Por Carlos Mercuri, na revista Fórum:
São Paulo está na iminência de ter quase metade de sua população da Região Metropolitana - cerca de 9,9 milhões de pessoas - sem água nos próximos meses. Essa é a população abastecida pelo Sistema Cantareira, um complexo composto por seis represas, uma estação elevatória, 45 quilômetros de túneis e uma estação de tratamento. O manancial contava no último dia 15 com apenas 8,2% de sua capacidade, o mais baixo volume desde sua existência, e as projeções mais otimistas indicam que essa quantidade de água dura apenas até junho – mês de realização da Copa do Mundo no Brasil.
O governo do Estado, sob o comando do PSDB há 20 anos, não fez os investimentos necessários para evitar essa situação e vem tomando medidas consideradas “temerárias”, como a aplicação de multa a quem aumentar o consumo, tentar fazer chover bombeando nuvens e até ameaçando retirar água da bacia do Rio Paraíba do Sul, que abastece parte importante da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Mas não é apenas a Região Metropolitana de São Paulo que é atingida pela seca no Cantareira. Cerca de 4 milhões de moradores de cidades do interior do Estado também dependem da água dos rios que alimentam esse manancial e estão também correndo o risco de ter o abastecimento comprometido, o que eleva para quase 14 milhões o número de pessoas que podem sofrer com a seca. Alguns desses municípios já vêm adotando medidas, como o rodízio, para tentar atenuar o problema.
O governo do Estado e a Sabesp – empresa responsável pela operação de fornecimento de água e coleta e tratamento de esgotos de 363 dos 645 municípios do Estado, e em outros quatro por meio de parcerias com empresas locais – atribui a queda no volume dos reservatórios do Cantareira à estiagem que a região vem vivendo desde meados do ano passado.
Com efeito, desde agosto de 2013 o índice pluviométrico na região do Cantareira vem ficando abaixo da média histórica – com exceção de março deste ano, que choveu acima do que costuma nesse mês [veja aqui infográfico que mostra os níveis das represas do Cantareira e os índices pluviométricos desde 1º de janeiro de 2003]. Mesmo assim, o governo e a Sabesp têm grande parcela de responsabilidade na situação e a culpa não é apenas de São Pedro.
Maria Assunção Silva Dias, pesquisadora de Ciências Atmosféricas da USP, disse em entrevista ao serviço brasileiro da BBC em março deste ano que São Paulo já viveu períodos graves de escassez. “Não é nem preciso falar em mudanças climáticas. Existe a variabilidade normal do clima”, afirmou. “Desde 1930, tivemos vários anos de precipitação bem abaixo da média, alguns deles seguidos. Se aconteceu no passado, pode acontecer de novo. Não é surpresa.”
A especialista saca um argumento do qual o governador Geraldo Alckmin (PSDB) e a presidenta da Sabesp, Dilma Pena, fogem. Entre 2009 e 2013, lembra Maria Assunção, São Paulo viveu a situação contrária, com chuvas até 30% acima da média. Era natural, diz a especialista, que em seguida viesse um período de seca. “Tinha-se a ideia de que havia autossuficiência de água em São Paulo, mas não é verdade”, afirmou. “A crise expôs a fragilidade do sistema, que opera no limite. Bastaram três meses de pouca chuva para ver que ele não se sustenta.”
O arquiteto e urbanista Mário Reali, ex-prefeito de Diadema, no ABC paulista, e ex-presidente da Saned, a companhia de saneamento da cidade entre 2001 e 2002, concorda com a pesquisadora e diz que a seca expôs um problema que já existia, que é a dependência do Sistema Cantareira.
“Está havendo um crescimento muito grande no interior, como Campinas e Jundiaí, e, devido a isso, a região naturalmente vai precisar de mais água e não se pode interromper esse desenvolvimento”, afirmou Reali em seminário sobre a crise da água realizado no último dia 13 na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).
A Sabesp e o governo do Estado não podem alegar que foram pegos de surpresa com a estiagem. Desde 2004, a companhia foi alertada e orientada a tomar providências para evitar o pior. Naquele ano, houve a renovação da outorga (autorização) para a Sabesp retirar água das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, que alimentam o Sistema Cantareira. A outorga é concedida pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), o órgão gestor dos recursos hídricos do Estado de São Paulo.
No documento de renovação da outorga, em 6 de agosto de 2004, o Daee incluiu três artigos que obrigavam a Sabesp a elaborar plano de contingência para situações de emergência (como a ocorrência de uma estiagem prolongada), providenciar estudos e projetos para reduzir a dependência do Sistema Cantareira e manter programas permanentes de controle de perdas, uso racional, combate ao desperdício e incentivo ao reuso de água.
