Do site Carta Maior:
O Governo Federal brasileiro encontra-se sob intervenção judicial. A Presidente da República foi afastada do cargo com todos os ritos formais cumpridos – aprovação por maioria qualificada na Câmara, maioria simples no Senado e chancela do Supremo. Na aparência, tudo na mais perfeita ordem.
No entanto são irônicos aqueles que usam esses argumentos para defender a legitimidade do processo. Não houve crime cometido de maneira intencional e na gravidade necessária para o afastamento da mandatária, durante seu mandato de Presidente. Na realidade, nem crime houve. E todos sabem que em cada uma dessas instâncias ocorreram julgamentos políticos, no sentido pequeno da palavra, de acordos e negociatas visando a implantação de um governo com novo arranjo de poder.
Aos que compreendem esse enredo, não há meias palavras, é golpe. E golpe organizado por um rígido cronograma midiático, que durante dois meses publicou, toda 6ª feira, uma nova noticia ou factoide oriundo de vazamentos policias, judiciais ou provenientes de boatos. E durante todos finais de semana, nesses 8 finais de semana, ficaram ressoando na população como ilícitos de um único mal – o governo do PT.
Tal campanha foi suficiente para reavivar o movimento em declínio, favorável ao impeachment. Até o inesquecível 13 de março em que “o Brasil” foi as ruas, no maior espetáculo midiático visto em terras tupiniquins. A partir das 7 da manhã, diversos canais de televisão estiveram posicionados para mostrar o local onde se dariam as passeatas e convocavam os telespectadores a participarem. Comentaristas inflamavam o ódio que justificava a ida para as ruas, destilando comentários e retrospectivas de “todos” os escândalos (sendo o “todos” referente a apenas um partido). Rádios transmitiam campanhas contra a corrupção, grande mal do país, que seria combatido com a queda do governo. E os flashes ao vivo na TV mostravam sempre mais gente do que existia ali.
Ressalva seja feita: mesmo que fosse a maior manifestação da história, jamais seria correspondente aos 54 milhões de votos que haviam eleito o governo. Mais que isso, dias antes e dias depois, outras manifestações também ocorreram, sem mídia ou cobertura, em tamanhos próximos àquele do dia 13, mostrando que na rua, não havia necessariamente um consenso ou maioria. Pesquisas de opinião foram fartamente divulgadas para provar que não havia mais apoio ao governo em exercício – mesmo que nas ruas se vissem mais pessoas do que aquelas que mostravam as pesquisas. E os perfis dos que se manifestaram eram muito parecidos dos dois lados = majoritariamente branco, de meia idade e alta renda. Ou seja, o povão mesmo não tinha ido à público. Como pesquisa de opinião nunca elegeu governo, seria preciso um plebiscito ou novas eleições para provar a mudança dos ventos – do contrário, o pleito realizado em 2014 seguia válido.
A cereja do bolo golpista vem de notícias do momento das votações nas quais o Vice-Presidente, sucessor em caso de afastamento, se apresentou como um ativo articulador do processo. Sem que se acusasse o crime de traição, recepções no Residência Oficial à volta para Brasília no dia de votação na Câmara dos Deputados, eram muitos os fatos públicos. Com as novas delações já do período de afastamento (que vazam agora, apesar de terem sido gravadas antes das votações) começam a aparecer fatos privados que apenas aumentam a clareza do ocorrido, mas em nada mudam seu enredo. Uma vez mais, enredo do golpe.
O problema é que mesmo com tantos fatos e clarezas sobre a situação, parece que o cotidiano segue em sua normalidade democrática. Mesmo sem votos, e com muitas trapalhadas, é o governo que está em exercício e segue funcionando para o conjunto da população. E se no governo, foco do golpe, parece tudo normal, no restante da sociedade essa normalidade é maior ainda. O pipoqueiro segue vendendo sua pipoca, o hot-dog abrindo regularmente; o banco com seu expediente regular, as escolas, hospitais, transito e problemas com operadoras de celular. Parece que nada mudou. Mas mudou: o poder com maior presença na vida de todos os cidadãos do país está sendo conduzido por um sujeito que deu um golpe e um conjunto de funcionários de confiança dele que com a mesma falta de legitimidade estão dando ordens por todo Brasil.
Se o governo em exercício é golpista, cabe perguntar como o cotidiano não se altera. Como é possível que tendo uma ruptura institucional em curso, que rasgou 54 milhões de votos, as pessoas que discordam dessa condução sejam obrigadas a viver como se tudo estive bem. Pois não está tudo bem. E isso não é resultado de decisões equivocadas (apenas) mas do exercício do poder por um político que traiu sua companheira de chapa e articulou abertamente sua derrubada. E que ao ocupar aquela posição de chefia passa a dar ordens sem ter base social, muito menos votos nas urnas.
