Por Miguel Martins, na revista CartaCapital:
Um dia a máscara cai. Pode até desbotar, como a base de pó de arroz aplicada ao rosto de Carlos Alberto, jogador do Fluminense na década de 1910. Em uma partida contra o América do Rio de Janeiro, o atleta mulato foi alvo da torcida adversária quando o suor derreteu seu disfarce de “respeitável homem branco”, condição exigida para atuar nos campos de um Campeonato Carioca elitizado, frequentado por moças e rapazes da alta sociedade. Quando a moda ludopédica se espalhou pelas favelas e subúrbios cariocas, o escritor Lima Barreto, mulato e avesso aos circuitos aristocráticos, criticou a coqueluche importada “por intermédio dos arrogantes e rubicundos caixeiros dos bancos” do Reino Unido. Não teve tempo de acompanhar as diabruras de Maravilha Negra, Diamante Negro e Pelé, entre tantos craques de pele escura que reinventaram o jogo bretão.
O futebol pentacampeão sempre teve um ídolo preto ou mulato à frente de suas conquistas: Didi em 1958, Garrincha em 1962, Pelé em 1970, Romário em 1994 e Ronaldo em 2002. Para a Copa de 2014, Neymar, também negro (embora não se considere), desponta como protagonista da seleção. Tantas glórias não foram, porém, capazes de eliminar o preconceito. A máscara que escondia o racismo, moldada em torno de uma suposta democracia racial, não consegue mais blindar seus adeptos. Brucutus cada vez mais barulhentos destilam discursos de ódio contra médicos cubanos, adolescentes dos rolezinhos ou um menor amarrado a um poste por um grupo de justiceiros. Não seria diferente no esporte.
Em 5 de março, cerca de 20 torcedores do Esportivo, time gaúcho de Bento Gonçalves, exibiram suas verdadeiras faces. O grupo atacou o árbitro Márcio Chagas da Silva por causa da cor de sua pele. “Macaco”, “negrão imundo” e “vagabundo” foram apenas alguns dos impropérios ouvidos por Chagas. Ao chegar ao estacionamento privativo do estádio, encontrou seu carro coberto de cascas de banana. Ao dar a partida no veículo, duas frutas caíram do cano do escapamento. No dia seguinte, o volante Arouca foi agredido. Autor de um golaço de voleio na partida contra o Mogi-Mirim, time do interior de São Paulo, o camisa 5 do Santos foi chamado de “macaco” por um torcedor enquanto concedia entrevistas.
Felizmente, foi-se o tempo em que os atletas negros se intimidavam. Arouca afirmou, por meio de nota, que o futebol é “um espelho da nossa realidade”. Declarou-se orgulhoso de suas origens africanas e lembrou a trajetória de sucesso de Leônidas da Silva, Romário e Pelé, responsáveis por “algumas das páginas mais bonitas da história da Seleção”. Na mesma linha, Chagas resolveu vir a público. Em entrevista a CartaCapital, o árbitro defende a responsabilidade do clube em relação aos torcedores racistas e a necessidade de campanhas de educação para reduzir o preconceito. “Entre os agressores, havia homens, mas também crianças e adolescentes. Esses meninos nada mais são do que reflexo dos seus responsáveis. Assim se constroem futuros racistas.” O regulamento lhe permitiria suspender a partida caso testemunhasse os atos discriminatórios durante o jogo. Mas o grupo, diz, aproveitava justamente as interrupções para ofendê-lo.
Não é a primeira vez que árbitros sofrem preconceito na Serra Gaúcha. Em 2005, o próprio Chagas foi chamado pelo então técnico do Encantado, Danilo Mior, de “negrão coitado”. Em 2006, foi novamente insultado por torcedores na região. “Todos os casos em que fui vítima de racismo ocorreram na Serra Gaúcha. São comuns essas manifestações em cidades como Bento Gonçalves, Caxias, Farroupilha e Garibaldi”, garante o árbitro, que diz nunca ter sido insultado ao apitar jogos do Campeonato Brasileiro. Ao chegar em casa, pensou em abandonar o apito. Mas ao deparar-se com o filho Miguel, de 10 meses, emocionou-se e mudou de ideia. “Seria uma besteira desistir de algo que gosto por causa de 20 infelizes”, afirma. “Não poderia ser covarde. Mais adiante pode acontecer com o meu filho e quero que ele tenha uma postura firme e encare os fatos de frente.”
