Por Valéria Nader, no sítio Correio da Cidadania: Acompanhar o noticiário internacional é sempre uma experiência que demanda discernimento – afinal, trata-se de notícias que vêm de longe e que, além de obviamente sujeitas ao viés analítico e ideológico do órgão de comunicação que as irradia, são relativas a fatos não vivenciados no dia a dia do público leitor. No Brasil, precisa-se de bem mais que discernimento para passar por esta experiência – muita desconfiança e dois pés pra trás talvez não deem conta da tarefa, especialmente se estão em foco países que tomaram um rumo que fuja minimamente ao que determina o mainstream. A Venezuela é certamente um desses países. E não se trata aqui de tecer louvores ao país latino-americano, o qual, a exemplo de tantas outras nações de nossa região, tem uma trajetória marcada por uma série de contradições e precariedades sociais e políticas. Trata-se simplesmente de apelar para noções básicas e primárias do jornalismo, de modo que, diante dos fatos, se porte com um mínimo de seriedade e isenção. Assistir aos noticiários ou ler matérias dos maiores grupos de mídia sobre os últimos manifestos na Venezuela é se deparar, no entanto, sem exceção, com um bloco monocórdio, parcial e tendencioso. Um dos jornais televisivos de maior repercussão no país, o Jornal Nacional da Rede Globo, em uma de suas edições da semana passada, chegou a trazer os acirrados acontecimentos da Venezuela, com sua população visivelmente dividida (como é de praxe em situações sociais de conflagração ou mais extremadas), a partir das falas, imagens e cenários de somente um dos lados – a oposição ao presidente Maduro e ao chavismo. Ideias como as refletidas pela frase “Governo que cai? Não. Governo que sustenta grupos paramilitares e uma polícia política, dispostos a aterrorizar atos da oposição, espionar e matar”, seguida de posterior e literal alusão ao nazismo – frase de um editorialista da Folha de S. Paulo, na segunda-feira, 24 de fevereiro -, são quase exclusivamente o que se vê espelhado pela imprensa corporativa. Autênticas caricaturas de direita, ditadas pelos porta-vozes e críticos vorazes dos clichês que saem pela esquerda. Para avançar o debate, o Correio da Cidadania insere-se na tentativa de outros veículos que procuram dar voz àqueles que não têm entrada na grande mídia e que apresentam fatos e visões que nela são quase proibidos. Na noite de segunda-feira, 24 de fevereiro, conversamos com Pedro Silva Barros. Professor licenciado do Departamento de Economia da PUC-SP e doutor em Integração da América Latina pela USP, é técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e titular da missão deste órgão do governo federal em Caracas, Venezuela, desde setembro de 2010. Dentre as várias e abrangentes colocações sobre o país no qual vive há quase 4 anos, Barros destaca que “os canais estatais não superam, somados, 10% da audiência”. Ele está se referindo ao mesmo país e à mesma mídia que os meios de comunicação por aqui denunciam como “100% controlados pelo chavismo”. Abaixo, a entrevista exclusiva. A Venezuela está no olho do furacão e, para aqueles que observam de fora os acontecimentos políticos, o cenário é no mínimo confuso. O que você teria a comentar, em primeiro lugar, sobre os últimos e intensos protestos e a composição das forças oposicionistas (protagonizada por Henrique Capriles e Leopoldo López) que estão a mobilizá-los? A oposição na Venezuela tem marchado unida dentro de sua multiplicidade. Depois de uma derrota de mais de 20% dos votos no referendo em que tentava revogar o mandato do presidente Chávez em 2004 e de boicotar as eleições parlamentares de 2005, apoiaram Manuel Rosales nas presidenciais de 2006 e Capriles nas eleições de 2012 contra Chávez e no apertado pleito de 2013 contra Maduro, além dos referendos para mudanças constitucionais de 2007, o único em que foram vitoriosos, e de 2009. Em 2012, a economia venezuelana cresceu mais de 5% e a inflação havia diminuído, ainda que num patamar alto, próximo a 20%; Chávez venceu as eleições em outubro com mais de 10% de vantagem. No início de 2014, após a vitória governista nas eleições municipais de dezembro passado, houve uma aproximação do governador (de Miranda, o estado com as maiores taxas de homicídio do país) Capriles com o