Por Paulo Kliass, na revista Caros Amigos:
O exercício da dominação ideológica pressupõe a capacidade de estabelecer a hegemonia de um determinado ideário e de um projeto de país sobre a maioria dos atores sociais. Via de regra, as classes dominantes se utilizam de um conjunto amplo de instrumentos para viabilizar a construção de alguns consensos e a incorporação de determinados valores por parte daqueles que não compartilham do exercício do poder.
Dentre os diferentes mecanismos que propiciam a consolidação da hegemonia, destacam-se as ações na esfera da educação, da cultura e dos meios de comunicação. A sedimentação paulatina de aspectos múltiplos de nossa formação como sociedade possibilita o surgimento de uma narrativa particular, com a qual a grande maioria da população se identifica e onde se vê bem representada.
Uma das áreas em que a hegemonia se evidencia é a economia e suas relações com as outras esferas da vida social. A arquitetura da dominação foi exitosa em estabelecer a suposta neutralidade do saber econômico, que deve assim ser encarado como um conjunto de regras e variáveis muito próximas às das ciências exatas. Dessa forma, frente a uma conclusão derivada de um modelo de política econômica, por exemplo, carregado de pressupostos inacessíveis ao mais comum dos mortais, aí então não resta mesmo muito o que discutir. Temos que aceitar a opinião dos iluminados.
Assim como é certo que a temperatura da água na panela vai subir se estiver submetida ao fogo do fogão, as verdades a respeito do complexo processo econômico também são apresentadas como fatos absolutos. Assim como é segura a queda dos objetos em presença da força de gravidade, os movimentos das variáveis da economia também são previsíveis e certeiros. Entendeu? Não? Ah, mas é porque você não se formou em ciências econômicas.
Assim, criam-se alguns falsos consensos que adquirem chancela de verdade inquestionável. Um deles está muito presente na realidade brasileira, em especial nos tempos atuais. Trata-se do fenômeno do crescimento dos preços e de sua relação com a política monetária. Traduzindo o economês: refiro-me à relação entre inflação e taxa de juros. O manual neoclássico tradicional ensina aos aprendizes das faculdades de economia que o fenômeno inflacionário deve ser enfrentado pela via do aperto da política monetária. Isso significa dizer que a estratégia para reduzir a velocidade de crescimento dos preços exige a elevação da taxa oficial de juros, aquela que serve de base para a formação das demais de juros no setor financeiro e nos mercados de uma forma geral.
Esse mantra repetido “ad nauseam” adquire certificado de verdade verdadeira. E ponto final. As faculdades assim ensinam. Os meios de comunicação reproduzem o equívoco. Os chamados “especialistas”, cuidadosamente selecionados a emitirem suas opiniões, confirmam que não existe alternativa. A lista se restringe aos consultores do sistema financeiro ou mesmo dirigentes dos bancos. Os economistas e analistas que pensam de forma distinta são ignorados Ora, se assim ocorre, não há mesmo outra opção de combater a inflação que não seja pelo aumento da SELIC. É fato que o remédio é duro, mas que vamos fazer, não é mesmo? E alertamos que apelar para vias alternativas é pura demagogia e populismo.
Nesse raciocínio obtuso, pouco importa a discussão a respeito da natureza e das causas da inflação considerada. Inflação de custos? Inflação de demanda? Inflação inercial? Inflação influenciada pelos preços de serviços? Inflação reforçada pela desvalorização da taxa de câmbio, com elevação imediata dos preços dos produtos importados? Inflação causada por aumento dos chamados “preços administrados”, como tarifa de transporte, energia elétrica, combustíveis e outros? Esqueça esses elementos complicadores. O relevante é seguir aquela rota que meu modelito onipotente recomenda: frente à elevação dos preços, promova a alta de juros.
E assim chegamos à situação de uma espécie de conformismo socialmente construído a respeito da taxa de juros em nossas terras. As pessoas se revoltam com os aumentos dos preços e com a inflação que corrói o poder de compra de sua renda mensal. Esse fato, aliás, é perfeitamente compreensível. Mas não se identifica um comportamento semelhante de inconformismo face à elevação da taxa de juros e dos custos financeiros de uma forma geral.
O Brasil ocupa há décadas a posição de campeão mundial da taxa de juros. E essa marca vale para várias modalidades: taxa de juros nominal, taxa de juros real (descontada a inflação do período), “spreads” bancários nas operações de crédito, entre outros. Qualquer agente que opere no mercado financeiro internacional sabe dessa informação e para cá orienta a aplicação de parcelas expressivas do capital especulativo à procura de rentabilidade elevada e segura nesse mercado cada vez mais globalizado. Mas os custos sociais, econômicos e orçamentários derivados da aplicação dessa política monetária de arrocho recaem, como sempre, sobre as camadas menos favorecidas de nossa sociedade.
Apesar disso, a hegemonia construída pelo financismo tem obtido sucesso também nessa seara. Os atores sociais incorporam a inevitabilidade de tal opção de convivência em um ambiente marcado pela alta sistemática de taxa de juros. As pessoas terminam convivendo com a lógica do crédito oferecido no conhecido modelo de “10 vezes sem juros”. Os indivíduos não criam movimentos de insurreição contrários aos mais de 400% de juros anuais cobrados nas operações com cartão de crédito, tal como são praticados atualmente.
