Atravessamos mais uma semana de debates na Câmara dos Deputados sem conseguir colocar o texto do Marco Civil da Internet em votação. Muita gente sequer entendeu como e por que, desta vez, foi o governo que pediu a retirada do projeto de pauta. Afinal, Dilma não apenas solicitou, em setembro de 2013, urgência constitucional para a votação do MCI – que obriga a Câmara a votá-lo para poder avançar em outras pautas – como também defende o atual relatório do deputado Alessandro Molon (PT-RJ). O problema é que o Marco Civil, como já ocorreu com vários outros projetos importantes para o país, entrou no redemoinho da disputa eleitoral de 2014. Até a volta do recesso parlamentar de fim de ano, o único grande opositor do projeto, que foi construído de forma participativa a partir de uma proposta da sociedade civil, era o PMDB de Eduardo Cunha. Defensor histórico dos interesses das operadoras de telecomunicações, Cunha vinha se opondo ao Marco Civil e seu principal pilar: a neutralidade de rede. O princípio, garantido pelo atual texto do MCI, impede discriminações de tráfego em função do conteúdo que transita nas redes. Como as teles querem poder vender pacotes diferenciados, lucrando mais para ofertar o acesso a determinados tipos de conteúdo da internet (o acesso a uma transmissão por streaming, por exemplo, poderia custar mais do que a redes sociais e e-mails), uma lei que protege a neutralidade da rede seria péssima para a expansão deste modelo de negócios, altamente discriminatório. Mas o lobby das teles não colou tanto como o esperado, e Cunha seguia, de certa forma, isolado. Partidos como PSDB, DEM, PPS, PTB e PSB, que não compõem a base do governo, já haviam declarado apoio ao texto. Vários deles fizeram exigências de alteração no relatório do deputado Molon para se somar ao projeto. Algumas dessas mudanças, inclusive, geraram críticas ao texto por parte da sociedade civil, como a inclusão, no artigo 16, da obrigatoriedade da guarda de dados dos usuários por seis meses para futuras investigações policiais. Mas os partidos conseguiram convencer o relator. Assim, não havia mais motivos para se opor ao texto. Veio daí a jogada de mestre de Eduardo Cunha. Percebendo que não seria somente pelo mérito do texto e pelo lobby das operadoras de telecomunicações (mesmo em época de acordos para financiamento de campanhas!) que ele conseguiria derrotar o Marco Civil da Internet, Cunha colocou o texto no meio da disputa política eleitoral que vinha se desenhando na Câmara dos Deputados. Num cenário de possível divisão entre PT e PMDB, de parte da base do governo insatisfeita (querendo liberação de emendas e mais cargos no governo) e de oposição de direita buscando uma forma de derrotar o governo, Cunha transformou o Marco Civil da Internet numa das principais moedas de barganha do Congresso Nacional neste momento. Assim, convenceu a maioria dos partidos de que aprovar o MCI seria dar uma vitória ao governo e que afundá-lo seria impor uma derrota à gestão Dilma. Começou o FLAXFLU. Só que quem saiu perdendo nessa história foram os 100 milhões de internautas brasileiros/as, que começaram a ver seus direitos e anseios jogados na lata de lixo dos conchavos e conluios parlamentares. Neste contexto, com raras e honrosas exceções, os partidos simplesmente passaram a ignorar o mérito do Marco Civil da Internet e a tratá-lo dentro dos moldes mais tradicionais – e lamentáveis – do jogo político. PSDB e DEM, por exemplo, que antes tinham manifestado apoio ao texto, agora defendem a retirada da urgência de sua votação e promovem um discurso desinformativo – que se espalhou rapidamente nas redes sociais – de que o Marco Civil da Internet será uma lei para censurar a liberdade na rede, quando é justamente o contrário. O PSB, que até pouco apoiava os pleitos da sociedade civil para tornar o MCI ainda mais democrático e garantidor dos direitos dos internautas, agora diz que não tem mais posição fechada sobre o relatório