governo federal para tratar de temas específicos, notadamente segurança pública. Esse tema é particularmente importante quando se leva em conta que, em 2012, o presidente Chávez havia lançado o Plano Nacional de Segurança Pública e o governo de Miranda não havia participado desse processo. Talvez isso o tenha afastado dos setores mais radicais da oposição, liderados por Leopoldo López. Nas últimas semanas, López, o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, e a deputada María Corina lançaram o movimento “A Saída”, abrindo espaço para reivindicações extra-constitucionais. A despeito da condenação de Capriles e outras figuras históricas da oposição, parcela importante do movimento estudantil aderiu à radicalização, que culminou nos episódios violentos de 12 de fevereiro, que deixou três mortes, dezenas de feridos, inclusive das forças de segurança, e destruição de prédios públicos. Hoje as mortes já chegaram a quinze. A justiça venezuelana expediu uma ordem de detenção de Leopoldo López, acusando-o de mentor intelectual dos protestos (formalmente, as acusações são associação para delinquência, danos ao patrimônio e incitação à violência). Ainda que seja um setor minoritário na oposição, o radicalismo tem ganhado força, particularmente na fronteira com a Colômbia e na região mais rica de Caracas. Alberto Ravell, jornalista muito influente na oposição, escreveu hoje pelo Twitter que “na Ucrânia já foi possível” - avalio que seja uma declaração bastante ilustrativa das intenções dos setores mais radicalizados. O Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel disse à imprensa argentina que “há uma intenção de desestabilizar não apenas a economia, como também a ação social e política” na Venezuela, o que seria especialmente patrocinado pelos EUA. Como você encara esta possibilidade, ou seja, a ingerência externa na Venezuela? A história recente da Venezuela é marcada pelo golpe de 2002, que levou o empresário Pedro Carmona ao poder por menos de 48 horas. Apenas os governos dos EUA de George W. Bush e da Espanha de José María Aznar, além do Fundo Monetário Internacional, reconheceram a legitimidade de Pedro, o Breve. Desde então, foi frequente a tensão entre Venezuela e EUA. Na semana passada, por exemplo, a deputada cubano-americana Ileana Ros-Lehtinen (Partido Republicano, Florida) afirmou que demandou ao presidente Barack Obama sanções econômicas à Venezuela. No mesmo ato em apoio às manifestações, realizado em Miami, Luigi Boria, prefeito de Doral, cidade com alta concentração de latinos na Florida, expôs que estava “muito entusiasmado porque acredito que agora sim se produzirá uma saída frente ao atropelo, à violação aos direitos humanos que se vive na Venezuela” e que “a experiência da Síria deve levar a uma reflexão do Departamento de Estado sobre as ações que se devem tomar. Acredito que os Estados Unidos e o presidente Obama devem tomar ações sobre a Venezuela”. Seria difícil não considerar natural e legítimo que o governo e os venezuelanos se preocupem com esse tipo de demanda externa. Nem seria necessário elencar as intervenções norte-americanas na América Latina ou em países exportadores de petróleo, apenas lembrar que a Venezuela está a três horas de voo de Miami e possui reservas de mais de 300 bilhões de barris de petróleo, a maior do mundo. De acordo com a Agência Internacional de Energia e com o principal anuário estatístico do tema, editado pela petrolífera britânica BP, a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo. Ainda que seja predominantemente um petróleo pesado, cujo custo de refinação de um barril supera US$ 20, ele é vendido a quase US$ 100 por barril. Talvez valha ainda apontar que, há dez anos, a Venezuela não exportava nenhuma gota de petróleo para a China e hoje vende mais de 400 mil barris diários para seu maior parceiro asiático. Em que medida, de todo modo, a tensão está associada às reais condições sociais e econômicas do país, que têm de fato se precarizado, sobrepondo-se ao cenário e visão tão polarizados quando a Venezuela está em foco? Nos quinze anos de chavismo, a Venezuela foi o país do mundo que mais distribuiu renda e combateu a pobreza. Isso foi impulsionado pelo incremento do investimento social, permitido pelo aumento da arrecadação, principalmente devido ao