Por Júlio Delmanto, na revista Teoria e Debate:
“O proibicionismo infringe garantias fundamentais previstas na Constituição da República, corrompe todas as esferas da sociedade, impede a pesquisa, interdita o debate e intoxica o pensamento coletivo.” Expressa em carta assinada por centenas de especialistas na questão das drogas, essa foi uma das principais conclusões de um congresso internacional sobre o tema realizado no início de maio em Brasília. O documento, entregue aos Três Poderes e à presidenta Dilma, conclui que legalizar, regulamentar e taxar todas as drogas, “priorizando a redução de riscos e danos, anistiando infratores de crimes não violentos e investindo em emprego, educação, saúde, moradia, cultura e esporte” é a única saída capaz “de acabar efetivamente com o tráfico, com a violência e com as mortes de nossos jovens. É um imperativo ético e científico de nosso tempo, em defesa da razão e da vida humana”.
E não é apenas no campo da ciência que conclusões como essas caminham para um consenso em torno da falência da guerra às drogas e da necessidade urgente de mudar a forma como o Estado brasileiro lida com esse consumo de tão alta demanda. Desde a mídia mais alternativa a órgãos tradicionalmente ligados ao conservadorismo como a Folha de S. Paulo e O Globo, passando por políticos tucanos, petistas, da esquerda, trabalhadores da saúde e do direito e até mesmo setores religiosos, esse entendimento tem crescido de maneira notável na sociedade. Consolidada na agenda política nacional, a Marcha da Maconha também pauta a questão de maneira cada vez mais frequente, incisiva e – por que não? – incontornável.
O problema é que, ainda que não tenham argumentos nem os movimentos sociais a seu lado, os proibicionistas contam com bastante poder e visibilidade. Tem sido forte seu contra-ataque à reação dos descontentes com o status quo que demoniza algumas drogas enquanto venera outras. Mesmo no governo federal, há tempos que a ministra Gleisi Hoffman vem trabalhando para que clínicas supostamente terapêuticas recebam dinheiro público para manter seus trabalhos intolerantes com a não religiosidade e com os direitos humanos. Suas demandas articularam-se com o projeto de lei apresentado em 2010 pelo deputado médico Osmar Terra (PMDB-RS), representante clássico do autoritarismo de determinado discurso médico excludente e, no limite, higienista.
O PL nº 7663/10, aprovado a Câmara dos Deputados e que tramita agora no Senado (PLC nº 37/2013), previa em sua versão inicial uma diferenciação arbitrária entre as substâncias ilícitas; o aumento de cinco para oito anos da pena mínima de tráfico, tornando esse “crime sem vítimas” mais grave que homicídio; a destinação de verba do SUS para entidades terapêuticas; e a internação compulsória como a principal forma de tratar a questão do uso problemático de drogas ilícitas. A pena para tráfico ainda – pode ser aumentada em dois terços e atingir até 25 anos caso envolva “mistura de drogas” que potencializem “o risco de dependência”, estabelecido sabe-se lá por quais critérios – afinal, qualquer estudo sério mostra que a substância com maior potencial de dependência é o tabaco, e não se vê muita gente defendendo encarceramento e assassinato de vendedores de cigarro.
A Lei nº 11.343 em vigor já é draconiana, quando enquadra o comércio de drogas tornadas ilícitas na definição de “crime hediondo”, o que impede, por exemplo, o acusado dessa conduta de responder ao processo em liberdade. Pode passar dois ou três anos preso até provar a inocência. Com isso, o comércio de substâncias cujo consumo não mais representa um crime passível de prisão já é a infração penal que mais encarcera pessoas no Brasil. Aumentar a pena num contexto de flagrante superpopulação e superviolação de direitos humanos nas prisões brasileiras é “fazer o diabo sorrir”, como diz um rap dos Racionais MC’s.
Paralelamente, a principal agenda que sustenta a viabilidade política da aprovação desse PL é econômica, revestida de roupagem religiosa. A força e a expansão das chamadas comunidades terapêuticas constituem no momento o grande adversário das conquistas levadas a cabo pelo movimento da luta antimanicomial, e seu lobby por verbas públicas é uma ameaça à saúde pública e ao controle social das políticas públicas. Além disso, são invariavelmente ilegais e imorais as condições desses modernos “chiqueiros psiquiátricos”, como definia Austregésilo Carrano, um dos maiores militantes da luta antimanicomial nos anos 1970, e como demonstra claramente um relatório produzido pelo Conselho Federal de Psicologia, que fiscalizou 64 dessas comunidades ao redor do país, com apoio do Ministério Público. Foram constatadas violações de direitos humanos em todas elas: violação de correspondência, ausência de capacitação e mesmo de profissionais de saúde, medicalização, desvio de auxílios públicos recebidos pelos pacientes, exigência inconstitucional de exames, revista vexatória em parentes, trabalhos forçados, religião forçada, torturas – a lista de absurdos é tão extensa quanto pouco coibida.
