Por Izaías Almada
O cavalete que sustenta o quadro com que o STF pinta a AP 470 é feito de madeira podre. Além disso, as tintas escolhidas e usadas por alguns dos pintores togados se misturam ao sabor do acaso, deixando os grandes mestres da pintura extasiados com tamanha ignorância estética. Figurativistas, impressionistas, surrealistas, os juízes da corte se lançaram num emaranhado de filigranas jurídicas para explicar o inexplicável já que não sabem como finalizar a obra. Uma situação grave e perigosa.
Grave porque em vários momentos alguns deles se colocaram acima das leis e desrespeitaram a própria Constituição do país, a começar pelo seu presidente. Perigosa, pois abre precedentes que podem formar jurisprudência sobre “casuísmos legais”, contribuindo para confundir o cipoal de leis com as quais nós os cidadãos nos sentimos mais desprotegidos do que seguros perante direitos e deveres.
Em qualquer época da história da humanidade nos últimos dois milênios os governos autoritários jamais precisaram dar explicações sobre suas leis e decisões, o que – em tais circunstâncias - torna o exercício do poder atraente e, de certa maneira, mais cômodo para quem o detém. Nas modernas democracias, contudo, espera-se que os cidadãos possam se defender de eventuais faltas ou crimes cometidos ou de que são acusados em primeira e segunda instância. In dubio pro reo... E o ônus da prova pertence sempre ao acusador.
Chama a atenção no julgamento político da AP 470 o furor condenatório de alguns dos juízes da mais alta instância da justiça brasileira que, para além do juridiquês tão apropriado em tais conventículos, abusa de linguajar carregado de ironias, de soberba, da falácia e dos sofismas com que muitos ali tentam demonstrar a cidadãos, ignorantes como eu, como se corrompe ou se é corrompido, como se forma uma quadrilha e como se lesa o patrimônio público, mas – insisto - sem as devidas provas de tais crimes.
E quando num regime democrático a mais alta corte judiciária do país necessita lançar mão, através de alguns de seus notórios integrantes, de todo um mecanismo de filigranas para não dar o braço a torcer, pior, para que a nação não perceba que não estavam preparados para um julgamento político de tal magnitude (acho mesmo que alguns nem se deram ao trabalho de ler o processo), a gravidade é maior ainda. Em linguagem impolada, quer se dar a impressão de que se está sendo justo e que se está de fato combatendo a corrupção. Mas a verdade é como a água: você pode ir colocando obstáculo para impedir que ela escoe, mas ela sempre achará uma saída.
Ontem, quarta feira 11 de setembro, data fatídica para grandes crimes contra a humanidade, poderia também ter feito vítimas no Brasil. Contudo, parece que um vento de esperança conseguiu arejar a sala principal do STF. Será que alguns dos juízes tomaram conhecimento da carta aberta assinada por vários advogados e entidades representativas da classe jurídica? Gostaria de compartilhar a carta com os leitores:
*****
Carta Aberta ao Supremo Tribunal Federal
“O Supremo Tribunal Federal, guardião secular da Justiça no Brasil, tem diante de si, na análise que fará sobre os embargos infringentes na Ação Penal 470, uma decisão histórica. Se negar a validade dos recursos, não fará história pela exemplaridade no combate à corrupção, mas sim por coroar um julgamento marcado pelo tratamento diferenciado e suscetível a pressão política e midiática.
Já no ano passado, durante as 53 sessões que paralisaram a Corte durante mais de quatro meses, a condução do julgamento já havia nos causado profunda preocupação depois de se sobrepor a uma série de garantias constitucionais com o indisfarçável objetivo de alcançar as condenações desejadas no fim dos trabalhos.
Aos réus que não dispunham de foro privilegiado, fora negado o direito consagrado à dupla jurisdição. Em muitos dos casos analisados também se colocou em xeque a presunção da inocência. O ônus da prova quase sempre coube ao réus, por vezes condenados mesmo diante da apresentação de contraprovas.
No último mês, a apreciação dos embargos de declaração voltou a preocupar dando sinais de que a dinâmica condenatória ainda prevalece na vontade da maioria dos ministros. Embora tenha corrigido duas contradições evidentes do acórdão, outras deixaram de ser revistas, optando-se por perpetuar erros jurídicos em um julgamento em última instância.
Não rever a dosimetria para o crime de formação de quadrilha mostrou que há um limite na boa vontade do Supremo em corrigir falhas. Na sessão do dia 5 de setembro, o ministro Ricardo Lewandowski expôs de maneira transparente que a pena base desta condenação foi muito mais gravosa se comparada com os outros crimes. "Claro que isso aqui foi para superar a prescrição, impondo regime fechado. É a única explicação que eu encontro", afirmou o ministro. Ele e outros três ministros ficaram vencidos na divergência.
