Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Numa conjuntura em que a candidatura de Aécio Neves começa a dar sinal de vida, e Marina Silva mantem-se de pé graças a transfusão permanente de apoio de lideranças do PSDB, é sempre útil lembrar como se encontrava o Brasil no final de dois governos de Fernando Henrique Cardoso e entender por que o último presidente tucano deixou Brasília com 13% de popularidade negativa.
Em 254 páginas, Aloysio Biondi (1936-2000), mestre maior do jornalismo econômico brasileiro, deixou um trabalho único para se desfazer mitos criados naquela época. Enquanto os principais jornais e revistas atravessaram os oito anos de FHC multiplicando elogios de natureza ideológica — e também interesseira — à gigantesca transferência de empresas estatais para o setor privado, Aloysio Biondi enfrentava, há uma década e meia, o debate que interessava a maioria dos brasileiros.
Da mesma forma que foi um dos críticos mais competentes do milagre do regime militar, brigando com a esquerda que não queria enxergar o crescimento, e com direita que não admitia contradições que iriam gerar a década perdida de 1980, Aloysio Biondi foi atrás dos fatos em vez de privilegiar opiniões e convicções. O livro mostra números e medidas de natureza política que permitiram a transferência de uma parcela imensa da riqueza construída por várias gerações de brasileiros para bolsos privados, em grande parte estrangeiros - a preços amigos e saldo em suaves prestações,além de muitas acrobacias contábeis que permitiram transformar perdas reais em ganhos fictícios.
Debatendo, em oito páginas de números e tabelas, aquilo que o governo dizia ter arrecadado com as privatizações - R$ 85,2 bilhões - e aquilo que era possível contabilizar como favorecimento aos novos proprietários na forma de investimentos prévios, dívidas perdoadas, juros não cobrados, e outros benefícios, Biondi mostra o seguinte: no final, se chegou a uma conta negativa - R$ 87,6 bilhões. Na prática, sustenta, o país perdeu R$ 2,4 bi. Você pode até achar que o investimento valeu a pena, que não havia outro jeito, que somos mesmo um país de vira-latas e botocudos. Também pode explicar que, mais uma vez, o que se queria era fazer o bolo crescer - com a farinha do povo e o fermento do contribuinte - para depois ser dividido, e que isso não aconteceu porque, sabe como é….Mas o dado está lá.
Na dúvida, o mestre escreve um artigo chamado “Como falsificar balanços.” Ajuda.
O livro permite acompanhar um processo de desnacionalização que não tornou o Brasil nem mais rico nem mais próspero, ainda que tenham ocorrido, mudanças, como a telefonia celular, que estavam na agenda do capitalismo global e dificilmente deixariam de chegar a um mercado como o brasileiro, de uma forma ou de outra. Biondi faz o favor de combinar a economia e a política. Fala de um país que tornou-se mais dependente e submisso, num processo que foi muito além dos negócios para envolver os poderes da nação definir seu destino com soberania. “Queremos o Brasil de volta”, proclamava Biondi, como lembra Janio de Freitas, autor do préfácio.
Para quem gosta de criticar Lula/Dilma pelos empréstimos do BNDES para empresas brasileiras investirem no Porto de Mariel, em Cuba, há uma surpresa desagradável. Ao mesmo tempo em que mantinha a proibição das estatais receberem empréstimos do BNDES, medida que tinha o efeito óbvio de contribuir para sua asfixia e sucateamento, em 1997 Fernando Henrique Cardoso, assinou decreto - que Biondi trata ironicamente como “revolucionário” - autorizando o BNDES a conceder empréstimos a grupos estrangeiros. Dias depois, recorda, um grupo norte-americano usou dinheiro do BNDES para tornar sócio da CEMIG, a estatal mineira de energia.
Em outra medida de última hora que mostrou-se de inteiro agrado aos novos proprietários, e logo se revelaria uma péssima ideia para consumidores, o governo decidiu mudar o modelo das empresas de energia. A novidade principal é que o Estado deixou de participar ativamente da gestão das empresas privatizadas, ampliando a liberdade dos novos proprietários para definir prioridades e políticas de crescimento conforme suas metas de lucro. Abandonando qualquer função interna — salvaguarda que fora prometida ao Congresso Nacional — o Estado ficou na função de fiscalização, assegurando “autonomia total para as multinacionais agirem de acordo com seus interesses,” diz Biondi, que registra a medida como um “passa-moleque” dos novos proprietários nas autoridades brasileiras.” Curiosidade. Você pode nem acreditar mas os textos do livro se encerram dois anos antes do Brasil enfrentar o apagão e os rigores do racionamento.
“A sociedade brasileira ainda não acordou para uma “brutal realidade”, escreve Biondi, refletindo o pessimismo da época: “o Brasil já se tornou um país inviável.”
Antecipando o ambiente de velório que marcou os anos finais de Fernando Henrique, ele afirma: “o Brasil já está com o futuro comprometido. Já foi colocado num beco sem saída pela política de terra arrasada a que se deu o nome de plano Real.”