do deputado Molon. Vale lembrar que se trata do partido de Eduardo Campos, que se autodeclara a “terceira via” das eleições presidenciais de outubro. Aproveitando o fuzuê generalizado e tendo derrotado o governo na última terça-feira (11/03), com a aprovação da criação de uma comissão externa para apurar as denúncias de corrupção na Petrobras, Eduardo Cunha agora não pretende apenas derrotar o relatório do MCI, mas aprovar uma emenda aglutinativa que apresentou ao texto, atendendo aos principais desejos das teles: quebra da neutralidade da rede, autorização para venda de pacotes diferenciados em função do tipo de conteúdo acessado (transformando a internet numa verdadeira TV a cabo) e liberação da guarda e comercialização de dados dos usuários pelos provedores de conexão, rasgando qualquer resquício de preservação da privacidade do internauta. Foi para evitar a aprovação desta emenda que o governo está agindo (muito atrasado), desde quarta-feira, para recompor sua base, ou pelo menos parte dela – na próxima segunda-feira, novos ministros já serão empossados. Foi pelo mesmo motivo que o ministro José Eduardo Cardozo pediu ao presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, mais alguns dias antes de colocar o Marco Civil em votação. Enquanto isso, dezenas de organizações da sociedade civil, que estão na origem da proposta do MCI, e mais de 300 mil internautas seguem pedindo a votação do Marco Civil já. Trata-se, sim, de uma questão urgente. Engana-se muito quem acredita que hoje a rede já é livre e que é o Marco Civil que acabará com esta liberdade. O Brasil está entre os campeões globais de conteúdos derrubados da rede pela simples decisão dos provedores, numa clara prática de censura privada. Cotidianamente, a neutralidade da rede é violada para atender aos interesses comerciais das operadoras de telecomunicações. E seus dados de conexão podem estar, neste momento, sendo vendidos sem que você sequer tenha sido informado. A aprovação do Marco Civil da Internet é urgente para que tudo isso cesse e para que quem violar os princípios da liberdade de expressão, da neutralidade de rede e da privacidade do usuário seja responsabilizado. Nenhum direito a menos. É isso que pedimos. Esta é uma questão tão estratégica para o futuro da internet que, no dia em que a rede mundial de computadores completou 25 anos, seu fundador, Tim Berners-Lee, defendeu a elaboração de uma constituição universal para os direitos dos usuários na rede. Com o MCI, o Brasil dará um exemplo ao mundo de como o direito dos cidadãos/as a acessar e explorar a web em sua plenitude, sem se submeter aos interesses das multinacionais da telefonia, é um dos direitos mais fundamentais da contemporaneidade. Dilma reconheceu a importância da proteção dos usuários na rede em seu discurso na Assembleia Geral da ONU; depois agendou para abril um encontro mundial sobre governança da internet aqui no Brasil. Não garantir agora a aprovação do Marco Civil da Internet poderá se transformar em um vexame internacional. O que as organizações da sociedade civil e milhares de internautas esperam é os partidos da base do governo e da oposição enxerguem esta oportunidade como algo importante para os brasileiros/as, algo que precisa estar acima da mesquinharia das disputas políticas. Quem votar contra o atual relatório do Marco Civil da Internet não estará derrotando o governo. Estará pisoteando os direitos dos internautas. Se tudo se resumir às disputas eleitorais, não haverá alternativa a não ser cobrar, nas urnas, a posição que cada parlamentar assumir neste momento. Estamos de olho! Para saber mais sobre o Marco Civil da Internet e as mobilizações em apoio a sua aprovação, visite: www.marcocivil.org.br * Bia Barbosa é jornalista, mestre em gestão e políticas públicas e membro da coordenação do Intervozes. |
segunda-feira, 17 de março de 2014
Disputa eleitoral engole internet livre
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