Segundo Mário Reali, nenhuma dessas exigências foi atendida pela Sabesp. “Em 2006, a empresa apresentou um plano diretor de abastecimento de água, que foi considerado insuficiente pelo Daee. Em 2008, foi criado um grupo de estudo da macrometrópole, que ficou parado e foi retomado só em 2013. Nenhum investimento foi feito. Não falou que planos iam fazer e só agora, com a situação grave, falam em usar o volume morto”, destacou o especialista.
O “volume morto” é o depósito de água que fica abaixo das tubulações de captação da Sabesp, portanto, não alcançáveis pelas bombas de sucção, e considerado reserva técnica para situações de emergência. Nunca foi utilizado em 40 anos de existência do Cantareira. Para chegar a essa reserva, a Sabesp gastou R$ 80 milhões em obras e equipamentos. O governador Geraldo Alckmin acionou as bombas no último dia 15 e a expectativa é de que essa água dê conta do abastecimento até outubro, quando, espera o governo, volte a estação de chuvas.
Especialistas temem a qualidade da água depositada no fundo das represas. Além do lodo, pode haver metais pesados, sedimentos e outras sujeiras. “Isso põe em risco a qualidade da água que abastece a população”, opina o deputado estadual Antonio Mentor (PT). Para o professor Ricardo Moretti, da Universidade Federal do ABC, além da questão dos resíduos, há o problema ecológico, da sobrevivência das espécies que vivem no fundo do reservatório.
O geólogo Delmar Mattes, ex-secretário de Vias Públicas e de Obras da Prefeitura de São Paulo na administração Luiza Erundina, aponta estudos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que mostram um desequilíbrio na natureza, baseado em estudos do clima realizados pela Organização das Nações Unidas (ONU). “Está diminuindo a incidência de chuvas nas áreas de mananciais e aumentando nas zonas urbanizadas. Não é concebível não aproveitar essa abundância para usos não potáveis dessa água”, afirmou.
Perdas e desperdício
Além da falta de investimentos na ampliação dos mananciais para diminuir a dependência do Sistema Cantareira, a Sabesp e o governo do Estado não cuidaram da manutenção da rede de abastecimento. Segundo relatório da própria Sabesp enviado à Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), 17% da rede na Região Metropolitana tem mais de 40 anos de uso e 34%, entre 30 e 40 anos.
Com uma rede tão antiga, o desgaste natural do material leva a vazamentos difíceis de serem detectados, uma vez que as tubulações são subterrâneas. Em 2013, segundo dados da própria companhia, 31% (quase um terço) de toda a água tratada foi perdida. Ou seja, no trajeto entre o reservatório e a caixa d’água das casas, perdeu-se pelo caminho. Só nas áreas centrais da capital paulista, as perdas chegam a 51%, conforme dados da companhia.
Segundo o especialista Rubem La Laina Porto, da Escola Politécnica da USP, “a maior parte das perdas ocorre nos ramais, que fazem a ligação dos dutos até as residências”, informou o professor. “Eles (os ramais) ficam enterrados, são muito antigos e têm um diagnóstico e um reparo mais difícil”, acrescentou. Conforme relatório da Arsesp, o volume anual de água perdida aumentou em 85,7 bilhões de litros entre 2001 e 2013 – quantidade suficiente para abastecer uma cidade do porte de Campinas.
O deputado estadual Marcos Martins (PT-SP) alerta ainda para o fato de que muitas das tubulações da Sabesp são feitas de amianto, uma fibra mineral considerada cancerígena pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O parlamentar propõe uma CPI para apurar as perdas de água na rede. “A Sabesp relaxou na contenção do desperdício”, afirmou Martins, autor do pedido de investigação. As assinaturas para a instalação da CPI começaram a ser coletadas. Até o fechamento desta matéria, 26 parlamentares tinham assinado o requerimento. São necessários 32 para que o pedido seja protocolado.
Segundo a bancada do PT, a companhia tem um contrato de R$ 400 milhões com a companhia japonesa de desenvolvimento – Jica –, executado desde 2009, mas cuja situação continua a mesma: perde-se cerca de 30% da água tratada para a região metropolitana de São Paulo. O requerimento de pedido da CPI descreve também a investigação da contratação de empresas de ex-diretores da Sabesp, que prestam serviço para a companhia, sobretudo em manutenção de redes.