Um ponto relevante do livro é mostrar que o governo FHC estava longe de receber apoio unânime à política de privatizações, ainda que ela fosse apresentada como único caminho possível para o desenvolvimento e a atualização tecnológica.
Enquanto os aliados de FHC tratavam protestos de vários setores da sociedade como puro folclore de “dinossauros do Muro de Berlim”, Biondi reproduz longos trechos de um artigo do ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira que ajuda a dar realismo a discussão. Ele próprio fundador do PSDB, interlocutor dos principais debates econômicos de sua geração, em janeiro de 2000 Bresser faz afirmações que ajudam a entender por que, em 2014, ele declarou que irá votar em Dilma Rousseff. Três frases de Bresser, há 14 anos:
“Não percebemos que o liberalismo econômico é muito bonito em teoria mas que na prática nenhum país desenvolvido o pratica integralmente.”
Ou ainda: “O princípio seguido pelos países ricos é simples: faça como eu digo, não como eu faço. E o princípio adotado por nossas elites é igualmente simples: ‘Faça como eles dizem que eu eu devo fazer, não como eles fazem.”
E mais: “Nós permitimos a desnacionalização de grandes empresas brasileiras e de grandes bancos. Decididamente, enlouquecemos.”
Falando de um governo que ainda se encontrava no início do segundo mandato, Biondi acusou FHC de destruir a alma nacional, o sonho coletivo.” Foi um dos primeiros a registrar que, do ponto de vista social, a privatização a brasileira mostrou-se mais iníqua que o processo conduzido por Margaret Tatcher na Inglaterra — onde trabalhadores e parcelas menos endinheiradas da população puderam ficar com uma parcela considerável do bolo, enquanto no Brasil os subsídios foram utilizados para permitir o controle de grandes grupos economicos sobre as empresas privatizadas, com poucas concessões para a plebe, em casos bem específicos. Mais conservadores do que Tatcher? Pois é.
Num artigo escrito em junho de 2000, poucos meses antes de sua morte, Aloysio Biondi fala do ambiente político do país. Denuncia matérias pautadas pelo governo para desmoralizar a oposição. Adverte: “quem quiser saber realmente o que está acontecendo com a economia do país deve ler sempre as últimas quatro linhas das notícias. É ali que os jornalistas escondem o que é importante.”
Mas o mestre se permite algum otimismo. “Pode-se sentir que há mudanças no ar,”escreve, antes de acrescentar: “O longo período de passividade — de longe, muito mais tenebroso do que os anos da ditadura militar — parece aproximar-se do fim. ”
A primeira edição de Brasil Privatizado foi lançada pela Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores, e atingiu uma venda espetacular, de 126 000 exemplares. Aloysio Biondi era um jornalista sem partido político, mas este fato ilustra as dificuldades para se travar um verdadeiro debate de ideias no Brasil daquele tempo. Em 2014, o livro é publicado pela Geração Editorial, que também publicou meu livro A Outra História do Mensalão.”
Falando de um governo que ainda se encontrava no início do segundo mandato, Biondi acusou FHC de destruir a alma nacional, o sonho coletivo.” Foi um dos primeiros a registrar que, do ponto de vista social, a privatização a brasileira mostrou-se mais iníqua que o processo conduzido por Margaret Tatcher na Inglaterra — onde trabalhadores e parcelas menos endinheiradas da população puderam ficar com uma parcela considerável do bolo, enquanto no Brasil os subsídios foram utilizados para permitir o controle de grandes grupos economicos sobre as empresas privatizadas, com poucas concessões para a plebe, em casos bem específicos. Mais conservadores do que Tatcher? Pois é.
Num artigo escrito em junho de 2000, poucos meses antes de sua morte, Aloysio Biondi fala do ambiente político do país. Denuncia matérias pautadas pelo governo para desmoralizar a oposição. Adverte: “quem quiser saber realmente o que está acontecendo com a economia do país deve ler sempre as últimas quatro linhas das notícias. É ali que os jornalistas escondem o que é importante.”
Mas o mestre se permite algum otimismo. “Pode-se sentir que há mudanças no ar,”escreve, antes de acrescentar: “O longo período de passividade — de longe, muito mais tenebroso do que os anos da ditadura militar — parece aproximar-se do fim. ”
A primeira edição de Brasil Privatizado foi lançada pela Fundação Perseu Abramo, ligada ao Partido dos Trabalhadores, e atingiu uma venda espetacular, de 126 000 exemplares. Aloysio Biondi era um jornalista sem partido político, mas este fato ilustra as dificuldades para se travar um verdadeiro debate de ideias no Brasil daquele tempo. Em 2014, o livro é publicado pela Geração Editorial, que também publicou meu livro A Outra História do Mensalão.”
Depois de assumir funções executivas nos principais jornais do país, Aloysio Biondi tinha uma coluna no Diário Popular, escreveu textos na Bundas, de Ziraldo.
Na Caros Amigos ele publicou o texto em que dizia que “o longo periodo de passividade parece encontrar-se no fim.”
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