Tudo se passa como se a sociedade brasileira estivesse viciada em juros elevados. Esse processo assemelha-se a uma dependência, quase de natureza química, a cargas elevadas de custo financeiro. Tal tendência cria mesmo situações de um certo paroxismo, quando os meios de comunicação buscam criar uma situação de inconformismo com momentos em que se arrisca uma tentativa de baixa da taxa de juros. Isso pelo fato de a remuneração oficial de instrumentos públicos de poupança também ficar mais reduzida, em razão da baixa da Selic. O raciocínio embutido e verbalizado pelos representantes mais típicos da classe média implica a aceitação - e mesmo o pleito - de uma taxa referencial de juros mais alta, com a ilusão monetária de que isso corresponderia a obter maiores ganhos na caderneta de poupança e aplicações semelhantes.
Outra argumentação significativa refere-se a uma relação quase religiosa com o fenômeno econômico, em sua abordagem monetária e de finanças públicas. Ora, se o governo e a própria sociedade se excederam e promoveram despesas acima de sua real capacidade, a resposta só pode mesmo ser dura. Tudo se passa como se houvesse uma dialética de pecado/punição. Como houve um exagero no protagonismo pecaminoso, o remédio deve ser amargo. O sofrimento derivado da cura é relacionado à ultrapassagem dos limites e fica como advertência para que esse tipo de desvio não se repita no futuro.
O mesmo se passa com a cilada costurada pelos defensores da ortodoxia conservadora a respeito do conceito de superávit primário. O discurso contra os gastos excessivos do governo frente às receitas se restringe às despesas não financeiras. A hegemonia construída também nesse domínio torna as pessoas aliadas na crítica à suposta “gastança” governamental com itens como educação, saúde e previdência social. Porém, esses mesmos indivíduos quase nunca se referem ao maior dos gastos absolutamente parasitário: o volume do orçamento púbico dedicado ao pagamento de juros da dívida pública.
A falência dos modelos de ajuste econômico e fiscal baseado apenas nas benesses concedidas ao sistema financeiro é mais do que evidente. O que impressiona é a capacidade de resistência oferecida por seus defensores, em uma dinâmica que se assemelha às sete vidas. Romper com essa lógica exige a superação da armadilha imposta pelo financismo. Afinal, não existe nenhuma sina que nos condene a passar o resto dos tempos em um ambiente de taxa de juros elevada.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e colunista do site de Caros Amigos.
O exercício da dominação ideológica pressupõe a capacidade de estabelecer a hegemonia de um determinado ideário e de um projeto de país sobre a maioria dos atores sociais. Via de regra, as classes dominantes se utilizam de um conjunto amplo de instrumentos para viabilizar a construção de alguns consensos e a incorporação de determinados valores por parte daqueles que não compartilham do exercício do poder.
Dentre os diferentes mecanismos que propiciam a consolidação da hegemonia, destacam-se as ações na esfera da educação, da cultura e dos meios de comunicação. A sedimentação paulatina de aspectos múltiplos de nossa formação como sociedade possibilita o surgimento de uma narrativa particular, com a qual a grande maioria da população se identifica e onde se vê bem representada.
Uma das áreas em que a hegemonia se evidencia é a economia e suas relações com as outras esferas da vida social. A arquitetura da dominação foi exitosa em estabelecer a suposta neutralidade do saber econômico, que deve assim ser encarado como um conjunto de regras e variáveis muito próximas às das ciências exatas. Dessa forma, frente a uma conclusão derivada de um modelo de política econômica, por exemplo, carregado de pressupostos inacessíveis ao mais comum dos mortais, aí então não resta mesmo muito o que discutir. Temos que aceitar a opinião dos iluminados.
Assim como é certo que a temperatura da água na panela vai subir se estiver submetida ao fogo do fogão, as verdades a respeito do complexo processo econômico também são apresentadas como fatos absolutos. Assim como é segura a queda dos objetos em presença da força de gravidade, os movimentos das variáveis da economia também são previsíveis e certeiros. Entendeu? Não? Ah, mas é porque você não se formou em ciências econômicas.
Assim, criam-se alguns falsos consensos que adquirem chancela de verdade inquestionável. Um deles está muito presente na realidade brasileira, em especial nos tempos atuais. Trata-se do fenômeno do crescimento dos preços e de sua relação com a política monetária. Traduzindo o economês: refiro-me à relação entre inflação e taxa de juros. O manual neoclássico tradicional ensina aos aprendizes das faculdades de economia que o fenômeno inflacionário deve ser enfrentado pela via do aperto da política monetária. Isso significa dizer que a estratégia para reduzir a velocidade de crescimento dos preços exige a elevação da taxa oficial de juros, aquela que serve de base para a formação das demais de juros no setor financeiro e nos mercados de uma forma geral.