Conflito de interesses
A Sabesp é uma empresa de economia mista – tem participação do Estado e de particulares em seu capital. O governo do Estado de São Paulo detém 50,3% das ações; o restante está distribuído entre acionistas: 25,5% das ações são negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (BM&F Bovespa) e 24,2%, na Bolsa de Nova Iorque (NYSE). Como empresa aberta, tem que distribuir parte do lucro apurado em cada exercício aos acionistas.
É uma empresa lucrativa. Em 2013, de acordo com seu balanço anual, alcançou lucro líquido de R$ 1,923 bilhão (de R$ 1,911 bilhão em 2012). Desse total, R$ 534,3 milhões foram distribuídos na forma de dividendos aos acionistas. O governo do Estado ficou com metade desse valor (cerca de R$ 268,7 milhões).
Para a bancada do PT na Alesp, ao passar para uma empresa de economia mista – que tem como finalidade principal obter lucro a seus acionistas – a responsabilidade pela política de saneamento do Estado, o governo estadual demonstra seu descaso com a área. “A Sabesp deveria atuar apenas como uma operadora dos serviços e o Estado deveria ter um órgão com a função de planejar as ações de saneamento”, diz documento da bancada.
Liciane Andrioli, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), critica essa visão do Estado sobre o setor. “A água é um bem público, é um direito humano. Mas, para o governo do Estado de São Paulo, não passa de uma mercadoria, uma commodity. A Sabesp se coloca como uma empresa privada que atende ao interesse dos acionistas, não da população”, afirmou a militante.
Para o ex-deputado estadual e ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema) Nivaldo Santana (PCdoB), o que se observa é um claro conflito de interesses. “A Sabesp tem um pilar público e outro privado. Tem um compromisso com seus acionistas, que não estão nem um pouco preocupados com a falta de água, mas, sim, com seu lucro”, afirmou.
“Essa realidade de investimentos insuficientes para evitar a atual crise é a prova cabal do conflito de interesses. A empresa quer exibir resultados cada vez mais exuberantes aos acionistas”, acrescentou. Santana não defende que a empresa seja deficitária. “Mas ela deveria usar esse lucro para reduzir o problema do abastecimento, reinvestir esses resultados na área de saneamento”, disse. “O problema não é técnico, é político. É de prioridade do governo”, emendou.
Tratamento de esgotos
O professor Ricardo Moretti aponta ainda que a empresa obtém esses lucros exorbitantes porque não trata e não pretende tratar o esgoto. “A Sabesp não consegue fazer o esgoto produzido pela população chegar às estações de tratamento. Ela trata muito menos do que gera, mas cobra por esse tratamento não realizado”, alertou. Com efeito, a companhia cobra, para cada litro de água consumido pelo usuário, outro litro de esgoto tratado.
Esse fato levou o Ministério Público do Estado a ingressar com uma ação contra a Sabesp em 2012. A Promotoria de Meio Ambiente do MP pede na ação indenização de R$ 11,2 bilhões da empresa por causa do lançamento, sem tratamento, de esgoto nos rios e represas da Região Metropolitana de São Paulo.
O MP também pede na ação civil pública que a Justiça obrigue a Sabesp a universalizar a coleta e o tratamento do esgoto da Região Metropolitana até 2018, sob pena de multa diária. De acordo com a Promotoria, isso é necessário para cessar a “poluição hídrica na Bacia Hidrográfica do Alto Tietê e também nas Represas Billings e do Guarapiranga, com prejuízos ao meio ambiente”.
Atualmente, segundo dados de relatório da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) datado de 2011, 86% do esgoto da Grande São Paulo é coletado pelas empresas de saneamento e, desse total, 49% é tratado. A Sabesp é a maior delas – atende 28 dos 34 municípios do Alto Tietê, segundo a Cetesb. Por ser a região mais populosa do Estado, é também a que despeja a maior quantidade de esgoto nos cursos d’água paulistas.
O governo do Estado também não cumpre sua parte para ampliar a coleta e tratamento de esgoto, uma medida sanitária que é fundamental para a saúde pública. Segundo levantamento da bancada petista na Alesp, apesar de receber a maior parte dos dividendos distribuídos pela Sabesp, a administração estadual não tinha, até 2011, investido nem um centavo desses recursos em saneamento.
A partir daquele ano, o governo lançou o programa Pró-Conexão, que subsidiaria financeiramente a execução de ramais intradomiciliares de ligação à rede de esgoto das famílias de baixa renda dos municípios operados pela Sabesp. O programa previa o investimento de R$ 349,5 milhões entre 2011 e 2018. Segundo a bancada, entre 2012 e 2013, deixaram de ser investidos no Pró-Conexão 60% dos recursos previstos.
E o que faz Alckmin?
