Pensei que poderíamos esperar um pouco - quem sabe um jogo mais difícil, ou mesmo uma eventual derrota da Seleção numa partida - para assistir às conhecidas manifestações de preconceito contra nossos jogadores de futebol. Você sabe.
Se os títulos mundiais ajudam a criar uma celebração nacional que permite perdoar temporariamente as diferenças gritantes entre os brasileiros e mascarar o nosso racismo, as derrotas costumam abrir a lata de lixo dos piores instintos.
Costumam ser acompanhadas do vocabulário e expressões que, com clareza mais ou menor, remetem a herança cultural de uma sociedade com passado escravocrata.
Se os títulos mundiais criam heróis, as derrotas criaram “covardes” e “vendidos.” Na melhor das hipóteses, “mercenários”. (Como se pode confiar em quem “cobra” para defender a pátria?!)
Nós temos na verdade uma relação ambígua com o futebol. Nas vitórias, adoramos o prestígio que cinco títulos mundiais proporcionam.
Em caso de derrota, o futebol permite a desforra de quem se sente incomodado com a influência e o prestígio que uma Copa do Mundo permite aos brasileiros pobres, especialmente negros, que conseguiram destacar-se num esporte que hoje mobiliza bilhões de dólares no mundo inteiro, abre as portas mais exclusivas e seduz belíssimas mulheres. Imagine a inveja. A raiva.
Antes mesmo da Copa começar, acabo de saber que tem gente reclamando que nossos craques não costumam ler Jean Paul Sartre e preferem samba e pagode. Então é isso. Além de jogar futebol, tentar ganhar a Copa em meio a tanta pressão e hostilidade, eles deveriam ler Sartre.
Você sabe a origem da história.
Ribery, o grande craque da França, citou o título – veja bem, o título – de um romance de Jean Paul Sartre, “Com a morte na alma”, terceiro volume de uma trilogia de ficção situada na Segunda Guerra, para definir seus sentimentos no momento em que recebeu a notícia de que estava fora da Copa. Normal.
Sartre é um monumento nacional da cultura francesa e leitura escolar obrigatória. “Com a morte na alma” retrata a França ocupada, fala dos campos de concentração. Li a trilogia na juventude e gostei muito.
Mas é bom lembrar que pelo menos neste aspecto nossos craques de futebol são iguais a maioria de nossos estudantes, médicos, advogados, publicitários, jornalistas. Eles também não leram Sartre. Ande pelos cafés de Higienópolis (ou de qualquer outro bairro habitado por pessoas de maior educação formal do que a média) e pergunte: você leu Sarte? Sabe o titulo de uma obra?
Esqueça Sartre e procure por grandes autores nacionais no Largo São Francisco, na Paulista.
Joaquim Nabuco? Guimarães Rosa? Machado de Assis? Difícil.
É muito provável que você ouça menções a Paulo Coelho. Foi ele que chamou Ronaldo, o Fenômeno, de imbecil, porque não disse o que achava que deveria ser dito sobre a Copa. (O próprio Fenômeno, numa virada fenomenal, disse 48 horas depois que sentia vergonha da Copa, da qual foi um dos organizadores durante três anos)
Depois do Sartre de Ribery, teve gente que ficou passando mal só de pensar no autor que um jogador brasileiro iria citar, se ficasse na mesma situação. Em tom de ironia, apresentou-se uma lista de sambistas e pagodeiros que poderiam ser mencionados. Nós sabemos qual é a origem do samba, do pagode. E sabemos aonde essa comparação quer levar, o que ela sugere.
Vamos combinar: embora tenha produzido um pensamento indomável, Sartre foi incorporado de forma desinfetada à cultura de muitos intelectuais brasileiros, tornando-se sinônimo de complexos profundos. Mais do que uma visão cultural, foi transformado numa espécie de grife.
Visto de forma superficial, ele tem um “não sei quê” capaz de provocar dores e tristezas especiais. Talvez porque seja “francês” e no passado muita gente que não tinha se rendido as delícias de Nova York-Washington achava que isso era melhor do que “norte-americano.”
Ou porque era vivo e radical quando alguns de seus admiradores nostálgicos de hoje se imaginavam muito mais vivos e mais radicais do que se tornaram.
Seja como for, numa campanha presidencial, quando Fernando Henrique e Lula se enfrentavam, houve quem dissesse que o país iria escolher entre um Sartre e um encanador.
Na verdade, Sarte é um autor pouco lido até por muitos cidadãos que deveriam ter a obrigação profissional de estudar sua obra, como professores e intelectuais. O que é uma pena.
Estudioso da vida em países colonizados, capaz de associar o racismo e a tortura ao domínio colonial europeu sobre a África, Sartre deixou ensinamentos úteis para o entendimento da vida brasileira.
Vamos estar preparados, portanto. Qualquer derrota nos gramados irá permitir o “mórbido deleite,” como dizia Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, página 370:
“Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo nascido e criado depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado do menino Brás Cubas na malvadeza e no gosto de judiar (sic) com o negro. Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com o animais é bem nosso: é de todo menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata.”
1 comentários:
Mas a Copa tinha que ser somente para os Senhores da Casa Grande?
Se o legado que a Copa tem pra deixar for preservar somente sic “...a influência e o prestígio que uma Copa do Mundo permite aos brasileiros pobres, especialmente negros, que conseguiram destacar-se num esporte que hoje mobiliza bilhões de dólares..." têm razão aqueles que estão nas ruas indignados contra os péssimos serviços públicos que o Estado presta, protestando para obter maior espaço cultural nas comunidades, participação direta na política, e querendo servir com suas próprias mãos e nos seus próprios pratos parte considerável da fatia do grande bolo constituído pelo superávit primário, tanto na quantidade da cobertura e do recheio.
Saudações.
Fernando Claro
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