aumento do controle do governo sobre a renda petroleira, que foi particularmente alta nesse período. O mesmo êxito não ocorreu nas tentativas de diversificar a economia e, mais recentemente, no controle de importantes variáveis macroeconômicas, como o câmbio ou a inflação. Há evidentes problemas na economia venezuelana; ao mesmo tempo, a maioria da população tem a clareza de que a alternativa não é retornar ao passado. A repetição da saída fracassada de 2002 é improvável em um cenário em que as forças armadas, a estatal petroleira e parte dos meios de comunicação estão comprometidas com o processo político em curso. Em 2002, parte considerável da cúpula militar, a maioria da direção da estatal petroleira PDVSA e todos os meios de comunicação relevantes estavam absolutamente comprometidos com o golpe - mesmo assim, o povo na rua, em atitude inédita na região, reverteu as ambições desses setores. Naquele tempo, por exemplo, não estavam estruturadas as missões sociais, as redes de distribuição de alimentos a preços bastante subsidiados. A pobreza extrema chegava a 13,5% da população, hoje está em 2,5%, um número fantástico para um país latino-americano. Não há grandes mudanças no estoque de riqueza (patrimônio), mas os resultados na distribuição de renda são fabulosos: a CEPAL aponta a Venezuela como a melhor distribuição de renda da América Latina, medida pelo coeficiente de Gini, superando o Uruguai ou a Costa Rica. O governo construiu uma grande rede com 27 mil pontos de distribuição de alimentos entre hipermercados, mercados médios e postos itinerantes. Ainda que haja escassez de alguns itens, o consumo per capita de proteína triplicou em 15 anos, a mendicância praticamente inexiste, ninguém passa fome. As camadas mais pobres da população vivem melhor e têm muito mais conhecimento sobre os seus direitos. Há também uma economia difícil de ser analisada a partir do exterior. Os subsídios são imensos, particularmente sobre energia, transporte, comunicação, alimentos básicos e itens de primeira necessidade. Uma lata de refrigerante custa quatro vezes mais do que um tanque de 50 litros de gasolina em um mesmo posto de serviço. Uma parcela muito pequena da população tem renda familiar inferior a 5 mil bolívares. Um bilhete do metrô de Caracas custa 1,5 bolívares, o mesmo valor de um minuto de ligação de um celular venezuelano para um celular no Brasil; o custo mensal do gás residencial é de 8 bolívares para mais de 90% dos consumidores; a assinatura da TV a cabo por mês custa aproximadamente 300 bolívares. Isso permite um padrão de consumo para a maioria dos venezuelanos que apenas uma minoria dos latino-americanos consegue ter. Ao mesmo tempo, há distorções importantes, a escassez e as filas têm aumentado, parece que uma parte importante das classes médias não está disposta a enfrentá-las em seu cotidiano e alguns mercados não querem tê-las, restringindo o acesso e limitando a compra dos produtos subsidiados. Nos últimos anos, esses impasses foram equacionados e legitimados em disputas eleitorais: o governo mostrando as conquistas e a oposição, as limitações do modelo político, social e econômico. Vários organismos internacionais e organizações renomadas, como a Unasul e o Centro Carter, têm reconhecido as eleições e o sistema eleitoral da Venezuela como justo e limpo. Os resultados têm sido ligeiramente favoráveis ao chavismo. A oposição governa em importantes estados, como Miranda e Lara, e cidades, como Caracas, Maracaibo e Barinas, capital do estado homônimo onde Hugo Chávez nasceu e seu irmão mais velho atualmente governa. Conheço todos, todos os países da América Latina, todos os estados do Brasil e 21 dos 23 estados venezuelanos; não tenho a menor dúvida em afirmar que a Venezuela é o melhor país da região para alguém que está na metade mais pobre da população viver, se alimentar, ter acesso à educação e a bens de consumo. Não poderia dizer o mesmo na primeira vez que estive aqui, pouco mais de uma década atrás. O fenômeno migratório é ilustrativo. Ao mesmo tempo em que algumas dezenas de milhares venezuelanos das classes altas e médias emigram, principalmente para Estados Unidos, Colômbia e Panamá, a quase totalidade dos aproximadamente três milhões de colombianos, peruanos e equatorianos das classes médias e baixas