Desde que a crise do Sistema Cantareira começou a ganhar as páginas da imprensa, o governador Geraldo Alckmin tem fugido do tema, ou, quando o aborda, procura jogar nas costas de outros a responsabilidade. A última grande desculpa do tucano foi dizer que a situação chegou a esse ponto porque São Paulo enfrenta a pior seca dos últimos 3.378 anos.
O governador também jamais assumiu a necessidade de racionamento na região atendida pelo Cantareira. Garante que a situação é contornável e que haverá água para todos. Mesmo assim, hesita em determinar quando começará a cobrança de multa para quem aumentar o consumo de água, para o qual já obteve aval da Arsesp .
“Caso o governador decrete a multa, vamos ingressar com ação judicial contra ela, por a considerarmos inconstitucional. O Alckmin ainda não decretou a penalidade porque, se o fizer, estará admitindo publicamente que há racionamento”, disse o presidente da CUT de São Paulo, Adi dos Santos.
Apesar de alegar publicamente que não há racionamento, a população de áreas mais altas da cidade de São Paulo já vem enfrentando a redução da oferta de água. Isso porque a Sabesp vem reduzindo a pressão da água na rede de distribuição durante a madrugada. Com pressão menor, a água não tem força para atingir a caixa de quem mora em regiões mais elevadas. Moradores de diversos bairros da zona norte da capital relatam a falta de água à noite.
Na última quinta-feira (15), quando a Sabesp começou a bombear a água do fundo das reservatórios, moradores e comerciantes do bairro da Lapa, na zona oeste da capital, relataram problemas no abastecimento, que já vêm ocorrendo há três semanas.
Imprensa ignora descaso
Apesar de ser flagrante a responsabilidade do governo do Estado e da Sabesp pela crise de água que afeta São Paulo, os principais jornais “compram” o argumento de Alckmin de que a culpa é da falta de chuvas. As reportagens se esforçam em apontar, dia a dia, que a região do Cantareira vive “a pior estiagem” dos últimos tempos, embarcam na proposta do governo de que é necessário economizar água e priorizam, na cobertura, o acompanhamento do ritmo em que a população vem reduzindo o consumo para ter direito ao desconto estabelecido pela Sabesp.
O jornal O Estado de S. Paulo chegou a publicar um guia, em sua edição impressa do dia 15, orientando sobre como economizar água. Em um quadro de perguntas e respostas, a primeira questão tenta explicar por que estamos vivendo essa crise de falta de água. A resposta: “O maior problema é do clima. Os registros meteorológicos apontam que esta é a maior seca desde que começaram a ser feitas as medições no Estado, há 84 anos.”
Sobre a falta de investimentos da empresa e do governo, o Estadão alivia para o lado dos tucanos, falando em “atrasos” de obras, não a ausência delas: “Mas houve também atrasos no andamento de outras obras de reservatórios que poderiam ter aliviado a pressão sobre o Cantareira.” Esse é o mesmo jornal que bancou a versão estranha de que “este tipo de estiagem tão crítica só ocorre a cada 3.378 anos”.
O tal estudo foi produzido pelo Centro Tecnológico de Hidráulica e Recursos Hídricos do governo do Estado, assinado pelo técnico Paulo Takashi Nakayama. No texto da matéria, a reportagem insinua ter ouvido pessoas do governo comemorando os dados do relatório. “Para integrantes do governo Alckmin, o estudo comprova que a crise atual é a mais severa da história, e ajuda a desconstruir as críticas feitas pelos adversários políticos de que faltou planejamento para evitar a escassez hídrica”, menciona o texto. Nenhuma pessoa que aponta a falta de investimentos do governo foi ouvida.
A Folha de S. Paulo segue na mesma linha. No dia 13, a dois dias do início do uso do “volume morto”, o jornal destacava o fato de a cidade estar havia 30 dias sem chuvas e informava o nível que estava o Sistema Cantareira. No dia 15, a manchete mostrava a nova queda do nível do manancial e o começo da retirada do “volume morto”. Nenhuma palavra sobre a parcela de culpa do governo do Estado e da Sabesp para chegar a esse ponto crítico.
O portal G1, que pertence às Organizações Globo, no dia em que Alckmin acionava, no interior do Estado, as bombas que começam a puxar água do fundo das represas, dava voz ao governador e à presidenta da Sabesp, em seu “esforço” em garantir o abastecimento à população e a qualidade dessa água. Sobre as causas do problema, o portal cita o argumento do governo paulista, segundo o qual o mês de janeiro teve apenas 87,8 milímetros de chuva. Em uma linha, a matéria tenta dizer que ouve os dois lados: “Para a oposição, a falta de investimentos na ampliação do Cantareira provocou o atual colapso”.
