Por Miguel do Rosário, no blog O Cafezinho:
Como responder a um desclassificado como Demétrio Magnoli, um ressentido que aluga sua pena para atacar, de maneira vil, um dos nomes mais estimados da ciência política contemporânea?
Uma das características mais belas da democracia é a liberdade para divergir, é a pluralidade infinita de pontos-de-vista. Quando esta é feita com elegância, representa talvez o momento mais importante de um regime democrático. O nosso modelo vem do fundador da filosofia moderna, Sócrates, que elogiava seus adversários antes de rebater, sempre de maneira refinada e respeitosa, ponto a ponto seus argumentos.
Infelizmente, a elegância socrática hoje se tornou obsoleta, e vemos os idiotas, como diria Nelson Rodrigues, perdendo a modéstia.
Wanderley Guilherme dos Santos não fez críticas ao conhecimento jurídico dos excelentíssimos ministros do Supremo Tribunal Federal (embora tivesse pleno direito de fazê-lo). Os ministros podem ser sumidades em direito constitucional, mas assim como isso não os torna especialistas em física quântica, também não os faz conhecedores do processos de alianças eleitorais ou pós-eleitorais, eleições, democracia, acordos políticos. Para Wanderley Guilherme, que já escreveu dezenas de livros sobre o tema, deve ser angustiante assistir aos juízes discorrerem sobre assuntos que não dominam e, pior, justificarem seu votos com isso.
Hoje no Globo me deparo com o seguinte comentário de Marco Aurélio Mello, um dos excelentíssimos:
A disputa por caixa é muito grande, e um partido não fortalece o outro, viabilizando, portando, uma melhor campanha eleitoral. A natureza em si, o antagonismo, afasta totalmente a possibilidade de um partido cobrir o caixa um do outro —disse Marco Aurélio ao ser perguntado sobre o trecho do processo relacionado à compra de votos, pouco antes do início da sessão.
O que Marco Aurélio sabe de acordos políticos, meu Deus? O Globo, para piorar, manipula as falas dos ministros para produzir títulos e subtítulos que correspondem a pré-julgamentos, e isso antes deles dizerem qualquer coisa no plenário do STF. Ou seja, há um julgamento em paralelo, na mídia, e com a participação dos próprios ministros, que o estimulam falando – pelos cotovelos – fora dos autos.
Mas voltemos às baixarias de Demétrio. Façamos aquele contraponto parágrafo por parágrafo. O texto de Magnoli vai em negrito, o meu em fonte normal. Se alguém reproduzir (o que eu agradeço), favor cuidar para manter os negritos. Não quero que confundam meu esforçado raciocínio com este lixo que sou obrigado a remexer.
A teoria política da corrupção
Chamarei esta minha resposta de A teoria política do pau mandado.
POR DEMÉTRIO MAGNOLI, em sua coluna semanal publicada no Globo e Estadao
Nos idos de 2005, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos formulou o discurso adotado pelo PT face ao escândalo do mensalão. O noticiário, ensinou, constituiria uma tentativa de “golpe das elites” contra o “governo popular” de Lula. Ano passado, o autor da tese assumiu a presidência da Casa de Rui Barbosa, cargo de confiança subordinado ao Ministério da Cultura. É nessa condição que, em entrevista ao jornal “Valor” (21/9), ele reativa sua linha de montagem de discursos “científicos” adaptados às conveniências do lulismo. Dessa vez, para crismar o julgamento do mensalão como “julgamento de exceção” conduzido por uma corte “pré-democrática”.
O texto inicia com uma baixaria típica de um medíocre invejoso e venal. Wanderley Guilherme, de fato, foi um dos primeiros intelectuais a detectar o golpezinho hondurenho que mídia e oposição estavam planejando por aqui em 2005. Sua tomada de posição foi assertiva, corajosa e oportuna, num momento em que todo mundo estava embaixo da cama, como deviam estar os intelectuais hondurenhos e paraguaios quando suas respectivas oposições, com apoio de seus respectivos tribunais superiores, derrubaram presidentes eleitos e populares. A mídia, naturalmente, não perdoa Wanderley, mas a História brasileira, a democracia latino-americana e, sobretudo, o povo, lhe são profundamente gratos. E com uma gratidão que não se paga com um emprego na Fundação Rui Barbosa, mas com um prestígio no panteão da história brasileira que um lacaio da direita golpista jamais entenderá.