Esse mantra repetido “ad nauseam” adquire certificado de verdade verdadeira. E ponto final. As faculdades assim ensinam. Os meios de comunicação reproduzem o equívoco. Os chamados “especialistas”, cuidadosamente selecionados a emitirem suas opiniões, confirmam que não existe alternativa. A lista se restringe aos consultores do sistema financeiro ou mesmo dirigentes dos bancos. Os economistas e analistas que pensam de forma distinta são ignorados Ora, se assim ocorre, não há mesmo outra opção de combater a inflação que não seja pelo aumento da SELIC. É fato que o remédio é duro, mas que vamos fazer, não é mesmo? E alertamos que apelar para vias alternativas é pura demagogia e populismo.
Nesse raciocínio obtuso, pouco importa a discussão a respeito da natureza e das causas da inflação considerada. Inflação de custos? Inflação de demanda? Inflação inercial? Inflação influenciada pelos preços de serviços? Inflação reforçada pela desvalorização da taxa de câmbio, com elevação imediata dos preços dos produtos importados? Inflação causada por aumento dos chamados “preços administrados”, como tarifa de transporte, energia elétrica, combustíveis e outros? Esqueça esses elementos complicadores. O relevante é seguir aquela rota que meu modelito onipotente recomenda: frente à elevação dos preços, promova a alta de juros.
E assim chegamos à situação de uma espécie de conformismo socialmente construído a respeito da taxa de juros em nossas terras. As pessoas se revoltam com os aumentos dos preços e com a inflação que corrói o poder de compra de sua renda mensal. Esse fato, aliás, é perfeitamente compreensível. Mas não se identifica um comportamento semelhante de inconformismo face à elevação da taxa de juros e dos custos financeiros de uma forma geral.
O Brasil ocupa há décadas a posição de campeão mundial da taxa de juros. E essa marca vale para várias modalidades: taxa de juros nominal, taxa de juros real (descontada a inflação do período), “spreads” bancários nas operações de crédito, entre outros. Qualquer agente que opere no mercado financeiro internacional sabe dessa informação e para cá orienta a aplicação de parcelas expressivas do capital especulativo à procura de rentabilidade elevada e segura nesse mercado cada vez mais globalizado. Mas os custos sociais, econômicos e orçamentários derivados da aplicação dessa política monetária de arrocho recaem, como sempre, sobre as camadas menos favorecidas de nossa sociedade.
Apesar disso, a hegemonia construída pelo financismo tem obtido sucesso também nessa seara. Os atores sociais incorporam a inevitabilidade de tal opção de convivência em um ambiente marcado pela alta sistemática de taxa de juros. As pessoas terminam convivendo com a lógica do crédito oferecido no conhecido modelo de “10 vezes sem juros”. Os indivíduos não criam movimentos de insurreição contrários aos mais de 400% de juros anuais cobrados nas operações com cartão de crédito, tal como são praticados atualmente.
Tudo se passa como se a sociedade brasileira estivesse viciada em juros elevados. Esse processo assemelha-se a uma dependência, quase de natureza química, a cargas elevadas de custo financeiro. Tal tendência cria mesmo situações de um certo paroxismo, quando os meios de comunicação buscam criar uma situação de inconformismo com momentos em que se arrisca uma tentativa de baixa da taxa de juros. Isso pelo fato de a remuneração oficial de instrumentos públicos de poupança também ficar mais reduzida, em razão da baixa da Selic. O raciocínio embutido e verbalizado pelos representantes mais típicos da classe média implica a aceitação - e mesmo o pleito - de uma taxa referencial de juros mais alta, com a ilusão monetária de que isso corresponderia a obter maiores ganhos na caderneta de poupança e aplicações semelhantes.
Outra argumentação significativa refere-se a uma relação quase religiosa com o fenômeno econômico, em sua abordagem monetária e de finanças públicas. Ora, se o governo e a própria sociedade se excederam e promoveram despesas acima de sua real capacidade, a resposta só pode mesmo ser dura. Tudo se passa como se houvesse uma dialética de pecado/punição. Como houve um exagero no protagonismo pecaminoso, o remédio deve ser amargo. O sofrimento derivado da cura é relacionado à ultrapassagem dos limites e fica como advertência para que esse tipo de desvio não se repita no futuro.
O mesmo se passa com a cilada costurada pelos defensores da ortodoxia conservadora a respeito do conceito de superávit primário. O discurso contra os gastos excessivos do governo frente às receitas se restringe às despesas não financeiras. A hegemonia construída também nesse domínio torna as pessoas aliadas na crítica à suposta “gastança” governamental com itens como educação, saúde e previdência social. Porém, esses mesmos indivíduos quase nunca se referem ao maior dos gastos absolutamente parasitário: o volume do orçamento púbico dedicado ao pagamento de juros da dívida pública.
A falência dos modelos de ajuste econômico e fiscal baseado apenas nas benesses concedidas ao sistema financeiro é mais do que evidente. O que impressiona é a capacidade de resistência oferecida por seus defensores, em uma dinâmica que se assemelha às sete vidas. Romper com essa lógica exige a superação da armadilha imposta pelo financismo. Afinal, não existe nenhuma sina que nos condene a passar o resto dos tempos em um ambiente de taxa de juros elevada.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e colunista do site de Caros Amigos.
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