Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Toda vez que se coloca em questão a diplomacia de um governo, convém tomar uma providência mental básica: lembrar a velha lição de que a política externa de um país é um reflexo de sua política interna. Isso quer dizer que nenhum governo sustenta ou critica outro governo em função de belos princípios mas em função de interesses e daquilo que julga ser a prioridade para seu país em determinado momento.
Os mesmos observadores que adoram criticar o governo Dilma Rousseff por sua política em relação à Venezuela de Nicolás Maduro gostam de manter embaixo do tapete um dos eventos mais deprimentes e questionáveis da história da diplomacia brasileira: a entrega da Ordem do Cruzeiro do Sul ao ditador peruano Alberto Fujimori. Do ponto de vista dos direitos fundamentais e das liberdades públicas, tudo aquilo que se insinua contra Maduro era possível provar contra Fujimori -- e muito mais. Inclusive tortura sistemática e execução de adversários políticos.
Isso não impediu que, em 1999, Fernando Henrique tomasse um avião e desembarcasse em Lima para entregar a maior condecoração do Estado brasileiro, iniciada ainda nos tempos do império de Pedro II.
O artigo que você vai ler abaixo foi escrito em junho de 2011. O debate é idêntico, ainda que os personagens e a trama tenham outros nomes. O texto debate o esforço do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do então primeiro ministro da Turquia, Recep Erdogan, para construir um acordo com o governo do Irã sobre suas pesquisas nucleares. A iniciativa foi transformada em escândalo universal, na época. O fim da história você sabe. Em 2014, as grandes potências, que haviam sabotado o acordo Brasília-Ancara-Teerã, assinaram um pacto semelhante ao anterior. A única diferença é que se desperdiçou um tempo histórico desnecessário. Outra diferença é que o segundo acordo tem um alcance menor do que o primeiro.
É bom lembrar que as críticas à política brasileira em relação ao regime comunista de Fidel-Raul Castro seguiram o mesmo caminho. Foram alvo de suspeitas e denúncias de toda ordem, que traíam a velha subordinação do conservadorismo brasileiro à lógica da Guerra Fria, que produziu o golpe de 1964. Depois que Barack Obama e Raul Castro anunciaram o restabelecimento de relações diplomáticas, as críticas à diplomacia brasileira se transformaram em anedota de mau gosto, vamos combinar. Nem o esforço para criminalizar, sem qualquer tipo de prova, um investimento importante para os dois países -- o porto de Mariel --, que tem relação direta com o futuro da economia cubana, consegue esconder isso.
A reconstituição do episódio iraniano deve servir, espero, como uma modesta contribuição para elevar o espírito crítico de meus colegas jornalistas que, diante do primeiro volume dos diários presidenciais de FHC, têm retomado o velho costume de proferir elogios deslumbrados e sem limites diante do ex-presidente e seus oito anos de mandato.
*****
Teste de conhecimento diplomático
Responda rápido: considerando o período democrático, quem foi o primeiro presidente brasileiro que condecorou e bajulou um ditador violento, condenado por perseguir, torturar e executar adversários políticos, alvo de repúdio internacional por corrupção e desrespeito a democracia?
Você errou se cravou o nome de Luiz Inácio Lula da Silva depois de pensar no primeiro-ministro do Irã Mahmoud Amadinejad.
Em 1999 o presidente Fernando Henrique Cardoso entregou a Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração brasileira, ao ditador do Peru, Alberto Fujimori, um dos queridinhos do autoritarismo conservador da América Latina.
Uma pequena pequena reportagem do UOL, com data de 22 de julho de 1999, descreve: naquele dia FHC tomou o avião e foi até Lima entregar a condecoração brasileira. Reuniu-se com empresários, fez uma pequena palestra e no fim do dia tomou o avião de volta.
Cumprindo seu terceiro mandato consecutivo, o presidente peruano era considerado um risco para a democracia na América Latina. Falava-se mesmo em “fujimorização” para descrever a formação de ditaduras que nascem por dentro, pela traição aos princípios de uma democracia.
Depois de eleito pelo voto popular, Fujimori fechou o Congresso, perseguiu a oposição e manipulou a Justiça. Criou um serviço secreto que identificava e assassinava adversários. Montou um esquema de corrupção dirigido pelo chefe do serviço secreto, que comprava o silencio da grande mídia com o pagamento de propinas — e filmava a cena de pagamento aos empresários para que fossem chantageados no futuro. A tortura era rotina no país.
