento desse fenômeno a cada novo número dos jornais, principalmente na leitura dos respectivos editoriais. (Mas vale lembrar que a última edição do Brasil Mulher tem um editorial elaborado e assumido conjuntamente pela Sociedade Brasil Mulher e pela Associação de Mulheres, a instituição responsável pela publicação do Nós Mulheres.) Não obstante as dificuldades, o crescimento pessoal, o companheirismo, a solidariedade e a amizade são sentimentos comuns que todas as ex-militantes dessa fase ressaltam em suas memórias, mesmo quando recordam criticamente as cisões.
Apesar de os jornais não terem tido uma existência longa, eles refletem um período histórico muito intenso e marcado por transformações rápidas e profundas. Nesse aspecto, 20 edições do Brasil Mulher e oito do Nós Mulheres, em dois anos, representam uma grande produção. A tiragem do Brasil Mulher era de 5 mil exemplares, mas houve números que saíram com 10 mil. O Nós Mulheres não divulgava sua tiragem.
De modo geral, a situação financeira dos jornais, durante toda sua existência, foi muito precária. É ilustrativo que o Brasil Mulher e o Nós Mulheres passem a publicar pequenas notas incentivando a colaboração mensal, com o objetivo de sensibilizar as leitoras para a necessidade de não só comprar e divulgar os jornais mas também de apoia-los financeiramente a partir do aumento do número de assinantes e daqueles colaboradores que o Brasil Mulher denominava de sócios honorários,que mensalmente colaboravam com uma quantia fixa.
Numa dessas notas o Brasil Mulher lembra que, como todos os jornais independentes que vivem basicamente da venda de seus exemplares e de assinaturas, o Brasil Mulher vinha sofrendo flutuações econômicas que se refletiam na sua periodicidade. O mesmo vinha acontecendo com o Nós Mulheres.
Naquela época, não existia ainda a prática, hoje tão disseminada, de apoio de fundações e outras organizações da sociedade civil, nacionais ou internacionais, a projetos de cunho social, como foi o caso do jornal O Mulherio, que já surgiu institucionalizado (7).
Tanto o Brasil Mulher quanto o Nós Mulheres também propagandeavam os demais órgãos da imprensa dita alternativa. Junto ao apelo por apoio financeiro, aparecia a seguinte chamada: "leia a imprensa democrática", seguida de uma lista com os nomes de 11 jornais alternativos, entre os quais De fato, Movimento, Pasquim, Revista do Henfil, Coojornal, Bagaço, Versus, Paca-Tatu, Cutia Não e Invasão. Vale ressaltar que o Nós Mulheres e o Brasil Mulher divulgavam um ao outro em chamamentos de apoio à imprensa alternativa.
Quanto aos temas divulgados, vale destacar que o jornal Brasil Mulher, desde o número 0, afirmava a especificidade da luta das mulheres pela sua emancipação, debatia um conjunto de questões teórico-práticas ligadas à explicação da dominação/exploração das mulheres e divulgava as teses sobre a superação da sociedade patriarcal. Por outro lado, posicionava-se sobre todos os fatos conjunturais em pauta na realidade brasileira pós-luta armada, em plena vigência da ditadura militar e da reorganização do movimento popular.
A periodicidade dos dois jornais sempre foi prejudicada pelas dificuldades econômicas que viviam ou pela própria dinâmica de seus coletivos, pois era muito difícil conciliar publicidade e objetivos de militância.
A leitura dos editoriais, das matérias assinadas e das reportagens, nos dois jornais, é uma das referências fundamentais para compreender o significado do movimento feminista e sua articulação com os movimentos operários e populares que emergem na década de 1970. Emir Sader afirma que o movimento social e o movimento popular e operário dessa época surgem com a marca da autonomia e da contestação à ordem estabelecida, articulado ao novo sindicalismo, que se pretendia independente do Estado e dos partidos políticos8.É, também, com a defesa da autonomia que surgem os jornais feministas. Mas o fato de os dois jornais contarem em seus coletivos com fortes influências de mulheres militantes de organizações clandestinas pode ter dificultado o exercício dessa autonomia.
As feministas põem os jornais a serviço da organização popular de mulheres da periferia das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, reivindicando direitos, superando a perspectiva de trocá-los por favores, avançando na prática para além da política reivindicatória dos bairros e da relação fisiológica e tutelar que caracterizava essa ação política no passado.
