Por Soraya Misleh, no jornal Brasil de Fato:
A depender de como os jornalistas que estão cobrindo o massacre israelense em Gaza (Palestina ocupada) transmitam a informação, são demitidos ou transferidos para outras regiões. A denúncia consta de reportagem da jornalista Rita Freire, publicada em 18 de julho último no site da Ciranda Internacional de Comunicação Compartilhada. Corrobora o que o movimento global pela democratização das comunicações tem apontado há tempos: a informação está longe de ser livre. O espectro público da mídia permanece ocupado e a serviço das grandes corporações transnacionais, que reproduzem e atendem aos interesses dos “donos do poder”. Nesse caso, Israel e seus aliados.
Fato é que, a despeito desse cerceamento à informação, o genocídio em Gaza assume proporções que têm abalado profundamente a imagem de Israel junto à opinião pública mundial. Não obstante as mais de 1.800 vítimas fatais, 9 mil feridos e 450 mil deslocados internamente de suas casas em menos de um mês, politicamente, sairá derrotado. Seu isolamento deve aumentar, e o Brasil é chave para intensificar esse movimento na América Latina. Assim, precisa urgentemente ouvir as vozes das ruas e romper relações comerciais, militares e diplomáticas com Israel. Não é mais possível, diante das novas tecnologias, omitir o massacre do povo palestino em andamento. Imagens chocantes são postadas diretamente de Gaza nas redes sociais, furando o tradicional bloqueio midiático.
Manuel Castells, em seu O poder da identidade (A era da informação: economia sociedade e cultura – Volume 2, Ed. Paz e Terra: 2008), elucida as transformações e influência advindas das novas tecnologias da informação sobre os meios hegemônicos. Para ele, “a mídia eletrônica (não só o rádio e a televisão, mas todas as formas de comunicação, tais como o jornal e a Internet) passou a se tornar o espaço privilegiado da política. Não que toda a política possa ser reduzida a imagens, sons ou manipulações simbólicas. Contudo, sem a mídia, não há meios de adquirir ou exercer poder”.
Os meios de comunicação hegemônicos buscam formas de noticiar o que é impossível de ser omitido, sem deixar de servir aos seus senhores. É o que vemos no Brasil inclusive. Aqui, as poucas famílias que controlam o espectro midiático iniciaram a cobertura de Gaza com um discurso simpático à ofensiva israelense, comprando a velha ideia de defesa. Haviam sido capturados e, 18 dias depois, em final de junho, mortos três jovens colonos judeus. A resposta israelense eram os ataques ao Hamas, que controla a faixa de Gaza. A costumeira forma fragmentada de noticiar deixou, como de praxe, a contextualização histórica de fora e passou longe dos cálculos políticos do governo israelense, diante de uma crise interna.
Embora as reportagens apontassem que o Hamas não havia assumido a autoria das mortes – que se deram em circunstâncias ainda hoje não esclarecidas –, em nenhum momento informaram que os colonos circulavam entre assentamentos ilegais na Cisjordânia (Palestina ocupada), ali colocados por Israel para dar cabo a sua política de colonização e apartheid. Também não noticiaram que, nessa ocupação, um dos instrumentos tem sido a cultura do ódio. Na área onde foram mortos os colonos, Hebron (Al Khalil), encontram-se extremistas israelenses que agridem cotidianamente os palestinos. Nas paredes, escrevem o que propagam aos quatro ventos: “Morte aos árabes!”. Portanto, a responsabilidade pelo que ocorreu com os três jovens é de Israel.
Além disso, como é regra, os meios de comunicação não reportaram que, em 15 de maio, nas manifestações pacíficas para lembrar a nakba – catástrofe, como os árabes se referem à criação do Estado de Israel, naquela data, há 66 anos – , dois jovens palestinos foram assassinados a sangue frio pelo exército de Israel. A opressão cotidiana, prisões políticas, demolição de casas, tudo isso ficou e continua ausente do noticiário.
Iniciada a ofensiva em Gaza, o máximo que se ousava dizer era que a ação por parte de Israel era “desproporcional” – discurso que ainda prevalece, mas agora também aparece o termo “massacre”, quando é impossível negá-lo, frente a bombardeios até de escolas da Organização das Nações Unidas (ONU), repletas de crianças, e hospitais. Nos telejornais e na grande mídia impressa, contudo, insiste-se em falar em guerra entre Israel e Hamas, e não em genocídio do povo palestino. A afirmação, não raro, é que não se tem um cessar-fogo definitivo por intransigência mútua.