A entrevista diz alguma coisa sobre o jornalismo do “Valor”. As perguntas não são indagações, no sentido preciso do termo, mas introduções propícias à exposição da tese do entrevistado — como se (oh, não, impossível!) jornalista e intelectual engajado preparassem o texto a quatro mãos. Mas a peça diz uma coisa mais importante sobre o tema do compromisso entre os intelectuais e o poder: o discurso científico sucumbe no pântano da fraude quando é rebaixado ao estatuto de ferramenta política de ocasião. Os ministros do STF narraram uma história de apropriação criminosa de recursos públicos e de fabricação de empréstimos fraudulentos pela direção do PT, que se utilizou para tanto das prerrogativas de quem detém o poder de Estado. Wanderley Guilherme, contudo, transita em universo paralelo, circundando o tema da origem do dinheiro e repetindo a versão desmoralizada da defesa. “O que os ministros expuseram até agora é a intimidade do caixa 2 de campanhas eleitorais (…). Isso eles se recusam a discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo comum (…), como se fosse algum projeto maligno.”
No melhor estilo “Serra”, o pau mandado agora passou recibo da razão de ser do artigo. Foi sobretudo um recado intimidatório ao Valor e a todos os empregados ligados de alguma forma às organizações Globo. Não brinquem de independentes. A linha nossa é bater no PT, sem tergiversação. A crítica de Magnoli ao Valor é uma ameaça explícita à independência do Valor e um ataque covarde a sua jornalista. A entrevista com Wanderley tinha como objetivo saber a opinião de um cientista político respeitado sobre um processo com profunda repercussão política. Ela não estava entrevistando um candidato a prefeito e, com isso, obrigada a ser “dura” ou “crítica”. Uma entrevista como a feita com Wanderley é do tipo que se deve deixar o entrevistado à vontade para dizer o que pensa, e fazer as perguntas certas para que ele exponha seus pontos-de-vista. Demétrio, de qualquer forma, apenas deturpa as palavras de Wanderley. Ele sequer as rebate.
Wanderley Guilherme não parece incomodado com a condenação dos operadores financeiros do esquema, mas interpreta os veredictos dos ministros contra os operadores políticos (ou seja: os dirigentes do PT) como frutos de um “desprezo aristocrático” à “política profissional”. O dinheiro desviado serviu para construir uma coalizão governista destituída de um mínimo de consenso político, explicou a maioria do STF. O cientista político, porém, atribui o diagnóstico a uma natureza “pré-democrática” de juízes incapazes de compreender tanto os defeitos da legislação eleitoral brasileira quanto o funcionamento dos “sistemas de representação proporcional”, que “são governados por coalizões das mais variadas”.
Vejam só o nível da crítica: “Wanderley não parece incomodado”. O petulante Magnoli, como aliás é frequente na literatura dos paus-mandados, presume saber o que Wanderley sente acerca dos operadores financeiros. Mais uma vez, ele não rebate, apenas recorta trechos da entrevista de Wanderley.
O núcleo do argumento serviria para a defesa de todo e qualquer “mensalão”. Os acusados tucanos do “mensalão mineiro” e os acusados do DEM do “mensalão de Brasília” estão tão amparados quanto os petistas por uma concepção da “política profissional” que invoca a democracia para justificar a fraude do sistema de representação popular e qualifica como aristocráticos os esforços para separar a esfera pública da esfera privada. A teoria política da corrupção formulada pelo intelectual deve ser lida como um manifesto em defesa de privilégios de impunidade judicial do conjunto da elite política brasileira.
Não serve nada. Cada caso é um caso. Wanderley não se aventura sequer a negar que tenham havido crimes de lavagem de dinheiro ou corrupção, passiva ou ativa, no escândalo do mensalão. Suas críticas são bem específicas em relação ao campo no qual ele é um expert com reconhecimento internacional: democracia, acordo político, financiamento de campanha. Partidos fazem acordos eleitorais sim. Há necessariamente, sempre, dinheiro envolvido, porque eleição envolve gastos. Mais uma vez, os paus mandados revelam que os barões da mídia tentam mostrar as entranhas do processo democrático como algo sujo. Se revelássemos as entranhas do jornalismo político brasileiro, acredito que o fedor seria infinitamente maior. A teoria política do pau mandado formulada por este pseudo-intelectual midiático deve ser lida como mais um gemido de desespero diante do declínio político dos partidos mais caros a nossos Citizen Kanes tupis.