São Paulo está na iminência de ter quase metade de sua população da Região Metropolitana - cerca de 9,9 milhões de pessoas - sem água nos próximos meses. Essa é a população abastecida pelo Sistema Cantareira, um complexo composto por seis represas, uma estação elevatória, 45 quilômetros de túneis e uma estação de tratamento. O manancial contava no último dia 15 com apenas 8,2% de sua capacidade, o mais baixo volume desde sua existência, e as projeções mais otimistas indicam que essa quantidade de água dura apenas até junho – mês de realização da Copa do Mundo no Brasil.
O governo do Estado, sob o comando do PSDB há 20 anos, não fez os investimentos necessários para evitar essa situação e vem tomando medidas consideradas “temerárias”, como a aplicação de multa a quem aumentar o consumo, tentar fazer chover bombeando nuvens e até ameaçando retirar água da bacia do Rio Paraíba do Sul, que abastece parte importante da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Mas não é apenas a Região Metropolitana de São Paulo que é atingida pela seca no Cantareira. Cerca de 4 milhões de moradores de cidades do interior do Estado também dependem da água dos rios que alimentam esse manancial e estão também correndo o risco de ter o abastecimento comprometido, o que eleva para quase 14 milhões o número de pessoas que podem sofrer com a seca. Alguns desses municípios já vêm adotando medidas, como o rodízio, para tentar atenuar o problema.
O governo do Estado e a Sabesp – empresa responsável pela operação de fornecimento de água e coleta e tratamento de esgotos de 363 dos 645 municípios do Estado, e em outros quatro por meio de parcerias com empresas locais – atribui a queda no volume dos reservatórios do Cantareira à estiagem que a região vem vivendo desde meados do ano passado.
Com efeito, desde agosto de 2013 o índice pluviométrico na região do Cantareira vem ficando abaixo da média histórica – com exceção de março deste ano, que choveu acima do que costuma nesse mês [veja aqui infográfico que mostra os níveis das represas do Cantareira e os índices pluviométricos desde 1º de janeiro de 2003]. Mesmo assim, o governo e a Sabesp têm grande parcela de responsabilidade na situação e a culpa não é apenas de São Pedro.
Maria Assunção Silva Dias, pesquisadora de Ciências Atmosféricas da USP, disse em entrevista ao serviço brasileiro da BBC em março deste ano que São Paulo já viveu períodos graves de escassez. “Não é nem preciso falar em mudanças climáticas. Existe a variabilidade normal do clima”, afirmou. “Desde 1930, tivemos vários anos de precipitação bem abaixo da média, alguns deles seguidos. Se aconteceu no passado, pode acontecer de novo. Não é surpresa.”
A especialista saca um argumento do qual o governador Geraldo Alckmin (PSDB) e a presidenta da Sabesp, Dilma Pena, fogem. Entre 2009 e 2013, lembra Maria Assunção, São Paulo viveu a situação contrária, com chuvas até 30% acima da média. Era natural, diz a especialista, que em seguida viesse um período de seca. “Tinha-se a ideia de que havia autossuficiência de água em São Paulo, mas não é verdade”, afirmou. “A crise expôs a fragilidade do sistema, que opera no limite. Bastaram três meses de pouca chuva para ver que ele não se sustenta.”
O arquiteto e urbanista Mário Reali, ex-prefeito de Diadema, no ABC paulista, e ex-presidente da Saned, a companhia de saneamento da cidade entre 2001 e 2002, concorda com a pesquisadora e diz que a seca expôs um problema que já existia, que é a dependência do Sistema Cantareira.
“Está havendo um crescimento muito grande no interior, como Campinas e Jundiaí, e, devido a isso, a região naturalmente vai precisar de mais água e não se pode interromper esse desenvolvimento”, afirmou Reali em seminário sobre a crise da água realizado no último dia 13 na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).
A Sabesp e o governo do Estado não podem alegar que foram pegos de surpresa com a estiagem. Desde 2004, a companhia foi alertada e orientada a tomar providências para evitar o pior. Naquele ano, houve a renovação da outorga (autorização) para a Sabesp retirar água das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, que alimentam o Sistema Cantareira. A outorga é concedida pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), o órgão gestor dos recursos hídricos do Estado de São Paulo.
No documento de renovação da outorga, em 6 de agosto de 2004, o Daee incluiu três artigos que obrigavam a Sabesp a elaborar plano de contingência para situações de emergência (como a ocorrência de uma estiagem prolongada), providenciar estudos e projetos para reduzir a dependência do Sistema Cantareira e manter programas permanentes de controle de perdas, uso racional, combate ao desperdício e incentivo ao reuso de água.