Esses novos sujeitos coletivos, as feministas, criam seu próprio espaço de representação e favorecem com sua militância o debate das questões relacionadas com o convívio familiar, a intimidade, a sexualidade e as relações de poder entre homens e mulheres, pais e filhos etc., introduzindo-as no movimento popular.
É importante marcar esta presença e o significado desta relação: mulheres que se auto-organizam nas periferias, em busca da garantia de direitos sociais, e as feministas preocupadas com a emancipação feminina, a discriminação, a sexualidade, o poder, reinventando uma nova forma de fazer política junto com a luta reivindicativa das classes populares. Só assim pode-se entender o papel desempenhado pelos jornais Brasil Mulher e Nós Mulheres nessa conjuntura.
São, também, femininas as primeiras vozes a clamar pela Anistia. No Brasil de 1975, em plena ditadura militar, o Brasil Mulher, em seu primeiro número, surge como porta-voz desse movimento. O editorial do número zero do jornal, publicado em 9 de outubro de 1975, ao esclarecer seus objetivos, principalmente em sua primeira frase, criará muita polêmica:
"O Brasil Mulher não é o Jornal da Mulher. Seu objetivo é ser mais uma voz na busca e na tomada da igualdade perdida. Trabalho que se destina a homens e mulheres. Não desejamos nos amparar nas diferenças biológicas para desfrutar de pequenos favores masculinos, ao mesmo tempo que o Estado, constituído de forma masculina, deixa-nos um lugar só comparado ao que é destinado por incapacidade de participação do débil mental."
Por outro lado, esse mesmo editorial deixa claro o caráter internacionalista do órgão:
"Queremos falar dos problemas que são comuns a todas as mulheres do mundo. Queremos falar também das soluções encontradas aqui e em lugares distantes; no entanto, queremos discuti-las em função de nossa realidade brasileira e latino-americana. A época do beicinho está definitivamente para trás, porque milhares de mulheres em todo o mundo fazem jornada dupla de trabalho, num esforço físico que faz com que uma jovem mãe de 30 anos pareça estar com mais de 50; mulheres que desejavam trabalhar e serem independentes economicamente de seus maridos..."
Esse editorial faz também a defesa de um feminismo da igualdade, mas que respeita as diferenças e explicita um conceito muito novo na época, o da equidade: "Queremos usar a inteligência, informação e conhecimentos em função da igualdade e, desde já, a propomos, como equidade entre homens e mulheres de qualquer latitude".
Mais adiante nesse mesmo editorial, o Brasil Mulher se alinha à imprensa alternativa e democrática, ao afirmar o seguinte: "Finalmente, Brasil Mulher deseja incorporar-se à imprensa democrática que, em meio a batalhas, o Brasil vê surgir".
E anuncia a pretensão de ser um jornal mensal: "Teremos um número mensal e a sustentação desta proposta de comunicação depende unicamente da participação daqueles que com ela se identificarem".
Já o editorial do número 1 do jornal Nós Mulheres, publicado em 1976, cujo título é "Quem somos?", inova principalmente na linguagem, quando utiliza a primeira pessoa do plural - o "Nós" do título -, que rompe com o tratamento dado às mulheres pela imprensa feminina tradicional, em que um editor impessoal e assexuado dita regras e 'aconselha' uma leitora chamada de "você, mulher". Nesse editorial a linguagem usada é pessoal, afetiva, e revela intimidade. Além disso, a sua leitura permite vislumbrar que o jornal é feito por um coletivo de mulheres com vivências comuns, ou melhor, feministas comprometidas com o que escrevem.
O editorial começa por denunciar a educação diferenciada entre meninos e meninas e o lugar que a sociedade patriarcal reserva às mulheres:
"Desde que nascemos, nós Mulheres, ouvimos em casa, na escola, no trabalho, na rua, em todos os lugares, que nossa função na vida é casar e ter filhos. Que Nós Mulheres não precisamos estudar nem trabalhar, pois isto é coisa para homem.Os próprios brinquedos da nossa infância já nos preparam para cumprir estas funções, que dizem ser a função natural da mulher: mãe e esposa. Nós meninas, devemos sempre andar limpinhas e brincar (de preferência dentro de casa) de boneca, de comidinha, de casinha. E os meninos podem andar sujos e brincar na rua, porque são moleques e porque devem ser preparar para tomar decisões, ganhar a vida e assumir a chefia da casa".
Fala sobre o aprendizado a que as mulheres são submetidas para viverem em função do homem: "Aprendemos também que devemos estar sempre preocupadas com nossa aparência física, que devemos ser dóceis, submissas e puras para podermos conseguir marido".