Mas, obviamente, o argumento perde a força persuasiva se for lido como aquilo que, de fato, é. Para ocultar seu sentido, conferindo à obra uma coloração “progressista”, Wanderley Guilherme acrescenta-lhe uma camada de tinta fresca. A insurreição “aristocrática” do STF contra a “política democrática” derivaria da rejeição a uma novidade histórica: a irrupção da “política popular de mobilização”, representada pelo PT. A corte suprema estaria “reagindo à democracia em ação” por meio de um “julgamento de exceção”, um evento singular que “jamais vai acontecer de novo”.
Porque Demétrio não publicou logo a íntegra do artigo de Wanderley? É ridículo ficar pinçando frases desse jeito.
É nesse ponto do raciocínio que a teoria política da corrupção se transforma na corrupção da teoria política. Uma regra inviolável do discurso científico, explicou Karl Popper, é a exigência de consistência interna. Um discurso só tem estatuto científico se está aberto a argumentos racionais contrários.
Opa, agora Demétrio, finalmente, parece que vai rebater. Vamos ver.
Quando apela à profecia de que os tribunais não julgarão outros casos com base na jurisprudência estabelecida nos veredictos do mensalão, Wanderley Guilherme embrenha-se pela vereda da fraude científica. A sua hipótese sobre o futuro — que, logicamente, não pode ser confirmada ou falseada — impede a aplicação do teste de Popper.
Putz! Demétrio agora, ele sim, cometeu uma fraudezinha chinfrim. Pega uma opinião descontextualizada de Wanderley, e que não passa disso, de uma opinião política, um comentário dado a uma jornalista, e tenta convertê-lo numa profecia futurística? Com todo respeito, Magnoli, você é uma anta.
Há duas leituras contrastantes, ambas coerentes, sobre o “mensalão do PT”. A primeira acusa o partido de agir “como os outros”, entregando-se às práticas convencionais da tradição patrimonial brasileira e levando-as a consequências extremas. O diagnóstico, uma “crítica pela esquerda”, interpreta o extenso arco de alianças organizado pelo lulismo como fonte de corrupção e atestado da falência da natureza transformadora do PT. A segunda acusa o partido de operar, sob o impulso de um projeto de poder autoritário, com a finalidade de quebrar os contrapesos parlamentares ao Executivo e perpetuar-se no governo. A “crítica pela direita” distingue o “mensalão do PT” de outros casos de corrupção política, enfatizando o caráter centralizado e as metas de longo prazo do conjunto da operação.
O parágrafo começa estabelecendo, peremptoriamente, que existem duas “leituras” sobre o mensalão do PT. Ora, qual o oráculo que assim decretou? Não podem ser três, quatro, nove teorias? Na verdade, Demétrio expõe unicamente as teorias que lhe convém.
A leitura corrompida de Wanderley Guilherme forma uma curiosa alternativa às duas interpretações. Seu núcleo é uma celebração da corrupção inerente à política patrimonial tradicional, que seria a “política profissional” nos “sistemas de representação proporcional”. Seu verniz aparente, por outro lado, é um elogio exclusivo da corrupção petista, que expressaria a “irrupção da política de mobilização popular” e a “democracia em ação”. Na fronteira onde o pensamento acadêmico se conecta com a empulhação militante, o paradoxo pode até ser batizado como dialética. Contudo, mais apropriado é reconhecê-lo como um reflexo especular da fotografia na qual Paulo Maluf e Lula da Silva reelaboram os significados dos termos “direita” e “esquerda”.