Rejeitado pela comunidade internacional, Fujimori tornou-se uma espécie de marginal diplomático, repudiado até pelo governo americano, com o qual manteve, inicialmente, uma profunda identificação ideológica e geopolítica.
Apenas um ano depois de condecorado pelo governo brasileiro, Fujimori acabou afastado do poder numa operação apoiada pelo governo americano. Conseguiu fugir do país mas voltou ao Peru e hoje cumpre pena de vinte anos de prisão.
Do ponto de vista dos direitos humanos e da democracia, o apoio de Brasília só pode ser classificado como um vexame, que enfraquecia os esforços da oposição peruana para denunciar o regime e forçar seu isolamento internacional. Adversário de Fujimori, o escritor Mario Vargas Llosa liderara uma campanha de denuncia permanente contra a violência do governo.
Estive em Lima, naquela época. Fiz uma entrevista exclusiva com Fujimori em seu gabinete. Andei pela rua, conversei com empresários que adoravam seu governo, entrevistei adversários políticos e lideranças civis perseguidas. Fujimori possuía uma base popular real, que agradecia seu esforço para controlar a economia e impor a ordem num país atingido pela violência terrorista do grupo Sendero Luminoso.
Nem por isso deixava de ser um ditador — com vários traços semelhantes a Mahmoud Amadinejad. Naquele período, um presidente eleito da Guatemala fechou o Congresso e tentou governar com apoio do Exército e medidas de força. Acabou sendo forçado a renunciar em menos de uma semana. Mesmo assim, entrou para a História das tristes democracias latino-americanas como o primeiro seguidor do fujimorismo.
A liberação de nossos arquivos diplomáticos talvez possa nos ajudar a entender, um dia, o motivo para o apoio brasileiro ao ditador vizinho — da mesma forma que também poderá explicar o apoio sem condições ao governo iraniano.
Mesmo assim, permanece uma outra pergunta: entender por que a entrega de uma medalha ao ditador vizinho jamais levou FHC a receber críticas tão duras como aquelas que alvejaram Luiz Inácio Lula da Silva em função de seu apoio a Ahmadinejad.
Seria o preconceito contra Lula? Seria uma campanha disfarçada para usar a diplomacia a ajudar a oposição? Seria ignorância? Esquecimento?
Toda vez que se coloca em questão a diplomacia de um governo, convém tomar uma providência mental básica: lembrar a velha lição de que a política externa de um país é um reflexo de sua política interna. Isso quer dizer que nenhum governo sustenta ou critica outro governo em função de belos princípios mas em função de interesses e daquilo que julga ser a prioridade para seu país em determinado momento.
Os mesmos observadores que adoram criticar o governo Dilma Rousseff por sua política em relação à Venezuela de Nicolás Maduro gostam de manter embaixo do tapete um dos eventos mais deprimentes e questionáveis da história da diplomacia brasileira: a entrega da Ordem do Cruzeiro do Sul ao ditador peruano Alberto Fujimori. Do ponto de vista dos direitos fundamentais e das liberdades públicas, tudo aquilo que se insinua contra Maduro era possível provar contra Fujimori -- e muito mais. Inclusive tortura sistemática e execução de adversários políticos.
Isso não impediu que, em 1999, Fernando Henrique tomasse um avião e desembarcasse em Lima para entregar a maior condecoração do Estado brasileiro, iniciada ainda nos tempos do império de Pedro II.
O artigo que você vai ler abaixo foi escrito em junho de 2011. O debate é idêntico, ainda que os personagens e a trama tenham outros nomes. O texto debate o esforço do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do então primeiro ministro da Turquia, Recep Erdogan, para construir um acordo com o governo do Irã sobre suas pesquisas nucleares. A iniciativa foi transformada em escândalo universal, na época. O fim da história você sabe. Em 2014, as grandes potências, que haviam sabotado o acordo Brasília-Ancara-Teerã, assinaram um pacto semelhante ao anterior. A única diferença é que se desperdiçou um tempo histórico desnecessário. Outra diferença é que o segundo acordo tem um alcance menor do que o primeiro.
É bom lembrar que as críticas à política brasileira em relação ao regime comunista de Fidel-Raul Castro seguiram o mesmo caminho. Foram alvo de suspeitas e denúncias de toda ordem, que traíam a velha subordinação do conservadorismo brasileiro à lógica da Guerra Fria, que produziu o golpe de 1964. Depois que Barack Obama e Raul Castro anunciaram o restabelecimento de relações diplomáticas, as críticas à diplomacia brasileira se transformaram em anedota de mau gosto, vamos combinar. Nem o esforço para criminalizar, sem qualquer tipo de prova, um investimento importante para os dois países -- o porto de Mariel --, que tem relação direta com o futuro da economia cubana, consegue esconder isso.