Mas guerra pressupõe dois lados iguais, o que é desmentido pelas baixas de um lado e de outro (em Israel, cerca de 60, quase a totalidade de soldados). Também ignora-se o fato de que o argumento israelense de defesa não se aplica, já que se trata de território ocupado ilegalmente – situação em que a resistência é legítima, inclusive face ao direito internacional.
Guerra sugere um evento isolado, quando na realidade trata-se de mais um capítulo da limpeza étnica do povo palestino. Essa se iniciou após a recomendação da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 29 de novembro de 1947, de partilha da Palestina em um Estado judeu e um árabe, sem consulta aos habitantes locais. A recomendação dava sinal verde ao movimento sionista – que visava criar um estado homogêneo exclusivamente judeu em terras palestinas – para colocar em prática seu plano de limpeza étnica.
Ondas de imigração de judeus, sobretudo da Europa do leste, para a conquista da terra e do trabalho, não foram suficientes para garantir a colonização da Palestina. A maioria da população (70%) continuava sendo não judia, e a única maneira de se criar um Estado homogêneo, com essa característica, era promover a limpeza étnica. O resultado foi a expulsão de 800 mil palestinos de suas terras e propriedades e a destruição de cerca de 500 aldeias. Assim, na sua criação, em 15 de maio de 1948, Israel passava a ocupar 78% da Palestina histórica. Dava-se início a uma das maiores injustiças da era contemporânea, aprofundada em 1967, quando o restante do território foi ocupado (Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental).
A ausência de contextualização histórica na grande mídia mantém a questão palestina como ilustre desconhecida. Também quase não se fala da resistência heroica que tem se dado agora nas ruas da Cisjordânia e das mobilizações onde hoje é Israel, capitaneadas pelos palestinos que vivem ali – 1,5 milhão no total (20% da população).
Esse quadro mostra que é preciso fortalecer a batalha pela informação. A mídia hegemônica, alimentada pelas poucas agências de notícias internacionais, foi e continua sendo cúmplice da colonização e apartheid a que estão submetidos os palestinos. Democratizar as comunicações é parte crucial da luta pela transformação dessa realidade.
* Soraya Misleh, jornalista palestino-brasileira, da Ciranda Internacional de Comunicação Compartilhada e Frente em Defesa do Povo Palestino
A depender de como os jornalistas que estão cobrindo o massacre israelense em Gaza (Palestina ocupada) transmitam a informação, são demitidos ou transferidos para outras regiões. A denúncia consta de reportagem da jornalista Rita Freire, publicada em 18 de julho último no site da Ciranda Internacional de Comunicação Compartilhada. Corrobora o que o movimento global pela democratização das comunicações tem apontado há tempos: a informação está longe de ser livre. O espectro público da mídia permanece ocupado e a serviço das grandes corporações transnacionais, que reproduzem e atendem aos interesses dos “donos do poder”. Nesse caso, Israel e seus aliados.
Fato é que, a despeito desse cerceamento à informação, o genocídio em Gaza assume proporções que têm abalado profundamente a imagem de Israel junto à opinião pública mundial. Não obstante as mais de 1.800 vítimas fatais, 9 mil feridos e 450 mil deslocados internamente de suas casas em menos de um mês, politicamente, sairá derrotado. Seu isolamento deve aumentar, e o Brasil é chave para intensificar esse movimento na América Latina. Assim, precisa urgentemente ouvir as vozes das ruas e romper relações comerciais, militares e diplomáticas com Israel. Não é mais possível, diante das novas tecnologias, omitir o massacre do povo palestino em andamento. Imagens chocantes são postadas diretamente de Gaza nas redes sociais, furando o tradicional bloqueio midiático.
Manuel Castells, em seu O poder da identidade (A era da informação: economia sociedade e cultura – Volume 2, Ed. Paz e Terra: 2008), elucida as transformações e influência advindas das novas tecnologias da informação sobre os meios hegemônicos. Para ele, “a mídia eletrônica (não só o rádio e a televisão, mas todas as formas de comunicação, tais como o jornal e a Internet) passou a se tornar o espaço privilegiado da política. Não que toda a política possa ser reduzida a imagens, sons ou manipulações simbólicas. Contudo, sem a mídia, não há meios de adquirir ou exercer poder”.