Assim, não se trata de discutir o conteúdo das decisões emanadas por esse golpista, mas qualquer ação que este tome a partir daquele lugar de comando. Nenhuma ordem é legitima numa democracia que não tenha base em votos. Se fosse o contrário e um vice-presidente de esquerda tivesse feito a mesma articulação para derrubar um presidente de direita, com o apoio da mídia e demais instituições, o procedimento deveria ser o mesmo. Golpe não deve ocorrer independente da ideologia pois se trata de respeitar o mandato popular. Se tanto idolatram o processo penal como fonte do Direito a guiar a análise da conduta política presidencial, é no mesmo processo penal que encontramos o ditado dos "frutos da árvore envenenada", pensamento segundo o qual, aplicado ao caso aqui apresentado, a atuação de mandatários do governante golpista constitui golpe, e ponto final.
Se é assim, não faz sentido resistir dentro da máquina estatal para evitar retrocessos. Cabe se pautar nos retrocessos para denunciar o desvio do poder, a ilegitimidade das ordens emanadas, mas sem perder de vista que qualquer comando deva ser questionado, concordando ou discordando dele. Mas ao parar diante de todo comando, para também o governo e quem mais sofre com isso é a população. Diante disso é que a dúvida se coloca, para todo cidadão, mas principalmente para os servidores públicos. Se fosse um governo com o qual há divergência ideológica, é possível fazer tecnicamente a resistência por dentro do governo. Mas quando o próprio governo não tem legitimidade para governar, o que deve ser feito?
Enquanto a ordem democrática não for reestabelecida esse é um dilema que permanecerá. Insolúvel. Mas a partir dele, alguns princípios podem ser derivados: não se deve estar em circuitos de confiança desses que realizaram o golpe, seja na Presidência da República ou nos Gabinetes dos Ministérios de seus prepostos (afinal, indicado por golpista, golpista é); não aceitar ordens que desmontem pautas eleitas pelo voto popular por um governante que não tem mandato para isso; não perder de vista sempre, e a todo momento, que a questão não é o conteúdo da decisão, mas o princípio da decisão em si. Por isso, nunca perder de vista que o problema não é lutar, mas sim, Temer.
O Governo Federal brasileiro encontra-se sob intervenção judicial. A Presidente da República foi afastada do cargo com todos os ritos formais cumpridos – aprovação por maioria qualificada na Câmara, maioria simples no Senado e chancela do Supremo. Na aparência, tudo na mais perfeita ordem.
No entanto são irônicos aqueles que usam esses argumentos para defender a legitimidade do processo. Não houve crime cometido de maneira intencional e na gravidade necessária para o afastamento da mandatária, durante seu mandato de Presidente. Na realidade, nem crime houve. E todos sabem que em cada uma dessas instâncias ocorreram julgamentos políticos, no sentido pequeno da palavra, de acordos e negociatas visando a implantação de um governo com novo arranjo de poder.
Aos que compreendem esse enredo, não há meias palavras, é golpe. E golpe organizado por um rígido cronograma midiático, que durante dois meses publicou, toda 6ª feira, uma nova noticia ou factoide oriundo de vazamentos policias, judiciais ou provenientes de boatos. E durante todos finais de semana, nesses 8 finais de semana, ficaram ressoando na população como ilícitos de um único mal – o governo do PT.
Tal campanha foi suficiente para reavivar o movimento em declínio, favorável ao impeachment. Até o inesquecível 13 de março em que “o Brasil” foi as ruas, no maior espetáculo midiático visto em terras tupiniquins. A partir das 7 da manhã, diversos canais de televisão estiveram posicionados para mostrar o local onde se dariam as passeatas e convocavam os telespectadores a participarem. Comentaristas inflamavam o ódio que justificava a ida para as ruas, destilando comentários e retrospectivas de “todos” os escândalos (sendo o “todos” referente a apenas um partido). Rádios transmitiam campanhas contra a corrupção, grande mal do país, que seria combatido com a queda do governo. E os flashes ao vivo na TV mostravam sempre mais gente do que existia ali.