Fala também sobre as relações de trabalho e as desigualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho: "Quando vamos procurar um emprego, porque o salário do marido ou do pai não dá para, ou porque queremos sair um pouco da solidão das quatro paredes de uma casa, sempre encontramos mais dificuldades que o homem, porque somos mulheres".
Dirige-se a homens e mulheres no momento que conclama os homens a dividirem com suas mulheres as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos:
Queremos também que nossos companheiros reconheçam que a casa que moramos e os filhos que temos, são deles e que eles devem assumir junto conosco as responsabilidades caseiras e nossa luta por torná-las sociais. Mas não é só, Nós Mulheres queremos, junto com os homens lutar por uma sociedade mais justa, onde todos possam comer, estudar, trabalhar em trabalhos dignos, se divertir, ter onde morar, ter o que vestir e o que calçar.
E a lutarem todos, mulheres e homens, pela emancipação humana: "E por isto, não separamos a luta da mulher da luta de todos, homens e mulheres, pela sua emancipação".
Durante o tempo de sua existência, os dois jornais reafirmam constantemente sua identidade feminista, porém o fazem geralmente na defensiva, argumentando que o feminismo não separa a luta pela emancipação das mulheres da luta pela emancipação humana, que a luta das mulheres não é contra os homens, mas a favor de novas relações igualitárias etc.
Em seu número 6, o Nós Mulheres explicita claramente essa questão ao afirmar que "estamos sempre querendo mostrar que não somos contra os homens que não somos contra isso ou aquilo [...] ou seja dizemos o que não somos e o que não pensamos, mas não definimos claramente o que entendemos por emancipação feminina, por feminismo".
Finalizando essa apresentação sintética sobre as origens do Brasil Mulher e do Nós Mulheres, os quais estão sendo objeto de análises mais aprofundadas, relaciono abaixo os principais temas relativos à conjuntura e os temas específicos tratados nesses jornais durante sua existência.
Temas da conjuntura geral:
- Eleições (1976/1978);
- Movimento pela Anistia;
- Campanhas contra a carestia e por creches.
Temas específicos:
- Direitos da mulher no campo da reprodução: pílulas anticoncepcionais, planejamento familiar, sexualidade, aborto;
- Creche e organização popular de mulheres;
- A mulher e o trabalho: salários diferenciados, discriminação no cotidiano do trabalho, direitos trabalhistas, trabalho noturno, profissionalização para as mulheres etc.
- Violência doméstica.
Como vemos, a imprensa feminista representou um espaço de experimentação de uma forma muito especial de fazer política, refletindo sobre as descobertas das mulheres sobre si mesmas e sobre as idéias feministas que floresceram na década de 1970.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 70. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000.
BASTOS, Maria Bueno. Outras palavras, outras imagens: movimentos feministas na cidade de São Paulo nos anos 70/80. 1992. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher na imprensa feminina brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 1981.
_____. Imprensa feminina. São Paulo.Ática,1986.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta Editorial, 1991.
DEBÉRTOLIS, Karen Silva. Brasil Mulher: Joana Lopes e a imprensa alternativa feminista. 2002. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Informação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
MORAES, Maria Lígia Quartin de. Vinte anos de feminismo. 1996. Tese (Livre docência) - Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, Campinas.
BRASIL MULHER. São Paulo: Sociedade Brasil Mulher, n. 0, 9 out. 1975. Editorial.
NÓS MULHERES. São Paulo: Associação de Mulheres, n. 1, jun. 1976. Editorial.
NÓS MULHERES. São Paulo: Associação de Mulheres, n. 6, ago./set. 1977. Editorial.
SADER, Emir. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo - 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1985.
Notas de rodapé
1- Afirmar que os jornais são feitos por mulheres significa dizer que elas compõem os conselhos editoriais, sendo responsáveis pela direção política, linha editorial e redação das principais matérias. Tal situação não excluía a colaboração dos homens de diversos modos. Exemplo: as belíssimas capas dos primeiros números do Brasil Mulher foram compostas com fotos de Chico Resende (fotógrafo londrino).
2- ARAÚJO, 2000, p. 159.
3- ARAÚJO, 2000, p. 160.
4- Em 1981, os dois jornais já não eram editados, mas a Associação das Mulheres (responsável pelas edições do Nós Mulheres) e a Sociedade Brasil Mulher continuam ativas no movimento e publicam, conjuntamente com o Centro da Mulher Brasileira, o texto "Controle da natalidade e planejamento familiar".