Segundo Mário Reali, nenhuma dessas exigências foi atendida pela Sabesp. “Em 2006, a empresa apresentou um plano diretor de abastecimento de água, que foi considerado insuficiente pelo Daee. Em 2008, foi criado um grupo de estudo da macrometrópole, que ficou parado e foi retomado só em 2013. Nenhum investimento foi feito. Não falou que planos iam fazer e só agora, com a situação grave, falam em usar o volume morto”, destacou o especialista.
O “volume morto” é o depósito de água que fica abaixo das tubulações de captação da Sabesp, portanto, não alcançáveis pelas bombas de sucção, e considerado reserva técnica para situações de emergência. Nunca foi utilizado em 40 anos de existência do Cantareira. Para chegar a essa reserva, a Sabesp gastou R$ 80 milhões em obras e equipamentos. O governador Geraldo Alckmin acionou as bombas no último dia 15 e a expectativa é de que essa água dê conta do abastecimento até outubro, quando, espera o governo, volte a estação de chuvas.
Especialistas temem a qualidade da água depositada no fundo das represas. Além do lodo, pode haver metais pesados, sedimentos e outras sujeiras. “Isso põe em risco a qualidade da água que abastece a população”, opina o deputado estadual Antonio Mentor (PT). Para o professor Ricardo Moretti, da Universidade Federal do ABC, além da questão dos resíduos, há o problema ecológico, da sobrevivência das espécies que vivem no fundo do reservatório.
O geólogo Delmar Mattes, ex-secretário de Vias Públicas e de Obras da Prefeitura de São Paulo na administração Luiza Erundina, aponta estudos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que mostram um desequilíbrio na natureza, baseado em estudos do clima realizados pela Organização das Nações Unidas (ONU). “Está diminuindo a incidência de chuvas nas áreas de mananciais e aumentando nas zonas urbanizadas. Não é concebível não aproveitar essa abundância para usos não potáveis dessa água”, afirmou.
Perdas e desperdício
Além da falta de investimentos na ampliação dos mananciais para diminuir a dependência do Sistema Cantareira, a Sabesp e o governo do Estado não cuidaram da manutenção da rede de abastecimento. Segundo relatório da própria Sabesp enviado à Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), 17% da rede na Região Metropolitana tem mais de 40 anos de uso e 34%, entre 30 e 40 anos.
Com uma rede tão antiga, o desgaste natural do material leva a vazamentos difíceis de serem detectados, uma vez que as tubulações são subterrâneas. Em 2013, segundo dados da própria companhia, 31% (quase um terço) de toda a água tratada foi perdida. Ou seja, no trajeto entre o reservatório e a caixa d’água das casas, perdeu-se pelo caminho. Só nas áreas centrais da capital paulista, as perdas chegam a 51%, conforme dados da companhia.
Segundo o especialista Rubem La Laina Porto, da Escola Politécnica da USP, “a maior parte das perdas ocorre nos ramais, que fazem a ligação dos dutos até as residências”, informou o professor. “Eles (os ramais) ficam enterrados, são muito antigos e têm um diagnóstico e um reparo mais difícil”, acrescentou. Conforme relatório da Arsesp, o volume anual de água perdida aumentou em 85,7 bilhões de litros entre 2001 e 2013 – quantidade suficiente para abastecer uma cidade do porte de Campinas.
O deputado estadual Marcos Martins (PT-SP) alerta ainda para o fato de que muitas das tubulações da Sabesp são feitas de amianto, uma fibra mineral considerada cancerígena pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O parlamentar propõe uma CPI para apurar as perdas de água na rede. “A Sabesp relaxou na contenção do desperdício”, afirmou Martins, autor do pedido de investigação. As assinaturas para a instalação da CPI começaram a ser coletadas. Até o fechamento desta matéria, 26 parlamentares tinham assinado o requerimento. São necessários 32 para que o pedido seja protocolado.
Segundo a bancada do PT, a companhia tem um contrato de R$ 400 milhões com a companhia japonesa de desenvolvimento – Jica –, executado desde 2009, mas cuja situação continua a mesma: perde-se cerca de 30% da água tratada para a região metropolitana de São Paulo. O requerimento de pedido da CPI descreve também a investigação da contratação de empresas de ex-diretores da Sabesp, que prestam serviço para a companhia, sobretudo em manutenção de redes.
Conflito de interesses
A Sabesp é uma empresa de economia mista – tem participação do Estado e de particulares em seu capital. O governo do Estado de São Paulo detém 50,3% das ações; o restante está distribuído entre acionistas: 25,5% das ações são negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (BM&F Bovespa) e 24,2%, na Bolsa de Nova Iorque (NYSE). Como empresa aberta, tem que distribuir parte do lucro apurado em cada exercício aos acionistas.