Demétrio Magnoli representa, ele sim, a fronteira entre a submissão covarde à direita midiática golpista e a corrupção intelectual e ideológica que a acompanha. Ele não entende nada de patrimonialismo, nem de representação proporcional, nem de democracia. Seu texto é uma tentativa patética de distorcer as palavras do cientista político mais brilhante do nosso tempo, que reúne qualidades raras num intelectual: fina sensibilidade, intuição política aguçada e erudição esmagadora. Até dá para entender que um escriba de quinta grandeza como Demétrio se roa de inveja de um pensador como Wanderley Guilherme dos Santos, com suas dezenas de livros premiados e estudados no mundo inteiro, e que, mesmo assim, mesmo realizado profissionalmente, ainda tenha disposição de entrar no campo minado das polêmicas políticas e dar uma opinião contrária ao discurso dominante na mídia. Dá para entender, e desprezar. Ele conclui o artigo de maneira que deve ter lhe parecido brilhante: mencionar a polêmica foto em que Lula e Maluf fecham um acordo eleitoral para ampliar o tempo de TV de Haddad em São Paulo. Wanderley explica, em sua entrevista, que o partido de esquerda da Suécia se manteve no poder, por mais de trinta anos, através de uma aliança com uma legenda conservadora, e conseguiu transformar o país num dos regimes políticos mais avançados do mundo. Alianças políticas, no mundo inteiro, são feitas entre forças diferentes. O governo colombiano, conservador, acaba de fechar acordo com as Farcs, marxistas revolucionárias. Churchill ganhou a II Guerra após fechar uma aliança com seu maior adversário ideológico, Stálin. Se foi para derrotar o ultraconservadorismo tucano, o partido golpista da imprensa, e seus escribas lacaios, Lula agiu certo. E se o mais agressivo dos pitbulls da mídia recebe a missão de atacar o nome mais querido da ciência política brasileira, é porque Wanderley Guilherme dos Santos, assim como 1962 e depois em 2005, fez uma análise precisa e devastadora. Diferentemente do que aconteceu em 1962, quando suas advertências não foram ouvidas, hoje as palavras de Wanderley se espalham pelo país como um rastilho de pólvora, incendiando a verdadeira opinião pública, não aquela das cartinhas selecionadas, com o fogo de uma indignação fria, objetiva, terrível. A resposta às suas baixarias, senhor Magnoli, não virá do professor Wanderley. Virá – com um estrondo ensurdecedor – das urnas!
Como responder a um desclassificado como Demétrio Magnoli, um ressentido que aluga sua pena para atacar, de maneira vil, um dos nomes mais estimados da ciência política contemporânea?
Uma das características mais belas da democracia é a liberdade para divergir, é a pluralidade infinita de pontos-de-vista. Quando esta é feita com elegância, representa talvez o momento mais importante de um regime democrático. O nosso modelo vem do fundador da filosofia moderna, Sócrates, que elogiava seus adversários antes de rebater, sempre de maneira refinada e respeitosa, ponto a ponto seus argumentos.
Infelizmente, a elegância socrática hoje se tornou obsoleta, e vemos os idiotas, como diria Nelson Rodrigues, perdendo a modéstia.
Wanderley Guilherme dos Santos não fez críticas ao conhecimento jurídico dos excelentíssimos ministros do Supremo Tribunal Federal (embora tivesse pleno direito de fazê-lo). Os ministros podem ser sumidades em direito constitucional, mas assim como isso não os torna especialistas em física quântica, também não os faz conhecedores do processos de alianças eleitorais ou pós-eleitorais, eleições, democracia, acordos políticos. Para Wanderley Guilherme, que já escreveu dezenas de livros sobre o tema, deve ser angustiante assistir aos juízes discorrerem sobre assuntos que não dominam e, pior, justificarem seu votos com isso.
Hoje no Globo me deparo com o seguinte comentário de Marco Aurélio Mello, um dos excelentíssimos:
A disputa por caixa é muito grande, e um partido não fortalece o outro, viabilizando, portando, uma melhor campanha eleitoral. A natureza em si, o antagonismo, afasta totalmente a possibilidade de um partido cobrir o caixa um do outro —disse Marco Aurélio ao ser perguntado sobre o trecho do processo relacionado à compra de votos, pouco antes do início da sessão.
O que Marco Aurélio sabe de acordos políticos, meu Deus? O Globo, para piorar, manipula as falas dos ministros para produzir títulos e subtítulos que correspondem a pré-julgamentos, e isso antes deles dizerem qualquer coisa no plenário do STF. Ou seja, há um julgamento em paralelo, na mídia, e com a participação dos próprios ministros, que o estimulam falando – pelos cotovelos – fora dos autos.