5- Grupo de mulheres brasileiras, exiladas e/ou que estudavam em Paris na época, que formaram um coletivo de discussão sobre o feminismo.
6- Minha participação no Brasil Mulher inicia-se no número 6, em 1976, e vai até o último número, editado em 1980. Fui eleita para o Conselho Editorial do Brasil Mulher na primeira eleição para a formação do Conselho após um racha no número 9, em 1977.
7- O jornal O Mulherio, que surge posteriormente aos dois jornais em estudo, em 1981,conta com o apoio financeiro da Fundação Ford e da Fundação Carlos Chagas, podendo assim ser considerado uma organização não-governamental.
8- Sader, 1985.
* Fonte: Revista Estudos Feministas
Este texto recupera a história dos primeiros jornais nacionais dirigidos às mulheres e feitos por mulheres (1) no período pós-1975: o Brasil Mulher e o Nós Mulheres. O surgimento desses jornais e os princípios por eles defendidos estão relacionados ao contexto histórico do país e ao movimento feminista nacional, destacando-se o compromisso com uma nova linguagem e com as reivindicações e propostas diretamente relacionadas com a condição das mulheres.
Inicialmente vale ressaltar que, durante os anos do governo militar, surgiu no Brasil um tipo de imprensa denominada democrática ou alternativa por uns, e, por outros, de imprensa nanica. Esses jornais, com formato tablóide e muitas vezes de tiragem irregular e circulação restrita, eram vendidos em bancas, porém a venda mais significativa ocorria no âmbito da militância. Tratava-se de uma imprensa com características de esquerda e de oposição ao regime, artesanal e comercializada, prioritariamente, mão a mão, ou seja, através da venda por militantes dos movimentos populares em eventos ou nas sedes das próprias organizações.
Essa imprensa era representada por jornais de vários tipos e de diferentes tendências políticas, entre os quais podemos citar Pasquim, Opinião, Movimento e Em Tempo, com posições e informações fundamentalmente políticas, e Versus, Ovelha Negra, Lampião e De Fato, com orientação cultural, sexual e ideológica.
Na fase de maior efervescência política e de abrandamento da censura, cresce essa imprensa alternativa e aparecem também dois jornais feministas em São Paulo: O Brasil Mulher e o Nós Mulheres. De acordo com Maria Paula Araújo, esses jornais feministas foram inovadores não apenas em termos de linguagem, de reivindicações e de propostas, mas também na forma de divulgar uma visão de mundo e uma nova concepção de política (2).
Se um dos caminhos da política alternativa era buscar unir público e privado; tornar político o que antes era considerado assunto pessoal, íntimo e subjetivo; levar em conta e politizar as emoções, sentimentos, relações pessoais e laços familiares; dar importância à transformação do cotidiano e às questões domésticas do dia-a-dia; falar de amor e sexo, de dor e frustração, de alegria e esperanças individuais, valorizando as experiências pessoais, o vivido, a troca dessas experiências - o movimento feminista e a sua imprensa são os melhores exemplos dessa concepção de política (3).
No período-pós 1975, o primeiro jornal dirigido às mulheres e feito por mulheres foi o Brasil Mulher, publicado pela Sociedade Brasil Mulher (foram 16 edições regulares e mais quatro denominadas "extras"), de 1975 a 1980. O segundo, Nós Mulheres, publicado pela Associação de Mulheres (4), teve oito edições, que circularam de 1976 a 1978. O fato de estarem vinculados a uma associação já mostra que esses jornais eram instrumentos de divulgação de coletivos de mulheres organizadas e, como tal, davam cobertura a assuntos não veiculados pela imprensa oficial, na época sob forte censura política, refletindo o pensamento político da militância feminista.
As feministas militantes do Brasil Mulher e do Nós Mulheres eram majoritariamente oriundas da esquerda, muitas das quais com passagem pela experiência da militância clandestina, da prisão, da tortura e/ou do exílio. Não foram, entretanto, diferenças profundas de concepção os motivos que as levaram a editar dois jornais e não apenas um, em uma mesma conjuntura, com tão poucos recursos financeiros e humanos.
É preciso recorrer a análises do período para levantar hipóteses sobre essa decisão das feministas, a meu ver muito próximas em suas concepções do feminismo e da política. É preciso entender bem um processo que pode ser explicado, em parte, pela tendência às cisões, o que constitui uma marca da atuação política da esquerda nesse período.