O procurador Alberto Franco, do Tribunal de Justiça Desportiva, pretende fazer uma denúncia contra o Esportivo. Segundo o artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, o clube pode perder três pontos, caso fique comprovado que o ato discriminatório tenha partido de um “considerável número de pessoas vinculadas” à entidade. Franco diz haver indícios de que as ofensas partiram de torcedores localizados no pavilhão social do clube, o que caracterizaria o vínculo. Em nota, o presidente do Esportivo, Luís Oselame, lamentou o episódio, mas disse que os torcedores racistas são uma minoria e criticou uma possível decisão da Justiça prejudicial ao clube. Na terça-feira 11, o Esportivo informou ter entregado às autoridades locais os nomes dos suspeitos das agressões, identificados com o auxílio de torcedores, de jornalistas e da brigada militar.
No domingo 9, jogadores do Aimoré usaram máscaras com o rosto de Chagas estampado antes do confronto contra o Internacional, pelo Campeonato Gaúcho. No jogo em que apitou, o árbitro também foi homenageado com faixas contra o preconceito carregadas por jogadores do Pelotas e do São Luiz. Dilma Rousseff usou sua conta no Twitter para mandar uma mensagem de apoio às vítimas. “É inadmissível que o Brasil, a maior nação negra fora da África, conviva com cenas de racismo.” Há pouco mais de um mês, a presidenta havia manifestado apoio ao meia Tinga, do Cruzeiro, pelos insultos sofridos na partida contra o Real Garcilaso, no Peru. Dilma recebeu em audiência Tinga e Arouca na quinta-feira 13.
A Conmebol esforça-se para ignorar o episódio. Enquanto o árbitro venezuelano José Argote nem sequer relatou na súmula os xingamentos a Tinga, Eugenio Figueiredo, presidente da entidade, colocou panos quentes ao afirmar que os insultos partiram de torcedores, e não de jogadores. Elaborou-se dessa forma uma espécie de salvo-conduto para as torcidas sul-americanas atacarem os jogadores negros impunemente. Até por serem vítimas constantes de insultos na Libertadores, surpreende que jogadores brasileiros enfrentem o preconceito em sua própria casa. O historiador e escritor Joel Rufino dos Santos, autor do livro História Política do Futebol Brasileiro, levanta como hipótese a grande audiência dos campeonatos europeus no Brasil, que levaria alguns torcedores a emular as atitudes racistas vistas na televisão. Rufino também credita o problema ao acirramento do conservadorismo no País. “Alguns estão perdendo a vergonha de serem cruéis e racistas. Liberou geral.”
O técnico da Seleção Brasileira, Luiz Felipe Scolari, afirmou que a discussão sobre o racismo é uma “bobagem”. “Não adianta punir, a solução é ignorar. Esses babacas nunca vão aprender.” A declaração incomodou profundamente Rufino. “O Felipão é um reacionário, nunca se coloca do ponto de vista social. Ele pode querer deixar rolar, mais vai perguntar ao Tinga e ao Arouca o que pensam?” Prestes a sediar uma Copa do Mundo, o Brasil não pode ignorar a pauta. Ao ser o último país ocidental a abolir a escravidão, enfrentar o racismo é uma dívida histórica. Tanto mais no futebol, em que a contribuição dos negros formulou sua própria identidade, alegre e criativa.