Mas voltemos às baixarias de Demétrio. Façamos aquele contraponto parágrafo por parágrafo. O texto de Magnoli vai em negrito, o meu em fonte normal. Se alguém reproduzir (o que eu agradeço), favor cuidar para manter os negritos. Não quero que confundam meu esforçado raciocínio com este lixo que sou obrigado a remexer.
A teoria política da corrupção
Chamarei esta minha resposta de A teoria política do pau mandado.
POR DEMÉTRIO MAGNOLI, em sua coluna semanal publicada no Globo e Estadao
Nos idos de 2005, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos formulou o discurso adotado pelo PT face ao escândalo do mensalão. O noticiário, ensinou, constituiria uma tentativa de “golpe das elites” contra o “governo popular” de Lula. Ano passado, o autor da tese assumiu a presidência da Casa de Rui Barbosa, cargo de confiança subordinado ao Ministério da Cultura. É nessa condição que, em entrevista ao jornal “Valor” (21/9), ele reativa sua linha de montagem de discursos “científicos” adaptados às conveniências do lulismo. Dessa vez, para crismar o julgamento do mensalão como “julgamento de exceção” conduzido por uma corte “pré-democrática”.
O texto inicia com uma baixaria típica de um medíocre invejoso e venal. Wanderley Guilherme, de fato, foi um dos primeiros intelectuais a detectar o golpezinho hondurenho que mídia e oposição estavam planejando por aqui em 2005. Sua tomada de posição foi assertiva, corajosa e oportuna, num momento em que todo mundo estava embaixo da cama, como deviam estar os intelectuais hondurenhos e paraguaios quando suas respectivas oposições, com apoio de seus respectivos tribunais superiores, derrubaram presidentes eleitos e populares. A mídia, naturalmente, não perdoa Wanderley, mas a História brasileira, a democracia latino-americana e, sobretudo, o povo, lhe são profundamente gratos. E com uma gratidão que não se paga com um emprego na Fundação Rui Barbosa, mas com um prestígio no panteão da história brasileira que um lacaio da direita golpista jamais entenderá.
A entrevista diz alguma coisa sobre o jornalismo do “Valor”. As perguntas não são indagações, no sentido preciso do termo, mas introduções propícias à exposição da tese do entrevistado — como se (oh, não, impossível!) jornalista e intelectual engajado preparassem o texto a quatro mãos. Mas a peça diz uma coisa mais importante sobre o tema do compromisso entre os intelectuais e o poder: o discurso científico sucumbe no pântano da fraude quando é rebaixado ao estatuto de ferramenta política de ocasião. Os ministros do STF narraram uma história de apropriação criminosa de recursos públicos e de fabricação de empréstimos fraudulentos pela direção do PT, que se utilizou para tanto das prerrogativas de quem detém o poder de Estado. Wanderley Guilherme, contudo, transita em universo paralelo, circundando o tema da origem do dinheiro e repetindo a versão desmoralizada da defesa. “O que os ministros expuseram até agora é a intimidade do caixa 2 de campanhas eleitorais (…). Isso eles se recusam a discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo comum (…), como se fosse algum projeto maligno.”
No melhor estilo “Serra”, o pau mandado agora passou recibo da razão de ser do artigo. Foi sobretudo um recado intimidatório ao Valor e a todos os empregados ligados de alguma forma às organizações Globo. Não brinquem de independentes. A linha nossa é bater no PT, sem tergiversação. A crítica de Magnoli ao Valor é uma ameaça explícita à independência do Valor e um ataque covarde a sua jornalista. A entrevista com Wanderley tinha como objetivo saber a opinião de um cientista político respeitado sobre um processo com profunda repercussão política. Ela não estava entrevistando um candidato a prefeito e, com isso, obrigada a ser “dura” ou “crítica”. Uma entrevista como a feita com Wanderley é do tipo que se deve deixar o entrevistado à vontade para dizer o que pensa, e fazer as perguntas certas para que ele exponha seus pontos-de-vista. Demétrio, de qualquer forma, apenas deturpa as palavras de Wanderley. Ele sequer as rebate.