Por fim, o projeto de lei dialoga com diversas iniciativas explicitamente higienistas, como as ações de internação compulsória em massa empreendidas pelo governo da cidade do Rio de Janeiro e propagandeadas, mas não tão implementadas, pelo governo estadual paulista. Fetichizado como se fora dotado de propriedades demoníacas, e não uma substância que, como todas as outras, têm seus efeitos condicionados por suas formas de uso, o crack tem se tornado cada vez mais o bode expiatório perfeito para justificar e viabilizar poderosos (e escusos) interesses políticos e econômicos sedentos pela privatização dos espaços públicos e do Estado.
Mas o chamado movimento antiproibicionista tem se consolidado e ampliado, e sua reação a esse projeto de lei foi imediata e firme. Até mesmo um grupo de mais cem evangélicos do país inteiro emitiu nota em protesto. O governo federal parece ter cedido em alguns pontos a seus setores menos conservadores, como o Ministério da Saúde, e agora sinaliza, como o relator do PL, com um acordo que atenua alguns dos pontos mais bizarros do projeto, como o que se refere à internação compulsória e ao denuncismo estimulado no âmbito escolar, mas mantém aberto o caminho das verbas públicas para as instituições privadas e a possibilidade de aumento da pena para acusados de tráfico. E isso antes de passar pelo Congresso, onde há donos de comunidades terapêuticas exercendo mandato, como o ilustre deputado Marcos Feliciano, dono da Casa de Recuperação Ressuscita em Cristo, no Gama, cidade-satélite de Brasília.
Desse modo, mais do que buscar atenuar algumas mazelas do PL nº 7663/10, é preciso combatê-lo em sua totalidade, identificando-o como representante de uma mentalidade que só traz retrocesso e efeitos sociais nefastos que recairão, principalmente, nas camadas mais vulneráveis da população. Sua aprovação representa graves riscos aos já tão maltratados direitos humanos em nosso país. É preciso um posicionamento firme contra essa situação por parte de todos que acreditam na justiça social e na democracia. Como diz o lema do Dia da Luta Antimanicomial deste ano, “se não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir”.
* Júlio Delmanto é jornalista, mestre em História Social pela USP. Pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip), membro do Coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR) e um dos organizadores da Marcha da Maconha SP e da Frente Nacional Drogas e Direitos Humanos.
“O proibicionismo infringe garantias fundamentais previstas na Constituição da República, corrompe todas as esferas da sociedade, impede a pesquisa, interdita o debate e intoxica o pensamento coletivo.” Expressa em carta assinada por centenas de especialistas na questão das drogas, essa foi uma das principais conclusões de um congresso internacional sobre o tema realizado no início de maio em Brasília. O documento, entregue aos Três Poderes e à presidenta Dilma, conclui que legalizar, regulamentar e taxar todas as drogas, “priorizando a redução de riscos e danos, anistiando infratores de crimes não violentos e investindo em emprego, educação, saúde, moradia, cultura e esporte” é a única saída capaz “de acabar efetivamente com o tráfico, com a violência e com as mortes de nossos jovens. É um imperativo ético e científico de nosso tempo, em defesa da razão e da vida humana”.
E não é apenas no campo da ciência que conclusões como essas caminham para um consenso em torno da falência da guerra às drogas e da necessidade urgente de mudar a forma como o Estado brasileiro lida com esse consumo de tão alta demanda. Desde a mídia mais alternativa a órgãos tradicionalmente ligados ao conservadorismo como a Folha de S. Paulo e O Globo, passando por políticos tucanos, petistas, da esquerda, trabalhadores da saúde e do direito e até mesmo setores religiosos, esse entendimento tem crescido de maneira notável na sociedade. Consolidada na agenda política nacional, a Marcha da Maconha também pauta a questão de maneira cada vez mais frequente, incisiva e – por que não? – incontornável.
O problema é que, ainda que não tenham argumentos nem os movimentos sociais a seu lado, os proibicionistas contam com bastante poder e visibilidade. Tem sido forte seu contra-ataque à reação dos descontentes com o status quo que demoniza algumas drogas enquanto venera outras. Mesmo no governo federal, há tempos que a ministra Gleisi Hoffman vem trabalhando para que clínicas supostamente terapêuticas recebam dinheiro público para manter seus trabalhos intolerantes com a não religiosidade e com os direitos humanos. Suas demandas articularam-se com o projeto de lei apresentado em 2010 pelo deputado médico Osmar Terra (PMDB-RS), representante clássico do autoritarismo de determinado discurso médico excludente e, no limite, higienista.