Um dia a máscara cai. Pode até desbotar, como a base de pó de arroz aplicada ao rosto de Carlos Alberto, jogador do Fluminense na década de 1910. Em uma partida contra o América do Rio de Janeiro, o atleta mulato foi alvo da torcida adversária quando o suor derreteu seu disfarce de “respeitável homem branco”, condição exigida para atuar nos campos de um Campeonato Carioca elitizado, frequentado por moças e rapazes da alta sociedade. Quando a moda ludopédica se espalhou pelas favelas e subúrbios cariocas, o escritor Lima Barreto, mulato e avesso aos circuitos aristocráticos, criticou a coqueluche importada “por intermédio dos arrogantes e rubicundos caixeiros dos bancos” do Reino Unido. Não teve tempo de acompanhar as diabruras de Maravilha Negra, Diamante Negro e Pelé, entre tantos craques de pele escura que reinventaram o jogo bretão.
O futebol pentacampeão sempre teve um ídolo preto ou mulato à frente de suas conquistas: Didi em 1958, Garrincha em 1962, Pelé em 1970, Romário em 1994 e Ronaldo em 2002. Para a Copa de 2014, Neymar, também negro (embora não se considere), desponta como protagonista da seleção. Tantas glórias não foram, porém, capazes de eliminar o preconceito. A máscara que escondia o racismo, moldada em torno de uma suposta democracia racial, não consegue mais blindar seus adeptos. Brucutus cada vez mais barulhentos destilam discursos de ódio contra médicos cubanos, adolescentes dos rolezinhos ou um menor amarrado a um poste por um grupo de justiceiros. Não seria diferente no esporte.
Em 5 de março, cerca de 20 torcedores do Esportivo, time gaúcho de Bento Gonçalves, exibiram suas verdadeiras faces. O grupo atacou o árbitro Márcio Chagas da Silva por causa da cor de sua pele. “Macaco”, “negrão imundo” e “vagabundo” foram apenas alguns dos impropérios ouvidos por Chagas. Ao chegar ao estacionamento privativo do estádio, encontrou seu carro coberto de cascas de banana. Ao dar a partida no veículo, duas frutas caíram do cano do escapamento. No dia seguinte, o volante Arouca foi agredido. Autor de um golaço de voleio na partida contra o Mogi-Mirim, time do interior de São Paulo, o camisa 5 do Santos foi chamado de “macaco” por um torcedor enquanto concedia entrevistas.
Felizmente, foi-se o tempo em que os atletas negros se intimidavam. Arouca afirmou, por meio de nota, que o futebol é “um espelho da nossa realidade”. Declarou-se orgulhoso de suas origens africanas e lembrou a trajetória de sucesso de Leônidas da Silva, Romário e Pelé, responsáveis por “algumas das páginas mais bonitas da história da Seleção”. Na mesma linha, Chagas resolveu vir a público. Em entrevista a CartaCapital, o árbitro defende a responsabilidade do clube em relação aos torcedores racistas e a necessidade de campanhas de educação para reduzir o preconceito. “Entre os agressores, havia homens, mas também crianças e adolescentes. Esses meninos nada mais são do que reflexo dos seus responsáveis. Assim se constroem futuros racistas.” O regulamento lhe permitiria suspender a partida caso testemunhasse os atos discriminatórios durante o jogo. Mas o grupo, diz, aproveitava justamente as interrupções para ofendê-lo.
Não é a primeira vez que árbitros sofrem preconceito na Serra Gaúcha. Em 2005, o próprio Chagas foi chamado pelo então técnico do Encantado, Danilo Mior, de “negrão coitado”. Em 2006, foi novamente insultado por torcedores na região. “Todos os casos em que fui vítima de racismo ocorreram na Serra Gaúcha. São comuns essas manifestações em cidades como Bento Gonçalves, Caxias, Farroupilha e Garibaldi”, garante o árbitro, que diz nunca ter sido insultado ao apitar jogos do Campeonato Brasileiro. Ao chegar em casa, pensou em abandonar o apito. Mas ao deparar-se com o filho Miguel, de 10 meses, emocionou-se e mudou de ideia. “Seria uma besteira desistir de algo que gosto por causa de 20 infelizes”, afirma. “Não poderia ser covarde. Mais adiante pode acontecer com o meu filho e quero que ele tenha uma postura firme e encare os fatos de frente.”