Para ilustrar tal afirmação, basta observar que o Brasil Mulher já era conhecido pelas feministas exiladas militantes do Círculo de Mulheres de Paris (5). A correspondência e o diálogo eram freqüentes entre a direção do jornal e o coletivo de mulheres exiladas, de onde se origina grande parte das militantes do Nós Mulheres. E, mais, o Brasil Mulher já era sabidamente, nessa época, constituído por mulheres militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), da Ação Popular Marxista Leninista (APML) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8).
Quanto ao Círculo de Mulheres de Paris, cabe dizer que era formado por feministas de esquerda integrantes, em sua maioria, do Debate, dissidência política que surge no exílio agrupando ex-militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e mulheres autônomas. Ao voltar ao Brasil, esse segmento lança o Nós Mulheres. É nesse ponto que, acreditamos, havia possibilidades reais de se constituir um único jornal feminista, se os dois grupos tivessem de fato uma postura plural, democrática e feminista.
As militantes que vão compor o coletivo do jornal Nós Mulheres, que voltam ao Brasil em meados de 1976, bem antes da Anistia, vinham decididas a editar um jornal feminista, de oposição, e que veiculasse as lutas sociais das mulheres. Preferiram garantir sua 'autonomia', fundando um jornal próprio, o Nós Mulheres, a se integrar no já existente Brasil Mulher, reproduzindo, desse modo, a heterodoxia tão presente nas organizações de esquerda.
O Brasil Mulher, por sua vez, temia as feministas que chegavam com muitas críticas à linha que havia adotado. As cisões na esquerda, nessa época, aconteciam na maioria das vezes não por motivos políticos fundamentados em concepções teóricas ou práticas mas por questões de personalismo, luta pelo poder entre grupos de uma mesma corrente política. Essa forma de lidar com as diferenças e com o poder caracteriza os processos políticos tradicionais e têm profundas raízes na forma como se exercita o poder burguês e machista nas sociedades patriarcais. Por isso era de se esperar uma postura diferente por parte de feministas dos dois jornais em estudo.
Outro dado importante é que os dois jornais surgiram no período denominado pós- luta armada (1978-1980), em que se inicia o processo de liberalização do Estado ditatorial, já com certo abrandamento da censura à imprensa e de crítica ao modelo tradicional de se fazer política. Há, nesse momento, uma grande ênfase nos assuntos ligados à subjetividade, ao indivíduo, o que sugere a politização do cotidiano entre as mulheres de esquerda, que buscam novas formas de expressão e mobilização, criticando severamente as relações verticalizadas, hierarquizadas e burocratizadas tão presentes na prática da esquerda tradicional.
O fato mais significativo nesse período é o início do processo de distensão política, a suspensão da censura direta à imprensa (1975), embora nas revistas, no rádio e na TV a censura direta ainda permanecesse. Por outro lado, o governo Geisel (1974-1979) deixa clara para todos sua intenção de não dispensar os instrumentos de exceção, sempre que fossem necessários para manter a estabilidade do governo militar.
Dentro dessa conjuntura, pergunto: como eram pautados os dois jornais feministas? Como eram financiadas suas edições? Qual era sua tiragem? Quem era o seu público e quem os editava? São essas as primeiras questões que nos ocorrem ao tomar contato com os jornais.
A minha experiência como membro do Conselho Editorial de um desses jornais - o Brasil Mulher (6) - permite observar que as pautas dos jornais alternativos feministas eram definidas em reuniões bem semelhantes às dos partidos clandestinos de esquerda, através de um acirrado debate político que envolvia a discussão de temas específicos e análises conjunturais e que podia durar dias. Processo semelhante era vivenciado nas eleições para compor os conselhos editoriais e as equipes de redação.
Os dois jornais enfrentaram 'rachas' em seus coletivos em conseqüência de tais discussões, que iam se tornando desgastantes com o passar do tempo e com a entrada de novas tendências políticas nas suas equipes. Isso propiciava o desenvolvimento das lutas internas e das crescentes disputas políticas. Pode-se perceber o recrudescimento desse fenômeno a cada novo número dos jornais, principalmente na leitura dos respectivos editoriais. (Mas vale lembrar que a última edição do Brasil Mulher tem um editorial elaborado e assumido conjuntamente pela Sociedade Brasil Mulher e pela Associação de Mulheres, a instituição responsável pela publicação do Nós Mulheres.) Não obstante as dificuldades, o crescimento pessoal, o companheirismo, a solidariedade e a amizade são sentimentos comuns que todas as ex-militantes dessa fase ressaltam em suas memórias, mesmo quando recordam criticamente as cisões.
