Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
O senador Antonio Anastasia está perto de se tornar uma figura menor por aceitar o cumprimento de um papel que lhe subtrai a trajetória construída como servidor público e professor de direito. Está prestes a trocar a ética pela ambição; a convicção pela oportunidade; a biografia pelo opróbio. O julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff, do qual é o relator, deixou a esfera jurídica para se afirmar como um julgamento político. Não há palavra mais manchada de ambiguidade que “política”. Quando deixa de ser substantiva para se tornar uma mera adjetivação, a política perde sua origem para se tornar um instrumento de manipulação. Julgamento político, no sentido estrito do termo, é um oxímoro, uma expressão composta de termos que se repelem.
Quem, ao chegar a um tribunal, gostaria de ser julgado de acordo com critérios políticos e não jurídicos? A própria ideia de julgamento carrega em si a crença em valores universais ou, no mínimo, consensuais, traduzidos na consideração da lei. Se essa noção deixa de presidir a cena, o que se configura é um jogo de possibilidades dado por valores distantes da universalidade: os interesses, o poder, a força, a astúcia, o convencimento. Sai o sábio, entra o sofista. Um julgamento político não é nem julgamento – já que lhe falta isenção –, nem tampouco político no sentido próprio da palavra – uma vez que responde a interesses bem definidos. Não é julgamento, mas justiçamento; não se trata de política, mas de autoritarismo.
O que se arma no Senado Federal nas próximas semanas é exatamente a farsa dessa distorção. Mesmo os legalistas de má-fé, que apontam o tempo todo a constitucionalidade do golpe em andamento, fazem questão de arrogar o amplo direito de defesa e a presidência do julgamento pelo magistrado que responde pelo mais alto grau da Justiça do país, o presidente do Supremo Tribunal Federal. No entanto, se tudo indica que haveria uma inclinação em direção à vertente mais propriamente jurídica do processo – o impeachment deixaria a arena dos interesses insurrecionais para ser avaliado pela letra da lei –, a prática vem mostrando que os arranjos de cena continuam. Não há mudança de foco, mas a arrogância assumida de confirmar no campo do direito o que é um abuso explícito na esfera da política.
As constatações mais cabais de que o processo não pode ser aprovado no julgamento pelo Senado foram dadas pelas próprias instâncias que de certa forma sustentaram até aqui a aventura golpista. Pareceres técnicos, auditorias e relatórios dos especialistas independentes do próprio Senado, Tribunal de Contas e Ministério Público invalidam os argumentos fundamentais da ação. Em qualquer cenário que não seja fundado na busca de legitimação da tomada espúria de poder, o caso deveria ser arquivado. Não há crime como proposto na ação (e quem diz isso é o Ministério Público, os técnicos do Senado e os integrantes do Tribunal de Contas da União), mas segue o julgamento. Em outras palavras, há uma antecipação do juízo que cria seus próprios fundamentos. Uma vez que é condenação é necessária, não importa a veracidade da acusação.
E é aí que entra o senador Anastasia. Foi dada a ele a missão de preencher, como nos livros de colorir, os espaços em branco da figura do golpe que se dispõe à vista de todos. Ele sabe que as alegações dos propositores originais do impeachment acolhido pela Câmara sob o domínio de Eduardo Cunha – dois juristas e uma professora assumidamente venal e com pendores místico-escatológicos – são insustentáveis. Por isso, em seu relatório lançou mão de outra linha de argumentação, igualmente solúvel nas constatações oferecidas pelos técnicos. Cabe a Anastasia manter a ação no campo político, mesmo que para isso comprometa seu conhecimento jurídico. Seu relatório é sagaz: ao mesmo tempo em que desvia o foco de uma ação mal apresentada, evita apreciar o mérito para garantir a continuidade processual. Os senadores serão julgadores de algo que não alcançam, por isso cabe ao relatório impedir o trabalho do presidente da Corte. Anastasia vai falar de costas para o direito. E ele sabe disso.
A hipoteca de sua credibilidade traz dividendos políticos inegáveis, mas também tem seu preço. Como um aprendiz de feiticeiro de seu mentor político, o senador Aécio Neves, ele perde a credibilidade e passa a depender cada vez mais da aparência em detrimento da substância. Anastasia se torna o fiador ativo de um golpe contra a democracia brasileira. De nada vai adiantar sua capa de bom moço, de administrador competente e cidadão honesto. Com o tempo, seu truque de momento vai revelar seu caráter. Freud já aludia para a complexidade dos juízos morais. A consciência é o limite das nossas culpas. Mas nossos julgamentos muitas vezes partem de dimensões às quais não alcançamos de maneira consciente.
Alguns políticos, dependendo da apuração das denúncias que respondem, podem se revelar desonestos por atitudes feitas com o domínio da razão e a certeza histórica da impunidade. Anastasia já consagrou de certa forma sua “desonestidade” antes mesmo do julgamento. O superego tem dessas contingências. Por vezes a ocasião faz o ladrão, a disposição inconsciente para erro de julgamento está apenas adormecida ou domada pela força de boas intenções e formação moral tão rígida quanto suprimível. O senador, sempre tão cioso de suas convicções, ainda que não tenha consciência disso, não deveria confiar tanto em sua intuição. Com a dedicação que põe na tarefa e o orgulho em estar entre os que considera grandes, ele não está apenas em má companhia. Está subtraindo valor da democracia brasileira.