que imigraram para a Venezuela permanece aqui. Analogicamente, a população universitária do país chega a dois milhões de estudantes, 7% da população está cursando o nível superior hoje na Venezuela (no Brasil, este número é menor que 3,5%, ainda que tenha dobrado nos últimos dez anos), mas a produção científica e a inovação avançaram pouco por aqui. Como enxerga, neste sentido, o desempenho do governo, primeiro de Chávez, e agora de Maduro, e sua relação com a degringolada da situação econômica e social do país, visto haver intensos relatos de carestia, inflação galopante, crescente dívida externa, entre outros? A Venezuela oscilou anos de forte crescimento econômico com outros de estagnação ou recessão. É permanente a tensão entre manter o bolívar valorizado, garantindo subsídios às importações, ou desvalorizá-lo para tentar diversificar a economia, com riscos de carestia no curto prazo. A opção do governo tem sido a primeira. No último ano, a sua principal preocupação foi se legitimar politicamente. No campo econômico, porém, se destacaram a inflação e o desabastecimento de alguns produtos. O presidente Maduro foi eleito em abril, pouco mais de um mês após a morte de Hugo Chávez. Havia pressão inflacionária e certo descontrole do mercado cambial paralelo. Ainda que a dívida externa tenha crescido e as reservas internacionais tenham caído, a balança comercial da Venezuela ainda é superavitária. Mais de 70% das reservas venezuelanas são precificadas em ouro, cujo preço frente ao dólar recuou algo como 30% em 2013, mas já recuperou quase 10% neste ano; as reservas totais, porém, são o dobro do que eram há quinze anos. A dívida externa de curto prazo é estável e menor do que as reservas. A dívida de longo prazo continua um pouco inferior às receitas de doze meses de exportação petroleira. Isso traz algum conforto para uma economia tão questionada. Há trinta anos a Venezuela não consegue ter três anos seguidos de inflação abaixo de 20%; nessas três décadas o período de inflação mais baixa foi o do governo de Hugo Chávez. Os outros dois governos, de Carlos Andrés Pérez e Rafale Caldera, tiveram taxas de inflação média superiores aos 56% nos últimos doze meses. Talvez a ausência de Chávez tenha anestesiado um pouco o país e o governo. Provavelmente seria imprescindível uma grande estabilidade política para ajustes de longo prazo na política econômica, mas a vitória bastante apertada, a demora da oposição em reconhecer a derrota e as eleições municipais de dezembro impuseram outras prioridades, de curto prazo. A política de impor redução de preços com coerção estatal (particularmente dos bens de consumo que eram adquiridos com taxas de câmbio preferenciais e revendidos ao preço do mercado cambial paralelo) obteve grande apoio e sustentou um aumento da popularidade do presidente Maduro no último trimestre de 2013. A oposição tinha a leitura de que a situação econômica havia se deteriorado no curso do ano e que isso comprometeria o desempenho eleitoral dos candidatos governistas. O próprio Capriles apresentava a eleição de dezembro como um plebiscito sobre Maduro. As urnas, porém, garantiram a vitória chavista em 75% das cidades do país. No início do ano, principalmente após o assassinato brutal da modelo Mónica Spear, o tema da segurança pública tomou conta do debate político. Houve uma aproximação entre governantes das mais variadas matrizes políticas para tentar amenizar o problema e concertar políticas públicas conjuntas. Parte mais radical da oposição passou a questionar a liderança de Capriles e a estimular protestos violentos. Como você analisa o gesto político de López, que se entregou semana passada à polícia venezuelana, sem deixar de fazer discursos de estímulo a seus seguidores? Há uma disputa interna da oposição entre, ao menos, duas táticas para chegar ao poder. É parte de qualquer processo político que haja divisões dentro das grandes coalizões. Há disputas dentro do chavismo e há embates internos na oposição. Nos últimos anos, porém, os moderados ganharam espaço em ambos os lados. Muita gente diz que não é fácil ser político sem mandato. Leopoldo López, que havia abandonado a prévia da oposição que definiu Capriles como candidato em 2012, aparentemente apostou no tudo ou nada e parte significativa de seus seguidores