Por Juarez Guimarães, no Jornal GGN:
O senso comum identifica corretamente uma razão fundamental que obstaculiza o curso da necessária reforma das leis eleitorais e instituições de representação política na democracia brasileira: a resistência conservadora e inercial do sistema político brasileiro em seu auto-reformar ou, em linguagem mais corriqueira, os “políticos” não querem perder o seu poder e os seus privilégios.
Mas há duas outras razões igualmente fortes que concorrem para obstaculizar a reforma: uma de ordem histórica e outra que organiza o dissenso atual na política brasileira. A de ordem histórica é aquela que estabelece uma narrativa de largo fôlego que vai das formas políticas institucionalizadas pela ditadura militar à transição conservadora, feita por negociação, que preservou muitos dos fundamentos da competição eleitoral e partidária no Brasil. Em nome do valor da estabilidade da transição, prevaleceu a nítida opção por represar as dimensões expressivas e mais dinâmicas do sistema de representação.
Mas há uma outra barreira, dotada de uma força sempre renovada, que é aquela que faz convergir nos momentos decisivos a ação dos políticos fisiológicos com os partidos liberais-conservadores. Esta coalizão na prática tem sido suficientemente forte até agora para frear as mudanças. Os liberais-conservadores, como bem vem enfatizando polemicamente a ciência política de Wanderley Guilherme dos Santos, desde os anos noventa , almejam um paradigma de reforma que contempla cinco teses complementares: a defesa do voto facultativo ao invés do obrigatório, a opções pela estabilidade e controle institucional da competição democrática, a defesa da legitimidade do financiamento privado de campanha frente ao financiamento público, a defesa da lista aberta de candidatos e a contraposição entre a democracia eleitoral, entendida como função sistêmica, autônoma e especializada em relação ao corpo de cidadãos e às culturas da democracia participativa.
Assim, o que poderíamos chamar de um paradigma democrático-republicano de reforma política – aquele defende o voto obrigatório como direito e dever do cidadão, opta pelo sistema proporcional de representação, pelo financiamento público exclusivo de campanha, pelo voto em listas partidárias e defende a combinação entre democracia representativa e participativa – não tem conseguido formar uma coalizão política e social capaz de vencer os obstáculos inerciais, históricos e liberal-conservadores, que em geral recebem toda a cobertura de legitimação das grandes empresas de mídia .
A questão é: as manifestações de junho criaram um novo contexto político de legitimação para fazer frente a estes obstáculos estruturais e históricos?
A voz das ruas e o novo tempo da reforma
A nossa aposta analítica é que as manifestações de junho criaram um novo quadro de legitimação política para as reformas políticas de paradigma democrático-republicano.
Antes das manifestações de junho, as pesquisas de opinião pública já vinham sistematicamente apontando nos últimos anos dois fenômenos correlatos: um universal repúdio à corrupção, entendido como fenômeno grave ou muito grave, que era amplamente majoritário em todas as classes de renda, em todas as regiões, em todos os níveis educacionais; a adesão crescente aos valores da democracia convivia com uma desconfiança profunda em relação ao Congresso Nacional e aos partidos políticos.
A avaliação é que as manifestações de junho transformaram este mal-estar crônico em crise aberta de legitimidade do sistema político. Isto é, o custo político democrático de continuar operando nele será cada vez mais insuportável para os cidadãos e para a democracia brasileira. Afetará o próprio cálculo estratégico dos atores inseridos no centro da disputa política.
A subrepresentação das maiorias e a hiper-representação de minorias econômicas em eleições cada vez mais caras, o circuito de renovação da corrupção sistêmica e a crise de legitimidade do poder legislativo, gerando fenômenos recorrentes de judicialização e instabilidade das relações entre os poderes republicanos, cria uma nova possibilidade de ação para uma coalizão política-social pró-reforma, desta vez extra-parlamentar, ancorada na mobilização da opinião pública cidadã e dos movimentos sociais e entidades da sociedade civil, como a CNBB, a OAB, a UNE, a CUT etc.
Em um processo histórico de republicanização de longo curso, que se faz por conquistas obtidas em surto de mobilização cívica, estaríamos agora vivendo as vésperas de reformas políticas fundamentais para a democracia. Como em outros momentos decisivos, o público só alcança força para se impor pela exasperação da crítica e pela dialética da oposição ao que é anti-republicano e anti-democrático.
Terão os atores políticos mais interessados na reforma política republicana e democrática a consciência dramática desta crise de legitimidade do sistema político?
* Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG e autor de “A esperança crítica” ( Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2005).
O senso comum identifica corretamente uma razão fundamental que obstaculiza o curso da necessária reforma das leis eleitorais e instituições de representação política na democracia brasileira: a resistência conservadora e inercial do sistema político brasileiro em seu auto-reformar ou, em linguagem mais corriqueira, os “políticos” não querem perder o seu poder e os seus privilégios.
Mas há duas outras razões igualmente fortes que concorrem para obstaculizar a reforma: uma de ordem histórica e outra que organiza o dissenso atual na política brasileira. A de ordem histórica é aquela que estabelece uma narrativa de largo fôlego que vai das formas políticas institucionalizadas pela ditadura militar à transição conservadora, feita por negociação, que preservou muitos dos fundamentos da competição eleitoral e partidária no Brasil. Em nome do valor da estabilidade da transição, prevaleceu a nítida opção por represar as dimensões expressivas e mais dinâmicas do sistema de representação.
Mas há uma outra barreira, dotada de uma força sempre renovada, que é aquela que faz convergir nos momentos decisivos a ação dos políticos fisiológicos com os partidos liberais-conservadores. Esta coalizão na prática tem sido suficientemente forte até agora para frear as mudanças. Os liberais-conservadores, como bem vem enfatizando polemicamente a ciência política de Wanderley Guilherme dos Santos, desde os anos noventa , almejam um paradigma de reforma que contempla cinco teses complementares: a defesa do voto facultativo ao invés do obrigatório, a opções pela estabilidade e controle institucional da competição democrática, a defesa da legitimidade do financiamento privado de campanha frente ao financiamento público, a defesa da lista aberta de candidatos e a contraposição entre a democracia eleitoral, entendida como função sistêmica, autônoma e especializada em relação ao corpo de cidadãos e às culturas da democracia participativa.
Assim, o que poderíamos chamar de um paradigma democrático-republicano de reforma política – aquele defende o voto obrigatório como direito e dever do cidadão, opta pelo sistema proporcional de representação, pelo financiamento público exclusivo de campanha, pelo voto em listas partidárias e defende a combinação entre democracia representativa e participativa – não tem conseguido formar uma coalizão política e social capaz de vencer os obstáculos inerciais, históricos e liberal-conservadores, que em geral recebem toda a cobertura de legitimação das grandes empresas de mídia .
A questão é: as manifestações de junho criaram um novo contexto político de legitimação para fazer frente a estes obstáculos estruturais e históricos?
A voz das ruas e o novo tempo da reforma
A nossa aposta analítica é que as manifestações de junho criaram um novo quadro de legitimação política para as reformas políticas de paradigma democrático-republicano.
Antes das manifestações de junho, as pesquisas de opinião pública já vinham sistematicamente apontando nos últimos anos dois fenômenos correlatos: um universal repúdio à corrupção, entendido como fenômeno grave ou muito grave, que era amplamente majoritário em todas as classes de renda, em todas as regiões, em todos os níveis educacionais; a adesão crescente aos valores da democracia convivia com uma desconfiança profunda em relação ao Congresso Nacional e aos partidos políticos.
A avaliação é que as manifestações de junho transformaram este mal-estar crônico em crise aberta de legitimidade do sistema político. Isto é, o custo político democrático de continuar operando nele será cada vez mais insuportável para os cidadãos e para a democracia brasileira. Afetará o próprio cálculo estratégico dos atores inseridos no centro da disputa política.
A subrepresentação das maiorias e a hiper-representação de minorias econômicas em eleições cada vez mais caras, o circuito de renovação da corrupção sistêmica e a crise de legitimidade do poder legislativo, gerando fenômenos recorrentes de judicialização e instabilidade das relações entre os poderes republicanos, cria uma nova possibilidade de ação para uma coalizão política-social pró-reforma, desta vez extra-parlamentar, ancorada na mobilização da opinião pública cidadã e dos movimentos sociais e entidades da sociedade civil, como a CNBB, a OAB, a UNE, a CUT etc.
Em um processo histórico de republicanização de longo curso, que se faz por conquistas obtidas em surto de mobilização cívica, estaríamos agora vivendo as vésperas de reformas políticas fundamentais para a democracia. Como em outros momentos decisivos, o público só alcança força para se impor pela exasperação da crítica e pela dialética da oposição ao que é anti-republicano e anti-democrático.
Terão os atores políticos mais interessados na reforma política republicana e democrática a consciência dramática desta crise de legitimidade do sistema político?
* Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG e autor de “A esperança crítica” ( Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2005).
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