Paco Catalán Carrión/Rebelión |
Antes de completar uma semana, a justa indignação diante do assassinato dos profissionais da revista Charlie Hebdo pode transformar-se num espetáculo inesquecível de falsificação histórica.
Submetidos a um longo passado de segregação, preconceito e violência, os 6 milhões de franceses que seguem a religião muçulmana agora são apresentados como a principal ameaça à segurança e ao progresso de seu país. Saudadas como reivindicações legítimas por várias décadas, suas aspirações a uma vida menos desigual, sem exclusão, passaram a ser vistas como inconvenientes e perigosas.
O fantasma do “radicalismo muçulmano” ganhou um reforço ontem, quando se anunciou que cinco mil soldados foram deslocados para garantir a segurança de escolas judaicas do país. Falando de Paris, um radialista afirma que a polícia estima que 1400 jihadistas armados se encontrem na França.
Como acontece em qualquer outro país, os franceses só teriam a ganhar se utilizassem episódios obscuros de sua própria história para refletir sobre os perigos da vida presente. A perseguição ao capitão do Exército Alfred Dreyfus, que em 1895 chegou a ser aprisionado a ferros ao sol da Guiana sob a falsa acusação de traição a patria, ajuda a lembrar os riscos de permitir que o preconceito oriente decisões da política e da Justiça. Dreyfus foi reabilitado em 1906 mas em 1940, quando as tropas de Hitler entraram em Paris, a mesma multidão que pressionou pela condenação do capitão judeu deu sustentação ao governo colaboracionista do Marechal Petain.
De maior utilidade nos dias que correm, o mais prolongado conflito entre franceses e muçulmanos - naquele tempo eles eram chamados de “árabes” - foi a Guerra da Argélia. Prolongou-se por oito anos, entre 1954 e 1962 e deixou lições dolorosas para um país que, em outras épocas, teve pleno direito de dar lições de democracia e liberdade ao conjunto de homens e mulheres do planeta, independente de classe, raça ou nacionalidade. Suas lições são preciosas e surpreendentes.
Invadido e conquistado em 1830, por mais de um século o território argelino foi destinado a colonos franceses que se mudavam para o norte da África em busca de uma vida melhor. Em 100 anos de atividade colonial naquele lugar as áreas cultiváveis em poder dos franceses e seus descedentes passaram de 11.500 hectares para 2,7 milhões, concentração que, entre outras coisas, estimulou as primerias levas de imigração nativa em direção ao outro lado do Mediterrâneo. Nas imensas áreas recém-conquistadas, agricultores de origem francesa plantavam na colonia e vendiam, na metrópole, “os frutos da terra roubada,” como definiu Jean-Paul Sartre, uma das grandes consciências da França do século XX, autor de reflexões de grande utilidade sobre o tema — como você verá em outros parágrafos desta nota. Como se pode imaginar, a cobiça cresceu um pouco mais depois que se descobriram as imensas reservas de petróleo.
Em 1945, num primeiro levante contra os ocupantes franceses, uma massa calculada em até 70 000 pessoas foi massacrada em Létif. “Exterminando a esse subproletariado, (os franceses) se arruinaram a si mesmos,” disse Sartre, sem deixar de observar que a tragédia ocorreu “no momento em que ia nascer o Tribunal de Nueremberg,” aquele que julgou os comandantes de Adolf Hitler.
Nove anos depois, quando os revolucionários da Frente de Libertação Nacional anunciaram que “a longa noite de colonialismo terminou”, o então ministro do Interior, François Mitterrand - socialista como François Holland - pronunciou uma frase inesquecível: “A Argélia é a França. Quem entre vós hesitaria em empregar todos os meios para salvar a França?”
Nenhum meio foi recusado mas nada se salvou. Incapaz de aceitar a noção de que seria impossível de vencer os argelinos em sua própria terra natal, e que era mais prudente negociar um acordo de paz, o exército francês decidiu abandonar os métodos de guerra convencional e adotar a tortura como método preferencial de interrogatórios, com objetivo de dizimar as organizaões revolucionárias, exatamente como mostra a obra prima A Batalha de Argel.
Os militares franceses não inventaram a tortura, conhecida há muito tempo. Mas ajudaram a generalizar o procedimento. Desenvolveram técnicas, aperfeiçoaram métodos, inovaram - inclusive através do assassinato e desaparecimento de prisioneiros, que nunca poderiam ser localizados nem identificados. Tampouco teriam seus restos mortais devolvidos aos familiares, exatamente como seria feito, duas décadas mais tarde, na Argentina, no Chile e no Brasil.