Apesar de os jornais não terem tido uma existência longa, eles refletem um período histórico muito intenso e marcado por transformações rápidas e profundas. Nesse aspecto, 20 edições do Brasil Mulher e oito do Nós Mulheres, em dois anos, representam uma grande produção. A tiragem do Brasil Mulher era de 5 mil exemplares, mas houve números que saíram com 10 mil. O Nós Mulheres não divulgava sua tiragem.
De modo geral, a situação financeira dos jornais, durante toda sua existência, foi muito precária. É ilustrativo que o Brasil Mulher e o Nós Mulheres passem a publicar pequenas notas incentivando a colaboração mensal, com o objetivo de sensibilizar as leitoras para a necessidade de não só comprar e divulgar os jornais mas também de apoia-los financeiramente a partir do aumento do número de assinantes e daqueles colaboradores que o Brasil Mulher denominava de sócios honorários,que mensalmente colaboravam com uma quantia fixa.
Numa dessas notas o Brasil Mulher lembra que, como todos os jornais independentes que vivem basicamente da venda de seus exemplares e de assinaturas, o Brasil Mulher vinha sofrendo flutuações econômicas que se refletiam na sua periodicidade. O mesmo vinha acontecendo com o Nós Mulheres.
Naquela época, não existia ainda a prática, hoje tão disseminada, de apoio de fundações e outras organizações da sociedade civil, nacionais ou internacionais, a projetos de cunho social, como foi o caso do jornal O Mulherio, que já surgiu institucionalizado (7).
Tanto o Brasil Mulher quanto o Nós Mulheres também propagandeavam os demais órgãos da imprensa dita alternativa. Junto ao apelo por apoio financeiro, aparecia a seguinte chamada: "leia a imprensa democrática", seguida de uma lista com os nomes de 11 jornais alternativos, entre os quais De fato, Movimento, Pasquim, Revista do Henfil, Coojornal, Bagaço, Versus, Paca-Tatu, Cutia Não e Invasão. Vale ressaltar que o Nós Mulheres e o Brasil Mulher divulgavam um ao outro em chamamentos de apoio à imprensa alternativa.
Quanto aos temas divulgados, vale destacar que o jornal Brasil Mulher, desde o número 0, afirmava a especificidade da luta das mulheres pela sua emancipação, debatia um conjunto de questões teórico-práticas ligadas à explicação da dominação/exploração das mulheres e divulgava as teses sobre a superação da sociedade patriarcal. Por outro lado, posicionava-se sobre todos os fatos conjunturais em pauta na realidade brasileira pós-luta armada, em plena vigência da ditadura militar e da reorganização do movimento popular.
A periodicidade dos dois jornais sempre foi prejudicada pelas dificuldades econômicas que viviam ou pela própria dinâmica de seus coletivos, pois era muito difícil conciliar publicidade e objetivos de militância.
A leitura dos editoriais, das matérias assinadas e das reportagens, nos dois jornais, é uma das referências fundamentais para compreender o significado do movimento feminista e sua articulação com os movimentos operários e populares que emergem na década de 1970. Emir Sader afirma que o movimento social e o movimento popular e operário dessa época surgem com a marca da autonomia e da contestação à ordem estabelecida, articulado ao novo sindicalismo, que se pretendia independente do Estado e dos partidos políticos8.É, também, com a defesa da autonomia que surgem os jornais feministas. Mas o fato de os dois jornais contarem em seus coletivos com fortes influências de mulheres militantes de organizações clandestinas pode ter dificultado o exercício dessa autonomia.
As feministas põem os jornais a serviço da organização popular de mulheres da periferia das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, reivindicando direitos, superando a perspectiva de trocá-los por favores, avançando na prática para além da política reivindicatória dos bairros e da relação fisiológica e tutelar que caracterizava essa ação política no passado.
Esses novos sujeitos coletivos, as feministas, criam seu próprio espaço de representação e favorecem com sua militância o debate das questões relacionadas com o convívio familiar, a intimidade, a sexualidade e as relações de poder entre homens e mulheres, pais e filhos etc., introduzindo-as no movimento popular.
É importante marcar esta presença e o significado desta relação: mulheres que se auto-organizam nas periferias, em busca da garantia de direitos sociais, e as feministas preocupadas com a emancipação feminina, a discriminação, a sexualidade, o poder, reinventando uma nova forma de fazer política junto com a luta reivindicativa das classes populares. Só assim pode-se entender o papel desempenhado pelos jornais Brasil Mulher e Nós Mulheres nessa conjuntura.