O procurador Alberto Franco, do Tribunal de Justiça Desportiva, pretende fazer uma denúncia contra o Esportivo. Segundo o artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, o clube pode perder três pontos, caso fique comprovado que o ato discriminatório tenha partido de um “considerável número de pessoas vinculadas” à entidade. Franco diz haver indícios de que as ofensas partiram de torcedores localizados no pavilhão social do clube, o que caracterizaria o vínculo. Em nota, o presidente do Esportivo, Luís Oselame, lamentou o episódio, mas disse que os torcedores racistas são uma minoria e criticou uma possível decisão da Justiça prejudicial ao clube. Na terça-feira 11, o Esportivo informou ter entregado às autoridades locais os nomes dos suspeitos das agressões, identificados com o auxílio de torcedores, de jornalistas e da brigada militar.
No domingo 9, jogadores do Aimoré usaram máscaras com o rosto de Chagas estampado antes do confronto contra o Internacional, pelo Campeonato Gaúcho. No jogo em que apitou, o árbitro também foi homenageado com faixas contra o preconceito carregadas por jogadores do Pelotas e do São Luiz. Dilma Rousseff usou sua conta no Twitter para mandar uma mensagem de apoio às vítimas. “É inadmissível que o Brasil, a maior nação negra fora da África, conviva com cenas de racismo.” Há pouco mais de um mês, a presidenta havia manifestado apoio ao meia Tinga, do Cruzeiro, pelos insultos sofridos na partida contra o Real Garcilaso, no Peru. Dilma recebeu em audiência Tinga e Arouca na quinta-feira 13.
A Conmebol esforça-se para ignorar o episódio. Enquanto o árbitro venezuelano José Argote nem sequer relatou na súmula os xingamentos a Tinga, Eugenio Figueiredo, presidente da entidade, colocou panos quentes ao afirmar que os insultos partiram de torcedores, e não de jogadores. Elaborou-se dessa forma uma espécie de salvo-conduto para as torcidas sul-americanas atacarem os jogadores negros impunemente. Até por serem vítimas constantes de insultos na Libertadores, surpreende que jogadores brasileiros enfrentem o preconceito em sua própria casa. O historiador e escritor Joel Rufino dos Santos, autor do livro História Política do Futebol Brasileiro, levanta como hipótese a grande audiência dos campeonatos europeus no Brasil, que levaria alguns torcedores a emular as atitudes racistas vistas na televisão. Rufino também credita o problema ao acirramento do conservadorismo no País. “Alguns estão perdendo a vergonha de serem cruéis e racistas. Liberou geral.”
O técnico da Seleção Brasileira, Luiz Felipe Scolari, afirmou que a discussão sobre o racismo é uma “bobagem”. “Não adianta punir, a solução é ignorar. Esses babacas nunca vão aprender.” A declaração incomodou profundamente Rufino. “O Felipão é um reacionário, nunca se coloca do ponto de vista social. Ele pode querer deixar rolar, mais vai perguntar ao Tinga e ao Arouca o que pensam?” Prestes a sediar uma Copa do Mundo, o Brasil não pode ignorar a pauta. Ao ser o último país ocidental a abolir a escravidão, enfrentar o racismo é uma dívida histórica. Tanto mais no futebol, em que a contribuição dos negros formulou sua própria identidade, alegre e criativa.
2 comentários:
Carlos Alberto em 1910? Não existe revisão no texto?
Prejudica até a intenção do colunista...
Carlos Alberto,em 1914, num partida contra o América, passou pó de arroz no rosto para estrear pelo Fluminense – tinha receio de ser rejeitado pelos torcedores por ser negro. Durante a partida, suou em bicas e a torcida lançou aquele que seria seu mais famoso grito de guerra – “Pó de arroz”.
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