defendem a ruptura institucional. Os oposicionistas que têm tido votos, como o governador de Lara Henri Falcón, um ex-chavista, porém, são muito mais moderados. Agora pela noite, em reunião do Conselho Federal de Governo, ele defendeu que é hora de isolar os violentos e diminuir o tom do discurso. O prefeito oposicionista de Baruta (região de Caracas), Gerardo Blayd, afirmou hoje que os protestos devem ser “racionais e pacíficos”. O mesmo vale para o prefeito de Chacao, Ramón Muchacho. Essa visão encontra pouco apoio entre os manifestantes, mas é música para os ouvidos da imensa maioria da população, fatigada pela polarização e marcada pelo massacre do Caracazo, que completará 25 anos na quinta-feira, pelo golpe de 2002 e pelo locaute do fim de 2002 e início de 2003. Qual a sua opinião sobre a cobertura da mídia, interna e externamente à Venezuela, no geral e no que se refere aos acontecimentos aqui narrados? Diferentemente de 2002, hoje há acesso plural às informações na Venezuela. Nesta manhã fui à banca e contei dez jornais diferentes, todos eles impressos com papel subsidiado. Oito eram oposicionistas, com diferentes ênfases. Sugiro a visita aos sítios do influente eluniversal.com, do tradicional el-nacional.com, do talcualdigital.com, que nasceu para se opor ao chavismo, do econômico elmundo.com.ve, do ultimasnoticias.com.ve, que é o mais vendido, e do governista correodelorinoco.gob.ve. Os dois canais mais vistos da TV aberta, os privados Venevisión e Televen, que foram protagonistas do golpe em 2002, não dão maior destaque às questões políticas. Também a privada Globovisión, que antes só apresentava os pontos de vista da oposição, tem se preocupado em dar espaço ao governo. Os canais estatais não superam, somados, 10% da audiência. Na TV paga, que aqui é muito mais acessível e vista do que no Brasil, há vários canais oposicionistas, inclusive a CNN em espanhol, que tem entrevistado vários oposicionistas venezuelanos, ainda que seja um canal regional. Evidentemente, a TeleSUR é seu maior contraponto. No rádio também há grande diversidade, a maior parte das emissoras privadas são abertamente de oposição, contrapostas pelas emissoras públicas e, principalmente, comunitárias, que têm muito espaço na Venezuela. A cobertura internacional é majoritariamente contrária ao governo, que parece ter concentrado seus esforços em divulgar internamente suas ideias e ações. Nos últimos anos, outros países da região talvez estejam seguindo esse mesmo caminho introspectivo. Surpreende muito o comportamento da imprensa brasileira, particularmente dos jornais, que antes apresentavam o ponto de vista do governo venezuelano, ainda que se opusessem a ele. Vou concentrar meus comentários na Folha de S. Paulo, que acompanho diariamente desde que me alfabetizei, o que prossigo fazendo hoje, assinando e lendo a versão eletrônica sistematicamente; e na TV Globo, na qual assisto ao noticiário por meio da Globo Internacional. O conteúdo mais desinforma do que informa e a análise, extremamente caricata, é completamente deslocada da realidade. Ambos os veículos enviaram jornalistas ao país na última semana, e nenhum deles procurou o governo ou qualquer posicionamento simpático a ele em qualquer de suas reportagens. Quando se cita o governo ou se apresenta alguma declaração, restringe-se a imagens e pequenas frases que são reproduzidas pelas agências de notícias tradicionais. A coletiva do presidente Maduro à imprensa internacional na sexta passada, reportada no mundo todo, não contou com a presença ou a menção desses veículos de comunicação. No início da semana passada, o Jornal Nacional apresentou duas entrevistas de rua para encerrar a matéria uníssona de que uma ditadura estava em curso; na primeira, ao ser perguntado sobre o que esperava para os próximos dias, o entrevistado afirmou seu desejo de que o governo caia; na segunda, veio uma ressalva: que não tenha derramamento de sangue. Um roteiro para um golpe a la Honduras e Paraguai. Se eu não acompanhasse a Venezuela e estivesse no Brasil, provavelmente teria essa leitura. Mais para o fim da semana, a mesma repórter foi enfática: “Os protestos continuam proibidos, mas os estudantes não saem das ruas”. As manifestações perdiam intensidade e os governos Chávez e Maduro nunca proibiram