São, também, femininas as primeiras vozes a clamar pela Anistia. No Brasil de 1975, em plena ditadura militar, o Brasil Mulher, em seu primeiro número, surge como porta-voz desse movimento. O editorial do número zero do jornal, publicado em 9 de outubro de 1975, ao esclarecer seus objetivos, principalmente em sua primeira frase, criará muita polêmica:
"O Brasil Mulher não é o Jornal da Mulher. Seu objetivo é ser mais uma voz na busca e na tomada da igualdade perdida. Trabalho que se destina a homens e mulheres. Não desejamos nos amparar nas diferenças biológicas para desfrutar de pequenos favores masculinos, ao mesmo tempo que o Estado, constituído de forma masculina, deixa-nos um lugar só comparado ao que é destinado por incapacidade de participação do débil mental."
Por outro lado, esse mesmo editorial deixa claro o caráter internacionalista do órgão:
"Queremos falar dos problemas que são comuns a todas as mulheres do mundo. Queremos falar também das soluções encontradas aqui e em lugares distantes; no entanto, queremos discuti-las em função de nossa realidade brasileira e latino-americana. A época do beicinho está definitivamente para trás, porque milhares de mulheres em todo o mundo fazem jornada dupla de trabalho, num esforço físico que faz com que uma jovem mãe de 30 anos pareça estar com mais de 50; mulheres que desejavam trabalhar e serem independentes economicamente de seus maridos..."
Esse editorial faz também a defesa de um feminismo da igualdade, mas que respeita as diferenças e explicita um conceito muito novo na época, o da equidade: "Queremos usar a inteligência, informação e conhecimentos em função da igualdade e, desde já, a propomos, como equidade entre homens e mulheres de qualquer latitude".
Mais adiante nesse mesmo editorial, o Brasil Mulher se alinha à imprensa alternativa e democrática, ao afirmar o seguinte: "Finalmente, Brasil Mulher deseja incorporar-se à imprensa democrática que, em meio a batalhas, o Brasil vê surgir".
E anuncia a pretensão de ser um jornal mensal: "Teremos um número mensal e a sustentação desta proposta de comunicação depende unicamente da participação daqueles que com ela se identificarem".
Já o editorial do número 1 do jornal Nós Mulheres, publicado em 1976, cujo título é "Quem somos?", inova principalmente na linguagem, quando utiliza a primeira pessoa do plural - o "Nós" do título -, que rompe com o tratamento dado às mulheres pela imprensa feminina tradicional, em que um editor impessoal e assexuado dita regras e 'aconselha' uma leitora chamada de "você, mulher". Nesse editorial a linguagem usada é pessoal, afetiva, e revela intimidade. Além disso, a sua leitura permite vislumbrar que o jornal é feito por um coletivo de mulheres com vivências comuns, ou melhor, feministas comprometidas com o que escrevem.
O editorial começa por denunciar a educação diferenciada entre meninos e meninas e o lugar que a sociedade patriarcal reserva às mulheres:
"Desde que nascemos, nós Mulheres, ouvimos em casa, na escola, no trabalho, na rua, em todos os lugares, que nossa função na vida é casar e ter filhos. Que Nós Mulheres não precisamos estudar nem trabalhar, pois isto é coisa para homem.Os próprios brinquedos da nossa infância já nos preparam para cumprir estas funções, que dizem ser a função natural da mulher: mãe e esposa. Nós meninas, devemos sempre andar limpinhas e brincar (de preferência dentro de casa) de boneca, de comidinha, de casinha. E os meninos podem andar sujos e brincar na rua, porque são moleques e porque devem ser preparar para tomar decisões, ganhar a vida e assumir a chefia da casa".
Fala sobre o aprendizado a que as mulheres são submetidas para viverem em função do homem: "Aprendemos também que devemos estar sempre preocupadas com nossa aparência física, que devemos ser dóceis, submissas e puras para podermos conseguir marido".
Fala também sobre as relações de trabalho e as desigualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho: "Quando vamos procurar um emprego, porque o salário do marido ou do pai não dá para, ou porque queremos sair um pouco da solidão das quatro paredes de uma casa, sempre encontramos mais dificuldades que o homem, porque somos mulheres".
Dirige-se a homens e mulheres no momento que conclama os homens a dividirem com suas mulheres as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos:
Queremos também que nossos companheiros reconheçam que a casa que moramos e os filhos que temos, são deles e que eles devem assumir junto conosco as responsabilidades caseiras e nossa luta por torná-las sociais. Mas não é só, Nós Mulheres queremos, junto com os homens lutar por uma sociedade mais justa, onde todos possam comer, estudar, trabalhar em trabalhos dignos, se divertir, ter onde morar, ter o que vestir e o que calçar.