Na mesma sessão, outro sinal ainda mais grave: o presidente Joaquim Barbosa votou pela inadmissibilidade dos embargos infringentes, contrariando uma jurisprudência de 23 anos da Casa e negando até mesmo decisões tomadas por ele no mesmo tribunal ao analisar situações similares.
Desde que a Lei 8.038 passou a vigorar, em 1990, regulando a tramitação de processos e recursos em tribunais superiores, a sua compatibilidade perante o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal nunca foi apontada como impedimento para apreciação de embargos infringentes. Em todos os casos analisados em mais de duas décadas, prevaleceu a força de lei do Regimento em seu artigo 333, parágrafo único.
Outro ponto de aparente contradição entre a Lei 8.038 e o Regimento Interno do STF diz respeito à possibilidade de apresentação de agravos regimentais. Neste caso, assim como ocorrera com os infringentes nos últimos 23 anos, os ministros sempre deliberaram à luz de seu regimento, acolhendo a validade dos agravos.
A jurisprudência sobre os infringentes foi reconhecida e ressaltada em plenário pelo ministro Celso de Mello durante o julgamento da própria Ação Penal no dia 2 de agosto de 2012 e, posteriormente, registrada em seu voto no acórdão publicado em abril deste ano.
O voto do presidente Joaquim Barbosa retrocede no direito de defesa, o que não é admissível sob qualquer argumento jurídico. Mudar o entendimento da Corte sobre a validade dos embargos infringentes referendaria a conclusão de que estamos diante de um julgamento de exceção.
Subscrevemos esta carta em nome da Constituição e do amplo direito de defesa. Reforçamos nosso pedido para que o Supremo Tribunal Federal aja de acordo com os princípios garantistas que sempre devem nortear o Estado Democrático de Direito.”
Setembro de 2013
*****
Que o dia 12 de setembro reponha a justiça nos trilhos democráticos.
O cavalete que sustenta o quadro com que o STF pinta a AP 470 é feito de madeira podre. Além disso, as tintas escolhidas e usadas por alguns dos pintores togados se misturam ao sabor do acaso, deixando os grandes mestres da pintura extasiados com tamanha ignorância estética. Figurativistas, impressionistas, surrealistas, os juízes da corte se lançaram num emaranhado de filigranas jurídicas para explicar o inexplicável já que não sabem como finalizar a obra. Uma situação grave e perigosa.
Grave porque em vários momentos alguns deles se colocaram acima das leis e desrespeitaram a própria Constituição do país, a começar pelo seu presidente. Perigosa, pois abre precedentes que podem formar jurisprudência sobre “casuísmos legais”, contribuindo para confundir o cipoal de leis com as quais nós os cidadãos nos sentimos mais desprotegidos do que seguros perante direitos e deveres.
Em qualquer época da história da humanidade nos últimos dois milênios os governos autoritários jamais precisaram dar explicações sobre suas leis e decisões, o que – em tais circunstâncias - torna o exercício do poder atraente e, de certa maneira, mais cômodo para quem o detém. Nas modernas democracias, contudo, espera-se que os cidadãos possam se defender de eventuais faltas ou crimes cometidos ou de que são acusados em primeira e segunda instância. In dubio pro reo... E o ônus da prova pertence sempre ao acusador.
Chama a atenção no julgamento político da AP 470 o furor condenatório de alguns dos juízes da mais alta instância da justiça brasileira que, para além do juridiquês tão apropriado em tais conventículos, abusa de linguajar carregado de ironias, de soberba, da falácia e dos sofismas com que muitos ali tentam demonstrar a cidadãos, ignorantes como eu, como se corrompe ou se é corrompido, como se forma uma quadrilha e como se lesa o patrimônio público, mas – insisto - sem as devidas provas de tais crimes.
E quando num regime democrático a mais alta corte judiciária do país necessita lançar mão, através de alguns de seus notórios integrantes, de todo um mecanismo de filigranas para não dar o braço a torcer, pior, para que a nação não perceba que não estavam preparados para um julgamento político de tal magnitude (acho mesmo que alguns nem se deram ao trabalho de ler o processo), a gravidade é maior ainda. Em linguagem impolada, quer se dar a impressão de que se está sendo justo e que se está de fato combatendo a corrupção. Mas a verdade é como a água: você pode ir colocando obstáculo para impedir que ela escoe, mas ela sempre achará uma saída.