É uma empresa lucrativa. Em 2013, de acordo com seu balanço anual, alcançou lucro líquido de R$ 1,923 bilhão (de R$ 1,911 bilhão em 2012). Desse total, R$ 534,3 milhões foram distribuídos na forma de dividendos aos acionistas. O governo do Estado ficou com metade desse valor (cerca de R$ 268,7 milhões).
Para a bancada do PT na Alesp, ao passar para uma empresa de economia mista – que tem como finalidade principal obter lucro a seus acionistas – a responsabilidade pela política de saneamento do Estado, o governo estadual demonstra seu descaso com a área. “A Sabesp deveria atuar apenas como uma operadora dos serviços e o Estado deveria ter um órgão com a função de planejar as ações de saneamento”, diz documento da bancada.
Liciane Andrioli, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), critica essa visão do Estado sobre o setor. “A água é um bem público, é um direito humano. Mas, para o governo do Estado de São Paulo, não passa de uma mercadoria, uma commodity. A Sabesp se coloca como uma empresa privada que atende ao interesse dos acionistas, não da população”, afirmou a militante.
Para o ex-deputado estadual e ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema) Nivaldo Santana (PCdoB), o que se observa é um claro conflito de interesses. “A Sabesp tem um pilar público e outro privado. Tem um compromisso com seus acionistas, que não estão nem um pouco preocupados com a falta de água, mas, sim, com seu lucro”, afirmou.
“Essa realidade de investimentos insuficientes para evitar a atual crise é a prova cabal do conflito de interesses. A empresa quer exibir resultados cada vez mais exuberantes aos acionistas”, acrescentou. Santana não defende que a empresa seja deficitária. “Mas ela deveria usar esse lucro para reduzir o problema do abastecimento, reinvestir esses resultados na área de saneamento”, disse. “O problema não é técnico, é político. É de prioridade do governo”, emendou.
Tratamento de esgotos
O professor Ricardo Moretti aponta ainda que a empresa obtém esses lucros exorbitantes porque não trata e não pretende tratar o esgoto. “A Sabesp não consegue fazer o esgoto produzido pela população chegar às estações de tratamento. Ela trata muito menos do que gera, mas cobra por esse tratamento não realizado”, alertou. Com efeito, a companhia cobra, para cada litro de água consumido pelo usuário, outro litro de esgoto tratado.
Esse fato levou o Ministério Público do Estado a ingressar com uma ação contra a Sabesp em 2012. A Promotoria de Meio Ambiente do MP pede na ação indenização de R$ 11,2 bilhões da empresa por causa do lançamento, sem tratamento, de esgoto nos rios e represas da Região Metropolitana de São Paulo.
O MP também pede na ação civil pública que a Justiça obrigue a Sabesp a universalizar a coleta e o tratamento do esgoto da Região Metropolitana até 2018, sob pena de multa diária. De acordo com a Promotoria, isso é necessário para cessar a “poluição hídrica na Bacia Hidrográfica do Alto Tietê e também nas Represas Billings e do Guarapiranga, com prejuízos ao meio ambiente”.
Atualmente, segundo dados de relatório da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) datado de 2011, 86% do esgoto da Grande São Paulo é coletado pelas empresas de saneamento e, desse total, 49% é tratado. A Sabesp é a maior delas – atende 28 dos 34 municípios do Alto Tietê, segundo a Cetesb. Por ser a região mais populosa do Estado, é também a que despeja a maior quantidade de esgoto nos cursos d’água paulistas.
O governo do Estado também não cumpre sua parte para ampliar a coleta e tratamento de esgoto, uma medida sanitária que é fundamental para a saúde pública. Segundo levantamento da bancada petista na Alesp, apesar de receber a maior parte dos dividendos distribuídos pela Sabesp, a administração estadual não tinha, até 2011, investido nem um centavo desses recursos em saneamento.
A partir daquele ano, o governo lançou o programa Pró-Conexão, que subsidiaria financeiramente a execução de ramais intradomiciliares de ligação à rede de esgoto das famílias de baixa renda dos municípios operados pela Sabesp. O programa previa o investimento de R$ 349,5 milhões entre 2011 e 2018. Segundo a bancada, entre 2012 e 2013, deixaram de ser investidos no Pró-Conexão 60% dos recursos previstos.
E o que faz Alckmin?