protestos na Venezuela, que têm menos restrições e mais proteção para serem realizados do que na grande maioria das democracias, inclusive do que no Brasil. O problema da violência e do excesso de armas na Venezuela vai muito além e independe dos protestos em curso. Os excessos cometidos, que evidentemente existiram, estão sendo investigados. Os funcionários do serviço de inteligência que descumpriram a ordem de aquartelamento e atiraram no dia 12 de fevereiro estão detidos e a investigação está em curso. O assassinato da estudante que havia sido miss turismo do estado de Carabobo foi causado por um tiro pelas costas, as investigações também estão em curso, mas, provavelmente, o tiro partiu de manifestantes da oposição. Os comentaristas brasileiros foram taxativos ao responsabilizar os “colectivos” pela morte. Até agora, em duas semanas de protestos, na contabilidade mais ampla, da ONG Foro Penal, foram 539 detidos em toda a Venezuela, a grande maioria já liberados; 19 estão privados de liberdade por decisão judicial, segundo a mesma contagem. Apenas no sábado passado 262 foram detidos, incluindo 5 jornalistas, em um único protesto em São Paulo, que talvez tenha sido menos violento do que os que têm ocorrido aqui. Hoje à noite, a mesma Delis Ortiz apresentava o general aposentado Angel Vivas como um herói, respaldado por seus vizinhos por resistir a uma ordem de detenção com um fuzil norte-americano nas mãos e uma pistola na cintura na varanda de sua casa. Sequer comentou a motivação da ação policial: ele havia aconselhado os manifestantes a utilizarem arame farpado nos bloqueios de rua e, horas depois, um trabalhador que voltava para casa em sua moto foi morto com o pescoço cortado por essas barricadas. Na reportagem, foi apresentada a vaga acusação de incitação à violência, sem nenhuma referência ao fato concreto. Na conta da imprensa brasileira, foi mais um manifestante que caiu em combate contra as forças da ditadura. Fico a pensar qual seria a reação dos mesmos jornalistas se uma figura pública brasileira tivesse, um dia antes da trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade, incentivado que os manifestantes que protestam contra o aumento da passagem de ônibus no Brasil utilizassem rojões contra a polícia, alegando que ela havia reprimido desproporcionalmente em atos do passado próximo. A enviada da Folha de S. Paulo tem escrito diariamente, raramente cita uma fonte governamental ou uma posição que não seja de oposição radical a tudo que foi feito na Venezuela nos últimos quinze anos. As opiniões, quando não são de políticos opositores, são de ONGs opositoras. Tenta reportar que há manifestantes que lutam contra uma ditatura, que não podem utilizar meios eletrônicos e enfrentam o terror de bandos armados clandestinos que defendem o governo, que permite que eles pratiquem crimes variados impunemente. Tanto a enviada, como um ex-correspondente que publicou artigo de análise do caso venezuelano, como outro analista de temas aleatórios, apresentam uma absoluta confusão entre coletivos, milícias e paramilitares, como se tudo fosse a mesma coisa, como se não existisse uma lei que regulamentasse as milícias como reservistas e parte da defesa nacional da Venezuela, independente de sua coloração política, e que atuam fardados e identificados. Como se participar de um movimento social fosse, em si, um crime. Como se o que acontece no México ou na Colômbia fosse transposto automaticamente à Venezuela. Utilizam o termo milícias como se fossem os grupos que controlam ou controlavam áreas do Rio de Janeiro. Ontem o jornal publicou textualmente que a estratégia atual do governo era bloquear Twitter e Facebook, usando essa terminologia. Não consulto esses meios com frequência, mas meus colegas de trabalho e alguns amigos, sim: foram unânimes em afirmar que isso nunca aconteceu na Venezuela. Pode ter havido oscilação na velocidade da internet, mas nunca o Twitter foi retirado do ar ou coisa parecida, basta ver a sequência de publicação das mensagens de venezuelanos. A própria enviada postou pelo Twitter, a partir de Caracas, que não poderia utilizar redes sociais. Em poucos países do mundo esses instrumentos são tão utilizados e democratizados pelo amplo acesso à internet como na Venezuela, que tem a rede mais abrangente