Por Fabrício Solagna e Renata Mielli, no Centro de Estudos Barão de Itararé:
A segunda fase de consulta para o decreto que vai regulamentar o Marco Civil da Internet está aberta para contribuições até o dia 29 de fevereiro. A primeira fase reuniu quase 1.200 contribuições de diversos setores, focando principalmente nas exceções à neutralidade da rede e nas definições sobre como os dados pessoais serão armazenados e poderão ser acessados, de forma a garantir a privacidade dos usuários.
Um decreto tem o papel de ser objetivo, indicar exatamente quando, como e quem tem que desempenhar cada função. Ou seja, detalhar as formas como os princípios e diretrizes de uma lei devem ser aplicados.
Se os princípios que regem o Marco Civil já estão assegurados na lei 12.965/14, agora é o momento de definir exatamente como eles serão garantidos. Por isso, o decreto precisa ser específico sobre quais são exatamente as exceções à neutralidade de rede, visando assegurar que não haja uma Internet de segunda classe no Brasil.
Neste aspecto fazemos nossa primeira crítica com relação à proposta de decreto que foi apresentada para a consulta. Ela é genérica, vaga e, por isso, ambígua. Se mantida sua redação como está, a fiscalização em torno da aplicação do Marco Civil se transformará num batalha de interpretações jurídicas que só favorecerá ao setor empresarial.
Cabe dizer que nós da sociedade civil não iremos recuar do papel fundamental de defender os direitos dos usuários frente aos interesses das corporações.
Em defesa da neutralidade de rede
Desde 2014, tem se disseminado a venda de planos de acesso à Internet móvel em que alguns serviços ou aplicativos não são cobrados na franquia do usuário (zero rating). O que pode parecer uma vantagem à primeira vista, na verdade pode significar a chamada “balcanização” - ou fragmentação – da rede. Não há nenhum problema em oferecer Internet gratuita, mas isso não pode acontecer apenas para alguns aplicativos, através de acordos comerciais que ocorrem à revelia do interesse do usuário.
Da mesma maneira, corporações globais já estão adotando em alguns países a prestação de acesso à Internet através de um acesso limitado a alguns aplicativos. É o caso do Free Basics, iniciativa do Facebook para conectar as pessoas através de um aplicativo que só permite o acesso à sua plataforma e a outros definidos por ele. Ou seja, uma inclusão digital pela metade. A iniciativa foi recentemente proibida na Índia por se considerar quebra da neutralidade de rede.
É para impedir essas ingerências sobre o que os usuários acessam e como acessam que o decreto deve dizer claramente que estes tipos de modalidades ferem a neutralidade de rede. Infelizmente, a proposta apresentada não deixa nada disso explícito.
A proposta da minuta de regulamentação prevê exceções para a neutralidade, por exemplo, em casos de "tratamento de questões imprescindíveis para a adequada fruição das aplicações, tendo em vista a garantia da qualidade de experiência do usuário". Isso traz mais incertezas e margem para interpretações diversas. Afinal, não deveria haver exceções para que alguns aplicativos tivessem a devida "fruição" em detrimento de outros sem especificar quais, nem porquê.
No que tange à fiscalização do cumprimento da neutralidade de rede, acreditamos que a delegação desta tarefa somente à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) é um passo atrás nas discussões acumuladas até agora. O debate sobre o Marco Civil primou pela multissetorialidade e a convicção de que a Internet é um serviço de valor adicionado ao serviço de telecomunicação. A neutralidade envolve um ecossistema que deve ser fiscalizado por uma série de entidades, passando, inclusive, pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br), que possui um colegiado representativo de diversos setores da rede.
Na proposta encaminhada pelo Barão de Itararé e outras entidades na primeira fase da consulta, sugerimos que a neutralidade de rede deveria ser fiscalizada por um conjunto de órgãos e entidades em cooperação, envolvendo vários setores sociais. Poderiam compartilhar desta responsabilidade a Anatel, CGI/NIC.br, SENACOM, o CADE e outros, sem que seja necessário criar um novo órgão para esta tarefa específica.
Proteção aos dados pessoais
Quanto à regulamentação sobre os dados pessoais, a proposta tem avanços importantes. Adota uma concepção de dados pessoais em consonância com o debate que tem sido realizado sobre o tema. Prevê medidas de transparência e accountability sobre o acesso aos dados. Mesmo assim, acreditamos que a minuta poderia ser mais específica, no sentido de fazer uma “receita de bolo” para que juizes tomem decisões em consonância com o funcionamento da rede e para que não aconteçam mais casos como a suspensão do WhatsApp em todo o país.
Acreditamos que é importante o decreto explicitar que os dados pessoais não podem ser revendidos ou repassados para terceiros, a fim de assegurar a privacidade do usuário no uso da rede.
Democracia sim, corporações não!
O processo de construção do Marco Civil, bem como da minuta que irá regulamentá-lo, se tornou referência para o campo da participação política através da rede. Uma lei construída com a colaboração dos próprios usuários, numa plataforma aberta e transparente. Um longo processo que se iniciou em 2009 e que tem como objetivo garantir a neutralidade de rede, o respeito à privacidade e a liberdade de expressão na rede.
No momento final de regulamentação, a lei tem que avançar para garantir direitos dos usuários e não abrir brechas para interesses corporativos.
A consulta está aberta e o Ministério da Justiça encorajou a todos para colaborar com propostas para melhorá-lo. Sem dúvida as entidades da sociedade civil irão cobrar uma melhora na redação dos pontos que estão aquém do debate realizado até agora.