E a lutarem todos, mulheres e homens, pela emancipação humana: "E por isto, não separamos a luta da mulher da luta de todos, homens e mulheres, pela sua emancipação".
Durante o tempo de sua existência, os dois jornais reafirmam constantemente sua identidade feminista, porém o fazem geralmente na defensiva, argumentando que o feminismo não separa a luta pela emancipação das mulheres da luta pela emancipação humana, que a luta das mulheres não é contra os homens, mas a favor de novas relações igualitárias etc.
Em seu número 6, o Nós Mulheres explicita claramente essa questão ao afirmar que "estamos sempre querendo mostrar que não somos contra os homens que não somos contra isso ou aquilo [...] ou seja dizemos o que não somos e o que não pensamos, mas não definimos claramente o que entendemos por emancipação feminina, por feminismo".
Finalizando essa apresentação sintética sobre as origens do Brasil Mulher e do Nós Mulheres, os quais estão sendo objeto de análises mais aprofundadas, relaciono abaixo os principais temas relativos à conjuntura e os temas específicos tratados nesses jornais durante sua existência.
Temas da conjuntura geral:
- Eleições (1976/1978);
- Movimento pela Anistia;
- Campanhas contra a carestia e por creches.
Temas específicos:
- Direitos da mulher no campo da reprodução: pílulas anticoncepcionais, planejamento familiar, sexualidade, aborto;
- Creche e organização popular de mulheres;
- A mulher e o trabalho: salários diferenciados, discriminação no cotidiano do trabalho, direitos trabalhistas, trabalho noturno, profissionalização para as mulheres etc.
- Violência doméstica.
Como vemos, a imprensa feminista representou um espaço de experimentação de uma forma muito especial de fazer política, refletindo sobre as descobertas das mulheres sobre si mesmas e sobre as idéias feministas que floresceram na década de 1970.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 70. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000.
BASTOS, Maria Bueno. Outras palavras, outras imagens: movimentos feministas na cidade de São Paulo nos anos 70/80. 1992. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher na imprensa feminina brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 1981.
_____. Imprensa feminina. São Paulo.Ática,1986.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta Editorial, 1991.
DEBÉRTOLIS, Karen Silva. Brasil Mulher: Joana Lopes e a imprensa alternativa feminista. 2002. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Informação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
MORAES, Maria Lígia Quartin de. Vinte anos de feminismo. 1996. Tese (Livre docência) - Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, Campinas.
BRASIL MULHER. São Paulo: Sociedade Brasil Mulher, n. 0, 9 out. 1975. Editorial.
NÓS MULHERES. São Paulo: Associação de Mulheres, n. 1, jun. 1976. Editorial.
NÓS MULHERES. São Paulo: Associação de Mulheres, n. 6, ago./set. 1977. Editorial.
SADER, Emir. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo - 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1985.
Notas de rodapé
1- Afirmar que os jornais são feitos por mulheres significa dizer que elas compõem os conselhos editoriais, sendo responsáveis pela direção política, linha editorial e redação das principais matérias. Tal situação não excluía a colaboração dos homens de diversos modos. Exemplo: as belíssimas capas dos primeiros números do Brasil Mulher foram compostas com fotos de Chico Resende (fotógrafo londrino).
2- ARAÚJO, 2000, p. 159.
3- ARAÚJO, 2000, p. 160.
4- Em 1981, os dois jornais já não eram editados, mas a Associação das Mulheres (responsável pelas edições do Nós Mulheres) e a Sociedade Brasil Mulher continuam ativas no movimento e publicam, conjuntamente com o Centro da Mulher Brasileira, o texto "Controle da natalidade e planejamento familiar".
5- Grupo de mulheres brasileiras, exiladas e/ou que estudavam em Paris na época, que formaram um coletivo de discussão sobre o feminismo.
6- Minha participação no Brasil Mulher inicia-se no número 6, em 1976, e vai até o último número, editado em 1980. Fui eleita para o Conselho Editorial do Brasil Mulher na primeira eleição para a formação do Conselho após um racha no número 9, em 1977.
7- O jornal O Mulherio, que surge posteriormente aos dois jornais em estudo, em 1981,conta com o apoio financeiro da Fundação Ford e da Fundação Carlos Chagas, podendo assim ser considerado uma organização não-governamental.
8- Sader, 1985.
* Fonte: Revista Estudos Feministas
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