Wanderley Guilherme não parece incomodado com a condenação dos operadores financeiros do esquema, mas interpreta os veredictos dos ministros contra os operadores políticos (ou seja: os dirigentes do PT) como frutos de um “desprezo aristocrático” à “política profissional”. O dinheiro desviado serviu para construir uma coalizão governista destituída de um mínimo de consenso político, explicou a maioria do STF. O cientista político, porém, atribui o diagnóstico a uma natureza “pré-democrática” de juízes incapazes de compreender tanto os defeitos da legislação eleitoral brasileira quanto o funcionamento dos “sistemas de representação proporcional”, que “são governados por coalizões das mais variadas”.
Vejam só o nível da crítica: “Wanderley não parece incomodado”. O petulante Magnoli, como aliás é frequente na literatura dos paus-mandados, presume saber o que Wanderley sente acerca dos operadores financeiros. Mais uma vez, ele não rebate, apenas recorta trechos da entrevista de Wanderley.
O núcleo do argumento serviria para a defesa de todo e qualquer “mensalão”. Os acusados tucanos do “mensalão mineiro” e os acusados do DEM do “mensalão de Brasília” estão tão amparados quanto os petistas por uma concepção da “política profissional” que invoca a democracia para justificar a fraude do sistema de representação popular e qualifica como aristocráticos os esforços para separar a esfera pública da esfera privada. A teoria política da corrupção formulada pelo intelectual deve ser lida como um manifesto em defesa de privilégios de impunidade judicial do conjunto da elite política brasileira.
Não serve nada. Cada caso é um caso. Wanderley não se aventura sequer a negar que tenham havido crimes de lavagem de dinheiro ou corrupção, passiva ou ativa, no escândalo do mensalão. Suas críticas são bem específicas em relação ao campo no qual ele é um expert com reconhecimento internacional: democracia, acordo político, financiamento de campanha. Partidos fazem acordos eleitorais sim. Há necessariamente, sempre, dinheiro envolvido, porque eleição envolve gastos. Mais uma vez, os paus mandados revelam que os barões da mídia tentam mostrar as entranhas do processo democrático como algo sujo. Se revelássemos as entranhas do jornalismo político brasileiro, acredito que o fedor seria infinitamente maior. A teoria política do pau mandado formulada por este pseudo-intelectual midiático deve ser lida como mais um gemido de desespero diante do declínio político dos partidos mais caros a nossos Citizen Kanes tupis.
Mas, obviamente, o argumento perde a força persuasiva se for lido como aquilo que, de fato, é. Para ocultar seu sentido, conferindo à obra uma coloração “progressista”, Wanderley Guilherme acrescenta-lhe uma camada de tinta fresca. A insurreição “aristocrática” do STF contra a “política democrática” derivaria da rejeição a uma novidade histórica: a irrupção da “política popular de mobilização”, representada pelo PT. A corte suprema estaria “reagindo à democracia em ação” por meio de um “julgamento de exceção”, um evento singular que “jamais vai acontecer de novo”.
Porque Demétrio não publicou logo a íntegra do artigo de Wanderley? É ridículo ficar pinçando frases desse jeito.
É nesse ponto do raciocínio que a teoria política da corrupção se transforma na corrupção da teoria política. Uma regra inviolável do discurso científico, explicou Karl Popper, é a exigência de consistência interna. Um discurso só tem estatuto científico se está aberto a argumentos racionais contrários.
Opa, agora Demétrio, finalmente, parece que vai rebater. Vamos ver.
Quando apela à profecia de que os tribunais não julgarão outros casos com base na jurisprudência estabelecida nos veredictos do mensalão, Wanderley Guilherme embrenha-se pela vereda da fraude científica. A sua hipótese sobre o futuro — que, logicamente, não pode ser confirmada ou falseada — impede a aplicação do teste de Popper.
Putz! Demétrio agora, ele sim, cometeu uma fraudezinha chinfrim. Pega uma opinião descontextualizada de Wanderley, e que não passa disso, de uma opinião política, um comentário dado a uma jornalista, e tenta convertê-lo numa profecia futurística? Com todo respeito, Magnoli, você é uma anta.