A reconstituição do episódio iraniano deve servir, espero, como uma modesta contribuição para elevar o espírito crítico de meus colegas jornalistas que, diante do primeiro volume dos diários presidenciais de FHC, têm retomado o velho costume de proferir elogios deslumbrados e sem limites diante do ex-presidente e seus oito anos de mandato.
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Teste de conhecimento diplomático
Responda rápido: considerando o período democrático, quem foi o primeiro presidente brasileiro que condecorou e bajulou um ditador violento, condenado por perseguir, torturar e executar adversários políticos, alvo de repúdio internacional por corrupção e desrespeito a democracia?
Você errou se cravou o nome de Luiz Inácio Lula da Silva depois de pensar no primeiro-ministro do Irã Mahmoud Amadinejad.
Em 1999 o presidente Fernando Henrique Cardoso entregou a Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração brasileira, ao ditador do Peru, Alberto Fujimori, um dos queridinhos do autoritarismo conservador da América Latina.
Uma pequena pequena reportagem do UOL, com data de 22 de julho de 1999, descreve: naquele dia FHC tomou o avião e foi até Lima entregar a condecoração brasileira. Reuniu-se com empresários, fez uma pequena palestra e no fim do dia tomou o avião de volta.
Cumprindo seu terceiro mandato consecutivo, o presidente peruano era considerado um risco para a democracia na América Latina. Falava-se mesmo em “fujimorização” para descrever a formação de ditaduras que nascem por dentro, pela traição aos princípios de uma democracia.
Depois de eleito pelo voto popular, Fujimori fechou o Congresso, perseguiu a oposição e manipulou a Justiça. Criou um serviço secreto que identificava e assassinava adversários. Montou um esquema de corrupção dirigido pelo chefe do serviço secreto, que comprava o silencio da grande mídia com o pagamento de propinas — e filmava a cena de pagamento aos empresários para que fossem chantageados no futuro. A tortura era rotina no país.
Rejeitado pela comunidade internacional, Fujimori tornou-se uma espécie de marginal diplomático, repudiado até pelo governo americano, com o qual manteve, inicialmente, uma profunda identificação ideológica e geopolítica.
Apenas um ano depois de condecorado pelo governo brasileiro, Fujimori acabou afastado do poder numa operação apoiada pelo governo americano. Conseguiu fugir do país mas voltou ao Peru e hoje cumpre pena de vinte anos de prisão.
Do ponto de vista dos direitos humanos e da democracia, o apoio de Brasília só pode ser classificado como um vexame, que enfraquecia os esforços da oposição peruana para denunciar o regime e forçar seu isolamento internacional. Adversário de Fujimori, o escritor Mario Vargas Llosa liderara uma campanha de denuncia permanente contra a violência do governo.
Estive em Lima, naquela época. Fiz uma entrevista exclusiva com Fujimori em seu gabinete. Andei pela rua, conversei com empresários que adoravam seu governo, entrevistei adversários políticos e lideranças civis perseguidas. Fujimori possuía uma base popular real, que agradecia seu esforço para controlar a economia e impor a ordem num país atingido pela violência terrorista do grupo Sendero Luminoso.
Nem por isso deixava de ser um ditador — com vários traços semelhantes a Mahmoud Amadinejad. Naquele período, um presidente eleito da Guatemala fechou o Congresso e tentou governar com apoio do Exército e medidas de força. Acabou sendo forçado a renunciar em menos de uma semana. Mesmo assim, entrou para a História das tristes democracias latino-americanas como o primeiro seguidor do fujimorismo.
A liberação de nossos arquivos diplomáticos talvez possa nos ajudar a entender, um dia, o motivo para o apoio brasileiro ao ditador vizinho — da mesma forma que também poderá explicar o apoio sem condições ao governo iraniano.
Mesmo assim, permanece uma outra pergunta: entender por que a entrega de uma medalha ao ditador vizinho jamais levou FHC a receber críticas tão duras como aquelas que alvejaram Luiz Inácio Lula da Silva em função de seu apoio a Ahmadinejad.
Seria o preconceito contra Lula? Seria uma campanha disfarçada para usar a diplomacia a ajudar a oposição? Seria ignorância? Esquecimento?
1 comentários:
É apenas uma tentativa de blindar o ratão de um destino igual ao de seu sócio Fujimori.
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