Os meios de comunicação hegemônicos buscam formas de noticiar o que é impossível de ser omitido, sem deixar de servir aos seus senhores. É o que vemos no Brasil inclusive. Aqui, as poucas famílias que controlam o espectro midiático iniciaram a cobertura de Gaza com um discurso simpático à ofensiva israelense, comprando a velha ideia de defesa. Haviam sido capturados e, 18 dias depois, em final de junho, mortos três jovens colonos judeus. A resposta israelense eram os ataques ao Hamas, que controla a faixa de Gaza. A costumeira forma fragmentada de noticiar deixou, como de praxe, a contextualização histórica de fora e passou longe dos cálculos políticos do governo israelense, diante de uma crise interna.
Embora as reportagens apontassem que o Hamas não havia assumido a autoria das mortes – que se deram em circunstâncias ainda hoje não esclarecidas –, em nenhum momento informaram que os colonos circulavam entre assentamentos ilegais na Cisjordânia (Palestina ocupada), ali colocados por Israel para dar cabo a sua política de colonização e apartheid. Também não noticiaram que, nessa ocupação, um dos instrumentos tem sido a cultura do ódio. Na área onde foram mortos os colonos, Hebron (Al Khalil), encontram-se extremistas israelenses que agridem cotidianamente os palestinos. Nas paredes, escrevem o que propagam aos quatro ventos: “Morte aos árabes!”. Portanto, a responsabilidade pelo que ocorreu com os três jovens é de Israel.
Além disso, como é regra, os meios de comunicação não reportaram que, em 15 de maio, nas manifestações pacíficas para lembrar a nakba – catástrofe, como os árabes se referem à criação do Estado de Israel, naquela data, há 66 anos – , dois jovens palestinos foram assassinados a sangue frio pelo exército de Israel. A opressão cotidiana, prisões políticas, demolição de casas, tudo isso ficou e continua ausente do noticiário.
Iniciada a ofensiva em Gaza, o máximo que se ousava dizer era que a ação por parte de Israel era “desproporcional” – discurso que ainda prevalece, mas agora também aparece o termo “massacre”, quando é impossível negá-lo, frente a bombardeios até de escolas da Organização das Nações Unidas (ONU), repletas de crianças, e hospitais. Nos telejornais e na grande mídia impressa, contudo, insiste-se em falar em guerra entre Israel e Hamas, e não em genocídio do povo palestino. A afirmação, não raro, é que não se tem um cessar-fogo definitivo por intransigência mútua.
Mas guerra pressupõe dois lados iguais, o que é desmentido pelas baixas de um lado e de outro (em Israel, cerca de 60, quase a totalidade de soldados). Também ignora-se o fato de que o argumento israelense de defesa não se aplica, já que se trata de território ocupado ilegalmente – situação em que a resistência é legítima, inclusive face ao direito internacional.
Guerra sugere um evento isolado, quando na realidade trata-se de mais um capítulo da limpeza étnica do povo palestino. Essa se iniciou após a recomendação da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 29 de novembro de 1947, de partilha da Palestina em um Estado judeu e um árabe, sem consulta aos habitantes locais. A recomendação dava sinal verde ao movimento sionista – que visava criar um estado homogêneo exclusivamente judeu em terras palestinas – para colocar em prática seu plano de limpeza étnica.
Ondas de imigração de judeus, sobretudo da Europa do leste, para a conquista da terra e do trabalho, não foram suficientes para garantir a colonização da Palestina. A maioria da população (70%) continuava sendo não judia, e a única maneira de se criar um Estado homogêneo, com essa característica, era promover a limpeza étnica. O resultado foi a expulsão de 800 mil palestinos de suas terras e propriedades e a destruição de cerca de 500 aldeias. Assim, na sua criação, em 15 de maio de 1948, Israel passava a ocupar 78% da Palestina histórica. Dava-se início a uma das maiores injustiças da era contemporânea, aprofundada em 1967, quando o restante do território foi ocupado (Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental).
A ausência de contextualização histórica na grande mídia mantém a questão palestina como ilustre desconhecida. Também quase não se fala da resistência heroica que tem se dado agora nas ruas da Cisjordânia e das mobilizações onde hoje é Israel, capitaneadas pelos palestinos que vivem ali – 1,5 milhão no total (20% da população).
Esse quadro mostra que é preciso fortalecer a batalha pela informação. A mídia hegemônica, alimentada pelas poucas agências de notícias internacionais, foi e continua sendo cúmplice da colonização e apartheid a que estão submetidos os palestinos. Democratizar as comunicações é parte crucial da luta pela transformação dessa realidade.
* Soraya Misleh, jornalista palestino-brasileira, da Ciranda Internacional de Comunicação Compartilhada e Frente em Defesa do Povo Palestino
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