Há duas leituras contrastantes, ambas coerentes, sobre o “mensalão do PT”. A primeira acusa o partido de agir “como os outros”, entregando-se às práticas convencionais da tradição patrimonial brasileira e levando-as a consequências extremas. O diagnóstico, uma “crítica pela esquerda”, interpreta o extenso arco de alianças organizado pelo lulismo como fonte de corrupção e atestado da falência da natureza transformadora do PT. A segunda acusa o partido de operar, sob o impulso de um projeto de poder autoritário, com a finalidade de quebrar os contrapesos parlamentares ao Executivo e perpetuar-se no governo. A “crítica pela direita” distingue o “mensalão do PT” de outros casos de corrupção política, enfatizando o caráter centralizado e as metas de longo prazo do conjunto da operação.
O parágrafo começa estabelecendo, peremptoriamente, que existem duas “leituras” sobre o mensalão do PT. Ora, qual o oráculo que assim decretou? Não podem ser três, quatro, nove teorias? Na verdade, Demétrio expõe unicamente as teorias que lhe convém.
A leitura corrompida de Wanderley Guilherme forma uma curiosa alternativa às duas interpretações. Seu núcleo é uma celebração da corrupção inerente à política patrimonial tradicional, que seria a “política profissional” nos “sistemas de representação proporcional”. Seu verniz aparente, por outro lado, é um elogio exclusivo da corrupção petista, que expressaria a “irrupção da política de mobilização popular” e a “democracia em ação”. Na fronteira onde o pensamento acadêmico se conecta com a empulhação militante, o paradoxo pode até ser batizado como dialética. Contudo, mais apropriado é reconhecê-lo como um reflexo especular da fotografia na qual Paulo Maluf e Lula da Silva reelaboram os significados dos termos “direita” e “esquerda”.
Demétrio Magnoli representa, ele sim, a fronteira entre a submissão covarde à direita midiática golpista e a corrupção intelectual e ideológica que a acompanha. Ele não entende nada de patrimonialismo, nem de representação proporcional, nem de democracia. Seu texto é uma tentativa patética de distorcer as palavras do cientista político mais brilhante do nosso tempo, que reúne qualidades raras num intelectual: fina sensibilidade, intuição política aguçada e erudição esmagadora. Até dá para entender que um escriba de quinta grandeza como Demétrio se roa de inveja de um pensador como Wanderley Guilherme dos Santos, com suas dezenas de livros premiados e estudados no mundo inteiro, e que, mesmo assim, mesmo realizado profissionalmente, ainda tenha disposição de entrar no campo minado das polêmicas políticas e dar uma opinião contrária ao discurso dominante na mídia. Dá para entender, e desprezar. Ele conclui o artigo de maneira que deve ter lhe parecido brilhante: mencionar a polêmica foto em que Lula e Maluf fecham um acordo eleitoral para ampliar o tempo de TV de Haddad em São Paulo. Wanderley explica, em sua entrevista, que o partido de esquerda da Suécia se manteve no poder, por mais de trinta anos, através de uma aliança com uma legenda conservadora, e conseguiu transformar o país num dos regimes políticos mais avançados do mundo. Alianças políticas, no mundo inteiro, são feitas entre forças diferentes. O governo colombiano, conservador, acaba de fechar acordo com as Farcs, marxistas revolucionárias. Churchill ganhou a II Guerra após fechar uma aliança com seu maior adversário ideológico, Stálin. Se foi para derrotar o ultraconservadorismo tucano, o partido golpista da imprensa, e seus escribas lacaios, Lula agiu certo. E se o mais agressivo dos pitbulls da mídia recebe a missão de atacar o nome mais querido da ciência política brasileira, é porque Wanderley Guilherme dos Santos, assim como 1962 e depois em 2005, fez uma análise precisa e devastadora. Diferentemente do que aconteceu em 1962, quando suas advertências não foram ouvidas, hoje as palavras de Wanderley se espalham pelo país como um rastilho de pólvora, incendiando a verdadeira opinião pública, não aquela das cartinhas selecionadas, com o fogo de uma indignação fria, objetiva, terrível. A resposta às suas baixarias, senhor Magnoli, não virá do professor Wanderley. Virá – com um estrondo ensurdecedor – das urnas!
2 comentários:
O artigo do Magnoli atacando O Wanderley lembra-me um vira-lata acuando em volta de um animal maior para chamar a atenção.
Altamiro, carregue a cruz com classe, irmão.
Se ninguém criticar um imbecil como esse, é capaz de acreditarem que tem fundamento o que ele escreve
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