O senador Antonio Anastasia está perto de se tornar uma figura menor por aceitar o cumprimento de um papel que lhe subtrai a trajetória construída como servidor público e professor de direito. Está prestes a trocar a ética pela ambição; a convicção pela oportunidade; a biografia pelo opróbio. O julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff, do qual é o relator, deixou a esfera jurídica para se afirmar como um julgamento político. Não há palavra mais manchada de ambiguidade que “política”. Quando deixa de ser substantiva para se tornar uma mera adjetivação, a política perde sua origem para se tornar um instrumento de manipulação. Julgamento político, no sentido estrito do termo, é um oxímoro, uma expressão composta de termos que se repelem.
Quem, ao chegar a um tribunal, gostaria de ser julgado de acordo com critérios políticos e não jurídicos? A própria ideia de julgamento carrega em si a crença em valores universais ou, no mínimo, consensuais, traduzidos na consideração da lei. Se essa noção deixa de presidir a cena, o que se configura é um jogo de possibilidades dado por valores distantes da universalidade: os interesses, o poder, a força, a astúcia, o convencimento. Sai o sábio, entra o sofista. Um julgamento político não é nem julgamento – já que lhe falta isenção –, nem tampouco político no sentido próprio da palavra – uma vez que responde a interesses bem definidos. Não é julgamento, mas justiçamento; não se trata de política, mas de autoritarismo.
O que se arma no Senado Federal nas próximas semanas é exatamente a farsa dessa distorção. Mesmo os legalistas de má-fé, que apontam o tempo todo a constitucionalidade do golpe em andamento, fazem questão de arrogar o amplo direito de defesa e a presidência do julgamento pelo magistrado que responde pelo mais alto grau da Justiça do país, o presidente do Supremo Tribunal Federal. No entanto, se tudo indica que haveria uma inclinação em direção à vertente mais propriamente jurídica do processo – o impeachment deixaria a arena dos interesses insurrecionais para ser avaliado pela letra da lei –, a prática vem mostrando que os arranjos de cena continuam. Não há mudança de foco, mas a arrogância assumida de confirmar no campo do direito o que é um abuso explícito na esfera da política.
As constatações mais cabais de que o processo não pode ser aprovado no julgamento pelo Senado foram dadas pelas próprias instâncias que de certa forma sustentaram até aqui a aventura golpista. Pareceres técnicos, auditorias e relatórios dos especialistas independentes do próprio Senado, Tribunal de Contas e Ministério Público invalidam os argumentos fundamentais da ação. Em qualquer cenário que não seja fundado na busca de legitimação da tomada espúria de poder, o caso deveria ser arquivado. Não há crime como proposto na ação (e quem diz isso é o Ministério Público, os técnicos do Senado e os integrantes do Tribunal de Contas da União), mas segue o julgamento. Em outras palavras, há uma antecipação do juízo que cria seus próprios fundamentos. Uma vez que é condenação é necessária, não importa a veracidade da acusação.
E é aí que entra o senador Anastasia. Foi dada a ele a missão de preencher, como nos livros de colorir, os espaços em branco da figura do golpe que se dispõe à vista de todos. Ele sabe que as alegações dos propositores originais do impeachment acolhido pela Câmara sob o domínio de Eduardo Cunha – dois juristas e uma professora assumidamente venal e com pendores místico-escatológicos – são insustentáveis. Por isso, em seu relatório lançou mão de outra linha de argumentação, igualmente solúvel nas constatações oferecidas pelos técnicos. Cabe a Anastasia manter a ação no campo político, mesmo que para isso comprometa seu conhecimento jurídico. Seu relatório é sagaz: ao mesmo tempo em que desvia o foco de uma ação mal apresentada, evita apreciar o mérito para garantir a continuidade processual. Os senadores serão julgadores de algo que não alcançam, por isso cabe ao relatório impedir o trabalho do presidente da Corte. Anastasia vai falar de costas para o direito. E ele sabe disso.
A hipoteca de sua credibilidade traz dividendos políticos inegáveis, mas também tem seu preço. Como um aprendiz de feiticeiro de seu mentor político, o senador Aécio Neves, ele perde a credibilidade e passa a depender cada vez mais da aparência em detrimento da substância. Anastasia se torna o fiador ativo de um golpe contra a democracia brasileira. De nada vai adiantar sua capa de bom moço, de administrador competente e cidadão honesto. Com o tempo, seu truque de momento vai revelar seu caráter. Freud já aludia para a complexidade dos juízos morais. A consciência é o limite das nossas culpas. Mas nossos julgamentos muitas vezes partem de dimensões às quais não alcançamos de maneira consciente.
Alguns políticos, dependendo da apuração das denúncias que respondem, podem se revelar desonestos por atitudes feitas com o domínio da razão e a certeza histórica da impunidade. Anastasia já consagrou de certa forma sua “desonestidade” antes mesmo do julgamento. O superego tem dessas contingências. Por vezes a ocasião faz o ladrão, a disposição inconsciente para erro de julgamento está apenas adormecida ou domada pela força de boas intenções e formação moral tão rígida quanto suprimível. O senador, sempre tão cioso de suas convicções, ainda que não tenha consciência disso, não deveria confiar tanto em sua intuição. Com a dedicação que põe na tarefa e o orgulho em estar entre os que considera grandes, ele não está apenas em má companhia. Está subtraindo valor da democracia brasileira.
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