O PL nº 7663/10, aprovado a Câmara dos Deputados e que tramita agora no Senado (PLC nº 37/2013), previa em sua versão inicial uma diferenciação arbitrária entre as substâncias ilícitas; o aumento de cinco para oito anos da pena mínima de tráfico, tornando esse “crime sem vítimas” mais grave que homicídio; a destinação de verba do SUS para entidades terapêuticas; e a internação compulsória como a principal forma de tratar a questão do uso problemático de drogas ilícitas. A pena para tráfico ainda – pode ser aumentada em dois terços e atingir até 25 anos caso envolva “mistura de drogas” que potencializem “o risco de dependência”, estabelecido sabe-se lá por quais critérios – afinal, qualquer estudo sério mostra que a substância com maior potencial de dependência é o tabaco, e não se vê muita gente defendendo encarceramento e assassinato de vendedores de cigarro.
A Lei nº 11.343 em vigor já é draconiana, quando enquadra o comércio de drogas tornadas ilícitas na definição de “crime hediondo”, o que impede, por exemplo, o acusado dessa conduta de responder ao processo em liberdade. Pode passar dois ou três anos preso até provar a inocência. Com isso, o comércio de substâncias cujo consumo não mais representa um crime passível de prisão já é a infração penal que mais encarcera pessoas no Brasil. Aumentar a pena num contexto de flagrante superpopulação e superviolação de direitos humanos nas prisões brasileiras é “fazer o diabo sorrir”, como diz um rap dos Racionais MC’s.
Paralelamente, a principal agenda que sustenta a viabilidade política da aprovação desse PL é econômica, revestida de roupagem religiosa. A força e a expansão das chamadas comunidades terapêuticas constituem no momento o grande adversário das conquistas levadas a cabo pelo movimento da luta antimanicomial, e seu lobby por verbas públicas é uma ameaça à saúde pública e ao controle social das políticas públicas. Além disso, são invariavelmente ilegais e imorais as condições desses modernos “chiqueiros psiquiátricos”, como definia Austregésilo Carrano, um dos maiores militantes da luta antimanicomial nos anos 1970, e como demonstra claramente um relatório produzido pelo Conselho Federal de Psicologia, que fiscalizou 64 dessas comunidades ao redor do país, com apoio do Ministério Público. Foram constatadas violações de direitos humanos em todas elas: violação de correspondência, ausência de capacitação e mesmo de profissionais de saúde, medicalização, desvio de auxílios públicos recebidos pelos pacientes, exigência inconstitucional de exames, revista vexatória em parentes, trabalhos forçados, religião forçada, torturas – a lista de absurdos é tão extensa quanto pouco coibida.
Por fim, o projeto de lei dialoga com diversas iniciativas explicitamente higienistas, como as ações de internação compulsória em massa empreendidas pelo governo da cidade do Rio de Janeiro e propagandeadas, mas não tão implementadas, pelo governo estadual paulista. Fetichizado como se fora dotado de propriedades demoníacas, e não uma substância que, como todas as outras, têm seus efeitos condicionados por suas formas de uso, o crack tem se tornado cada vez mais o bode expiatório perfeito para justificar e viabilizar poderosos (e escusos) interesses políticos e econômicos sedentos pela privatização dos espaços públicos e do Estado.
Mas o chamado movimento antiproibicionista tem se consolidado e ampliado, e sua reação a esse projeto de lei foi imediata e firme. Até mesmo um grupo de mais cem evangélicos do país inteiro emitiu nota em protesto. O governo federal parece ter cedido em alguns pontos a seus setores menos conservadores, como o Ministério da Saúde, e agora sinaliza, como o relator do PL, com um acordo que atenua alguns dos pontos mais bizarros do projeto, como o que se refere à internação compulsória e ao denuncismo estimulado no âmbito escolar, mas mantém aberto o caminho das verbas públicas para as instituições privadas e a possibilidade de aumento da pena para acusados de tráfico. E isso antes de passar pelo Congresso, onde há donos de comunidades terapêuticas exercendo mandato, como o ilustre deputado Marcos Feliciano, dono da Casa de Recuperação Ressuscita em Cristo, no Gama, cidade-satélite de Brasília.
Desse modo, mais do que buscar atenuar algumas mazelas do PL nº 7663/10, é preciso combatê-lo em sua totalidade, identificando-o como representante de uma mentalidade que só traz retrocesso e efeitos sociais nefastos que recairão, principalmente, nas camadas mais vulneráveis da população. Sua aprovação representa graves riscos aos já tão maltratados direitos humanos em nosso país. É preciso um posicionamento firme contra essa situação por parte de todos que acreditam na justiça social e na democracia. Como diz o lema do Dia da Luta Antimanicomial deste ano, “se não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir”.
* Júlio Delmanto é jornalista, mestre em História Social pela USP. Pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip), membro do Coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR) e um dos organizadores da Marcha da Maconha SP e da Frente Nacional Drogas e Direitos Humanos.
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