Ontem, quarta feira 11 de setembro, data fatídica para grandes crimes contra a humanidade, poderia também ter feito vítimas no Brasil. Contudo, parece que um vento de esperança conseguiu arejar a sala principal do STF. Será que alguns dos juízes tomaram conhecimento da carta aberta assinada por vários advogados e entidades representativas da classe jurídica? Gostaria de compartilhar a carta com os leitores:
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Carta Aberta ao Supremo Tribunal Federal
“O Supremo Tribunal Federal, guardião secular da Justiça no Brasil, tem diante de si, na análise que fará sobre os embargos infringentes na Ação Penal 470, uma decisão histórica. Se negar a validade dos recursos, não fará história pela exemplaridade no combate à corrupção, mas sim por coroar um julgamento marcado pelo tratamento diferenciado e suscetível a pressão política e midiática.
Já no ano passado, durante as 53 sessões que paralisaram a Corte durante mais de quatro meses, a condução do julgamento já havia nos causado profunda preocupação depois de se sobrepor a uma série de garantias constitucionais com o indisfarçável objetivo de alcançar as condenações desejadas no fim dos trabalhos.
Aos réus que não dispunham de foro privilegiado, fora negado o direito consagrado à dupla jurisdição. Em muitos dos casos analisados também se colocou em xeque a presunção da inocência. O ônus da prova quase sempre coube ao réus, por vezes condenados mesmo diante da apresentação de contraprovas.
No último mês, a apreciação dos embargos de declaração voltou a preocupar dando sinais de que a dinâmica condenatória ainda prevalece na vontade da maioria dos ministros. Embora tenha corrigido duas contradições evidentes do acórdão, outras deixaram de ser revistas, optando-se por perpetuar erros jurídicos em um julgamento em última instância.
Não rever a dosimetria para o crime de formação de quadrilha mostrou que há um limite na boa vontade do Supremo em corrigir falhas. Na sessão do dia 5 de setembro, o ministro Ricardo Lewandowski expôs de maneira transparente que a pena base desta condenação foi muito mais gravosa se comparada com os outros crimes. "Claro que isso aqui foi para superar a prescrição, impondo regime fechado. É a única explicação que eu encontro", afirmou o ministro. Ele e outros três ministros ficaram vencidos na divergência.
Na mesma sessão, outro sinal ainda mais grave: o presidente Joaquim Barbosa votou pela inadmissibilidade dos embargos infringentes, contrariando uma jurisprudência de 23 anos da Casa e negando até mesmo decisões tomadas por ele no mesmo tribunal ao analisar situações similares.
Desde que a Lei 8.038 passou a vigorar, em 1990, regulando a tramitação de processos e recursos em tribunais superiores, a sua compatibilidade perante o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal nunca foi apontada como impedimento para apreciação de embargos infringentes. Em todos os casos analisados em mais de duas décadas, prevaleceu a força de lei do Regimento em seu artigo 333, parágrafo único.
Outro ponto de aparente contradição entre a Lei 8.038 e o Regimento Interno do STF diz respeito à possibilidade de apresentação de agravos regimentais. Neste caso, assim como ocorrera com os infringentes nos últimos 23 anos, os ministros sempre deliberaram à luz de seu regimento, acolhendo a validade dos agravos.
A jurisprudência sobre os infringentes foi reconhecida e ressaltada em plenário pelo ministro Celso de Mello durante o julgamento da própria Ação Penal no dia 2 de agosto de 2012 e, posteriormente, registrada em seu voto no acórdão publicado em abril deste ano.
O voto do presidente Joaquim Barbosa retrocede no direito de defesa, o que não é admissível sob qualquer argumento jurídico. Mudar o entendimento da Corte sobre a validade dos embargos infringentes referendaria a conclusão de que estamos diante de um julgamento de exceção.
Subscrevemos esta carta em nome da Constituição e do amplo direito de defesa. Reforçamos nosso pedido para que o Supremo Tribunal Federal aja de acordo com os princípios garantistas que sempre devem nortear o Estado Democrático de Direito.”
Setembro de 2013
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Que o dia 12 de setembro reponha a justiça nos trilhos democráticos.
3 comentários:
Democracia muito frágil.Depende de uma carta, de um abaixo-assinado, na hora certa, de um post, ou de dez posts somados.Precisamos mudar isso tudo e pra ontem.
A carta aberta dos juristas trouxe um pouco de alento nesse caso do STF, pois esse é um caso do STF, mais do que o julgamento de uma ação. Nesse sentido, o que se pretende é a justeza de todo e qualquer processo e as garantias para qualquer um de nós, cidadãos. Foi, afinal, uma luz para esse tribunal.
Maria Rita
aberração ética e estética, feio e imoral.
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