Num depoimento à jornalista Marie-Dominique Robin, autora de “Esquadrões da morte: a escola francesa”, o general Paul Aussarenesses fala em 3.000 desaparecidos - um número brutal, equivalente a um milionésimo da população total da Argélia, hoje. Apesar da tortura, logo ficou claro que a luta dos argelinos iria prosseguir - com mais força, mais dura.
Convencidos de que o governo civil, em Paris, tornara-se fraco demais para assegurar a vitória, os generais do comando militar na Argélia não hesitaram mais uma vez. Ferindo o frágil regime democrático, deram um golpe de Estado, levando o general Charles De Gaulle de volta ao governo.
Num mundo onde a luta anti-colonial estava em vário pontos do mapa da Áfica, Asia, na América Latina, a nova especialidade tornou-se muito procurada. Em pouco tempo a Escola Superior de Guerra, em Paris, passou a oferecer cursos para oficiais estrangeiros, revela Ceferino Reato, autor do livro “Disposición Final,” dedicado a esclarecer a máquina de morte da ditadura Rafael Videla, na Argentina. Sob supervisão de oficiais formados nos interrogatórios de Argel, logo apareceram alunos de outros países, “portugueses e israelenses, ” escreve Reato. Em 1960 - a guerra nem havia terminado - o esforço para exportar esse tenebroso conhecimento se ampliou.
Oficiais franceses estabeleceram uma missão permanente em Buenos Aires, no décimo segundo andar do Edifício Libertador, sede do Exércio, ao lado da Casa Rosada, palácio presidencial argentino, o que permite concluir que o aprendizado argelino ajudou a construir a mais violenta das ditaduras do ciclo militar sul-americano.
Em outubro de 1961, quando estava claro que a derrota do império colonial francês caminhava para a derrota definitiva, a polícia decidiu dispersar por todos os meios um protesto de 30 000 argelinos, em Paris. Ocorreu uma matança. No dia seguinte, dezenas de cadáveres foram vistos boiando pelo Senna. No início de 1962, quatro meses antes do acordo de paz, os chefes militares providenciaram outra inovação: a anistia para seus crimes, ideia que em 1979 seria importada pelos militares brasileiros. Aprovaram uma medida que envolveu “todos os fatos cometidos no marco das operações de manutenção da ordem dirigidas contra a insurreição argelina.” Graças a essa decisão, antigos oficiais-torturadores seguiram carreira acadêmica, enquanto outros se converteram à vida parlamentar. Jamais foram processados - como ocorreu com seus colegas brasileiros.
O coronel Marcel Bigeard, que na Batalha de Argel ensina seus homens a maltratar prisioneiros, terminou a carreira como um dos oficiais mais condecorados da história da França e chegou a ministro da Defesa. A doutrina para a guerra contrarevolucionária, eufemismo para o ensinamento de técnicas cruéis de interrogatório, passou a ser ensinada e exportada de maneira oficial, com base em acordos bilaterais de assessoramento. Quando a paz foi feita entre Paris e Argel, o ambiente era de guerra e loucura entre franceses. Através de uma organização secreta, oficiais se organizaram para tentar assassinar De Gaulle.
Descrevendo um império que desabava, Sartre deixou um retrato daquele processo histórico, em que as duas partes só conseguem se prejudicar: “quando o colonialismo está prestes a se arruinar, a metrópole e a colonia são vitimas de seu enfraquecimento. Na tentativa de manter a colonização, a metrópole perde tudo o que foi lucrado com o sistema. E a colonia se enfraquece demasiadamente por causa da violência dos colonizadores.”
Sartre se referia à França e à Argelia, mas também poderia estar falando da colonia francesa do Haiti. Dois séculos antes, em 1789, quando os revolucionários de Paris anunciaram os Direitos do Homem, os escravos da América Central se levantaram para exigir o fim do cativeiro. Foram massacrados.
Também seria possível referir-se a derrota da Indochina, futuro Vietnã - de onde veio Jean-Marie Le Pen e o discurso do ressentimento contra estrangeiros.
Filho de uma professora que tinha uma admiração especial pela cultura francesa e uma imensa vontade de conhecer Paris, oportunidade que a vida não lhe ofereceu, cresci ouvindo Edith Piaf. Assisti aos filmes de Jean-Luc Godard na idade certa e acompanhei, de longe, o fogo do maio de 1968. Conheci dezenas de exilados brasileiros que encontraram refugio na Franças, durante a ditadura militar. Vivi dois anos em Paris como correspondente e, graças ao ambiente cultural da cidade, na época, encontrei a oportunidade de reconstruir a formação que trazia do Brasil.
Três décadas depois, é razoável perguntar qual opção o governo de François Holland irá tomar franceses diante de um atentado que merece repúdio universal – mas não pode ressuscitar assombrações de seu próprio passado.
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