Desde que a crise do Sistema Cantareira começou a ganhar as páginas da imprensa, o governador Geraldo Alckmin tem fugido do tema, ou, quando o aborda, procura jogar nas costas de outros a responsabilidade. A última grande desculpa do tucano foi dizer que a situação chegou a esse ponto porque São Paulo enfrenta a pior seca dos últimos 3.378 anos.
O governador também jamais assumiu a necessidade de racionamento na região atendida pelo Cantareira. Garante que a situação é contornável e que haverá água para todos. Mesmo assim, hesita em determinar quando começará a cobrança de multa para quem aumentar o consumo de água, para o qual já obteve aval da Arsesp .
“Caso o governador decrete a multa, vamos ingressar com ação judicial contra ela, por a considerarmos inconstitucional. O Alckmin ainda não decretou a penalidade porque, se o fizer, estará admitindo publicamente que há racionamento”, disse o presidente da CUT de São Paulo, Adi dos Santos.
Apesar de alegar publicamente que não há racionamento, a população de áreas mais altas da cidade de São Paulo já vem enfrentando a redução da oferta de água. Isso porque a Sabesp vem reduzindo a pressão da água na rede de distribuição durante a madrugada. Com pressão menor, a água não tem força para atingir a caixa de quem mora em regiões mais elevadas. Moradores de diversos bairros da zona norte da capital relatam a falta de água à noite.
Na última quinta-feira (15), quando a Sabesp começou a bombear a água do fundo das reservatórios, moradores e comerciantes do bairro da Lapa, na zona oeste da capital, relataram problemas no abastecimento, que já vêm ocorrendo há três semanas.
Imprensa ignora descaso
Apesar de ser flagrante a responsabilidade do governo do Estado e da Sabesp pela crise de água que afeta São Paulo, os principais jornais “compram” o argumento de Alckmin de que a culpa é da falta de chuvas. As reportagens se esforçam em apontar, dia a dia, que a região do Cantareira vive “a pior estiagem” dos últimos tempos, embarcam na proposta do governo de que é necessário economizar água e priorizam, na cobertura, o acompanhamento do ritmo em que a população vem reduzindo o consumo para ter direito ao desconto estabelecido pela Sabesp.
O jornal O Estado de S. Paulo chegou a publicar um guia, em sua edição impressa do dia 15, orientando sobre como economizar água. Em um quadro de perguntas e respostas, a primeira questão tenta explicar por que estamos vivendo essa crise de falta de água. A resposta: “O maior problema é do clima. Os registros meteorológicos apontam que esta é a maior seca desde que começaram a ser feitas as medições no Estado, há 84 anos.”
Sobre a falta de investimentos da empresa e do governo, o Estadão alivia para o lado dos tucanos, falando em “atrasos” de obras, não a ausência delas: “Mas houve também atrasos no andamento de outras obras de reservatórios que poderiam ter aliviado a pressão sobre o Cantareira.” Esse é o mesmo jornal que bancou a versão estranha de que “este tipo de estiagem tão crítica só ocorre a cada 3.378 anos”.
O tal estudo foi produzido pelo Centro Tecnológico de Hidráulica e Recursos Hídricos do governo do Estado, assinado pelo técnico Paulo Takashi Nakayama. No texto da matéria, a reportagem insinua ter ouvido pessoas do governo comemorando os dados do relatório. “Para integrantes do governo Alckmin, o estudo comprova que a crise atual é a mais severa da história, e ajuda a desconstruir as críticas feitas pelos adversários políticos de que faltou planejamento para evitar a escassez hídrica”, menciona o texto. Nenhuma pessoa que aponta a falta de investimentos do governo foi ouvida.
A Folha de S. Paulo segue na mesma linha. No dia 13, a dois dias do início do uso do “volume morto”, o jornal destacava o fato de a cidade estar havia 30 dias sem chuvas e informava o nível que estava o Sistema Cantareira. No dia 15, a manchete mostrava a nova queda do nível do manancial e o começo da retirada do “volume morto”. Nenhuma palavra sobre a parcela de culpa do governo do Estado e da Sabesp para chegar a esse ponto crítico.
O portal G1, que pertence às Organizações Globo, no dia em que Alckmin acionava, no interior do Estado, as bombas que começam a puxar água do fundo das represas, dava voz ao governador e à presidenta da Sabesp, em seu “esforço” em garantir o abastecimento à população e a qualidade dessa água. Sobre as causas do problema, o portal cita o argumento do governo paulista, segundo o qual o mês de janeiro teve apenas 87,8 milímetros de chuva. Em uma linha, a matéria tenta dizer que ouve os dois lados: “Para a oposição, a falta de investimentos na ampliação do Cantareira provocou o atual colapso”.
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