* Fabrício Solagna é doutorando em Sociologia pela UFRGS e pesquisa sobre a governança da Internet, integrante do núcleo gaúcho do Barão de Itararé. Renata Mielli é jornalista, secretária geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
A segunda fase de consulta para o decreto que vai regulamentar o Marco Civil da Internet está aberta para contribuições até o dia 29 de fevereiro. A primeira fase reuniu quase 1.200 contribuições de diversos setores, focando principalmente nas exceções à neutralidade da rede e nas definições sobre como os dados pessoais serão armazenados e poderão ser acessados, de forma a garantir a privacidade dos usuários.
Um decreto tem o papel de ser objetivo, indicar exatamente quando, como e quem tem que desempenhar cada função. Ou seja, detalhar as formas como os princípios e diretrizes de uma lei devem ser aplicados.
Se os princípios que regem o Marco Civil já estão assegurados na lei 12.965/14, agora é o momento de definir exatamente como eles serão garantidos. Por isso, o decreto precisa ser específico sobre quais são exatamente as exceções à neutralidade de rede, visando assegurar que não haja uma Internet de segunda classe no Brasil.
Neste aspecto fazemos nossa primeira crítica com relação à proposta de decreto que foi apresentada para a consulta. Ela é genérica, vaga e, por isso, ambígua. Se mantida sua redação como está, a fiscalização em torno da aplicação do Marco Civil se transformará num batalha de interpretações jurídicas que só favorecerá ao setor empresarial.
Cabe dizer que nós da sociedade civil não iremos recuar do papel fundamental de defender os direitos dos usuários frente aos interesses das corporações.
Em defesa da neutralidade de rede
Desde 2014, tem se disseminado a venda de planos de acesso à Internet móvel em que alguns serviços ou aplicativos não são cobrados na franquia do usuário (zero rating). O que pode parecer uma vantagem à primeira vista, na verdade pode significar a chamada “balcanização” - ou fragmentação – da rede. Não há nenhum problema em oferecer Internet gratuita, mas isso não pode acontecer apenas para alguns aplicativos, através de acordos comerciais que ocorrem à revelia do interesse do usuário.
Da mesma maneira, corporações globais já estão adotando em alguns países a prestação de acesso à Internet através de um acesso limitado a alguns aplicativos. É o caso do Free Basics, iniciativa do Facebook para conectar as pessoas através de um aplicativo que só permite o acesso à sua plataforma e a outros definidos por ele. Ou seja, uma inclusão digital pela metade. A iniciativa foi recentemente proibida na Índia por se considerar quebra da neutralidade de rede.
É para impedir essas ingerências sobre o que os usuários acessam e como acessam que o decreto deve dizer claramente que estes tipos de modalidades ferem a neutralidade de rede. Infelizmente, a proposta apresentada não deixa nada disso explícito.
A proposta da minuta de regulamentação prevê exceções para a neutralidade, por exemplo, em casos de "tratamento de questões imprescindíveis para a adequada fruição das aplicações, tendo em vista a garantia da qualidade de experiência do usuário". Isso traz mais incertezas e margem para interpretações diversas. Afinal, não deveria haver exceções para que alguns aplicativos tivessem a devida "fruição" em detrimento de outros sem especificar quais, nem porquê.
No que tange à fiscalização do cumprimento da neutralidade de rede, acreditamos que a delegação desta tarefa somente à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) é um passo atrás nas discussões acumuladas até agora. O debate sobre o Marco Civil primou pela multissetorialidade e a convicção de que a Internet é um serviço de valor adicionado ao serviço de telecomunicação. A neutralidade envolve um ecossistema que deve ser fiscalizado por uma série de entidades, passando, inclusive, pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br), que possui um colegiado representativo de diversos setores da rede.
Na proposta encaminhada pelo Barão de Itararé e outras entidades na primeira fase da consulta, sugerimos que a neutralidade de rede deveria ser fiscalizada por um conjunto de órgãos e entidades em cooperação, envolvendo vários setores sociais. Poderiam compartilhar desta responsabilidade a Anatel, CGI/NIC.br, SENACOM, o CADE e outros, sem que seja necessário criar um novo órgão para esta tarefa específica.
Proteção aos dados pessoais
Quanto à regulamentação sobre os dados pessoais, a proposta tem avanços importantes. Adota uma concepção de dados pessoais em consonância com o debate que tem sido realizado sobre o tema. Prevê medidas de transparência e accountability sobre o acesso aos dados. Mesmo assim, acreditamos que a minuta poderia ser mais específica, no sentido de fazer uma “receita de bolo” para que juizes tomem decisões em consonância com o funcionamento da rede e para que não aconteçam mais casos como a suspensão do WhatsApp em todo o país.
Acreditamos que é importante o decreto explicitar que os dados pessoais não podem ser revendidos ou repassados para terceiros, a fim de assegurar a privacidade do usuário no uso da rede.
Democracia sim, corporações não!
O processo de construção do Marco Civil, bem como da minuta que irá regulamentá-lo, se tornou referência para o campo da participação política através da rede. Uma lei construída com a colaboração dos próprios usuários, numa plataforma aberta e transparente. Um longo processo que se iniciou em 2009 e que tem como objetivo garantir a neutralidade de rede, o respeito à privacidade e a liberdade de expressão na rede.
No momento final de regulamentação, a lei tem que avançar para garantir direitos dos usuários e não abrir brechas para interesses corporativos.
A consulta está aberta e o Ministério da Justiça encorajou a todos para colaborar com propostas para melhorá-lo. Sem dúvida as entidades da sociedade civil irão cobrar uma melhora na redação dos pontos que estão aquém do debate realizado até agora.
* Fabrício Solagna é doutorando em Sociologia pela UFRGS e pesquisa sobre a governança da Internet, integrante do núcleo gaúcho do Barão de Itararé. Renata Mielli é jornalista, secretária geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
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