Ressalva seja feita: mesmo que fosse a maior manifestação da história, jamais seria correspondente aos 54 milhões de votos que haviam eleito o governo. Mais que isso, dias antes e dias depois, outras manifestações também ocorreram, sem mídia ou cobertura, em tamanhos próximos àquele do dia 13, mostrando que na rua, não havia necessariamente um consenso ou maioria. Pesquisas de opinião foram fartamente divulgadas para provar que não havia mais apoio ao governo em exercício – mesmo que nas ruas se vissem mais pessoas do que aquelas que mostravam as pesquisas. E os perfis dos que se manifestaram eram muito parecidos dos dois lados = majoritariamente branco, de meia idade e alta renda. Ou seja, o povão mesmo não tinha ido à público. Como pesquisa de opinião nunca elegeu governo, seria preciso um plebiscito ou novas eleições para provar a mudança dos ventos – do contrário, o pleito realizado em 2014 seguia válido.
A cereja do bolo golpista vem de notícias do momento das votações nas quais o Vice-Presidente, sucessor em caso de afastamento, se apresentou como um ativo articulador do processo. Sem que se acusasse o crime de traição, recepções no Residência Oficial à volta para Brasília no dia de votação na Câmara dos Deputados, eram muitos os fatos públicos. Com as novas delações já do período de afastamento (que vazam agora, apesar de terem sido gravadas antes das votações) começam a aparecer fatos privados que apenas aumentam a clareza do ocorrido, mas em nada mudam seu enredo. Uma vez mais, enredo do golpe.
O problema é que mesmo com tantos fatos e clarezas sobre a situação, parece que o cotidiano segue em sua normalidade democrática. Mesmo sem votos, e com muitas trapalhadas, é o governo que está em exercício e segue funcionando para o conjunto da população. E se no governo, foco do golpe, parece tudo normal, no restante da sociedade essa normalidade é maior ainda. O pipoqueiro segue vendendo sua pipoca, o hot-dog abrindo regularmente; o banco com seu expediente regular, as escolas, hospitais, transito e problemas com operadoras de celular. Parece que nada mudou. Mas mudou: o poder com maior presença na vida de todos os cidadãos do país está sendo conduzido por um sujeito que deu um golpe e um conjunto de funcionários de confiança dele que com a mesma falta de legitimidade estão dando ordens por todo Brasil.
Se o governo em exercício é golpista, cabe perguntar como o cotidiano não se altera. Como é possível que tendo uma ruptura institucional em curso, que rasgou 54 milhões de votos, as pessoas que discordam dessa condução sejam obrigadas a viver como se tudo estive bem. Pois não está tudo bem. E isso não é resultado de decisões equivocadas (apenas) mas do exercício do poder por um político que traiu sua companheira de chapa e articulou abertamente sua derrubada. E que ao ocupar aquela posição de chefia passa a dar ordens sem ter base social, muito menos votos nas urnas.
Assim, não se trata de discutir o conteúdo das decisões emanadas por esse golpista, mas qualquer ação que este tome a partir daquele lugar de comando. Nenhuma ordem é legitima numa democracia que não tenha base em votos. Se fosse o contrário e um vice-presidente de esquerda tivesse feito a mesma articulação para derrubar um presidente de direita, com o apoio da mídia e demais instituições, o procedimento deveria ser o mesmo. Golpe não deve ocorrer independente da ideologia pois se trata de respeitar o mandato popular. Se tanto idolatram o processo penal como fonte do Direito a guiar a análise da conduta política presidencial, é no mesmo processo penal que encontramos o ditado dos "frutos da árvore envenenada", pensamento segundo o qual, aplicado ao caso aqui apresentado, a atuação de mandatários do governante golpista constitui golpe, e ponto final.
Se é assim, não faz sentido resistir dentro da máquina estatal para evitar retrocessos. Cabe se pautar nos retrocessos para denunciar o desvio do poder, a ilegitimidade das ordens emanadas, mas sem perder de vista que qualquer comando deva ser questionado, concordando ou discordando dele. Mas ao parar diante de todo comando, para também o governo e quem mais sofre com isso é a população. Diante disso é que a dúvida se coloca, para todo cidadão, mas principalmente para os servidores públicos. Se fosse um governo com o qual há divergência ideológica, é possível fazer tecnicamente a resistência por dentro do governo. Mas quando o próprio governo não tem legitimidade para governar, o que deve ser feito?
Enquanto a ordem democrática não for reestabelecida esse é um dilema que permanecerá. Insolúvel. Mas a partir dele, alguns princípios podem ser derivados: não se deve estar em circuitos de confiança desses que realizaram o golpe, seja na Presidência da República ou nos Gabinetes dos Ministérios de seus prepostos (afinal, indicado por golpista, golpista é); não aceitar ordens que desmontem pautas eleitas pelo voto popular por um governante que não tem mandato para isso; não perder de vista sempre, e a todo momento, que a questão não é o conteúdo da decisão, mas o princípio da decisão em si. Por isso, nunca perder de vista que o problema não é lutar, mas sim, Temer.
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