e de menor custo da América Latina. Provavelmente, eles nunca haviam sido tão utilizados aqui como nos últimos dias. Infelizmente, para o leitor brasileiro que gostaria de saber o que está acontecendo na Venezuela, o jornal nunca reportou os mais de 4 milhões de laptops com acesso à internet distribuídos gratuitamente para estudantes da educação básica e média. A palavra “canaimita”, que denomina esses computadores, nunca foi publicada pela Folha. No início deste ano, o governo anunciou, como parte da expansão do projeto, que distribuirá 2 milhões de tablets, igualmente com acesso à internet, para estudantes universitários. Desnecessário dizer que existe uma forte contradição entre essa política macro de ampliar radicalmente o acesso ao conhecimento e à informação e o denuncismo de censura estampado na manchete do jornal. Talvez caminhar um pouco pelas periferias, conhecer um pouco do interior, sair da área de um quilômetro quadrado ao redor do hotel da área mais nobre de Caracas, que abrigou os generais golpistas de 2002 e 2003 e que concentra os protestos dos últimos dias, ajudasse a entender o que se passa na Venezuela. Como você acha que se dará o desfecho de mais esta crise venezuelana e quais as perspectivas do chavismo, um processo político que já supera 15 anos no governo? No último sábado, observei de perto as manifestações da oposição e do governo e em ambas havia clima de absoluta normalidade e proteção policial para evitar possíveis confrontos. Destaca-se que a da oposição foi realizada em El Marqués, no município de Sucre, governado pela oposição, no estado de Miranda, governado pela oposição. Os maiores confrontos até agora foram na Praça de Altamira, município de Chacao, governado pela oposição, estado de Miranda, governado por Capriles, que tem sistematicamente criticado a prática de guarimbas (barricadas para bloqueio de ruas e avenidas, que em Caracas acontecem quase que exclusivamente em bairros nobres). Pelo que é reportado, os protestos no estado de Táchira, na fronteira com a Colômbia, que foram mais fortes, também têm perdido intensidade. Nem sempre é fácil diagnosticar ou traçar cenários sobre o que se passa na Venezuela. Correndo o risco de errar redondamente, diria que os protestos vão esfriar nos próximos dias, serão rearticulados e voltarão com força no próximo período, podendo coincidir com a Copa do Mundo de futebol. O chavismo é o movimento que marcou a primeira tentativa de ruptura com o Consenso de Washington na América Latina. Depois vieram mais de uma dezena de governos, com diferentes tonalidades, mas com um objetivo parecido, de diminuição das desigualdades e não alinhamento automático aos Estados Unidos. A resposta fácil sobre as perspectivas seria indicar que o desafio é garantir o aprofundamento das conquistas sociais em um cenário econômico e, talvez, político adverso. Sistematicamente, tentaram apresentar a morte de Chávez como o fim do chavismo, mas, com o passar dos meses, me parece claro que estamos apenas no começo de uma longa história. Provavelmente, mais do que qualquer outro, o posicionamento sobre o que se passa na Venezuela indica as posições que cada um tem sobre o futuro da América Latina. As notas do Mercosul, da Unasul e da Celac, ainda que diferentes, indicam uma região mais unida, preocupada com a estabilidade e progresso mútuos. Essa tem sido a posição da presidente Dilma Rousseff, que foi afirmativa nos momentos mais decisivos da história recente da Venezuela, seja para a entrada do país no Mercosul, seja para o reconhecimento internacional das eleições de abril de 2013. Agora há pouco, em Bruxelas, ela foi novamente assertiva ao declarar que o diálogo, o consenso e a construção democrática são mais adequados do que qualquer tipo de ruptura institucional e que o caos, que é desejado por grupos minoritários na Venezuela, seria a desconstrução social, econômica e política. Por várias vezes, agora e antes, a presidente lembrou que é importante enxergar os avanços sociais da Venezuela. Em perspectiva histórica e para além da área social, provavelmente o governo Chávez será reconhecido como uma guinada para o sul e em prol da integração regional. |
terça-feira, 4 de março de 2014
"Mídia traz uma Venezuela caricata"
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