Por André Calixtre, na revista Caros Amigos:
“O erro não é irreparável. Para o homem, como para os povos de boa vontade, o erro é passageiro e pode servir de estímulo para melhor pensar e agir”. Oswaldo Aranha. Abertura da XII Assembleia Geral das Nações Unidas, 1957.
É difícil encontrar momento mais importante para a tradição diplomática brasileira do que a Assembleia Geral das Nações Unidas, na qual há 71 sessões o País é honrado com o discurso inaugural dos debates de alto nível. Em meio a representantes máximos das soberanias do mundo, o Brasil mais uma vez foi convidado a iniciar as exposições interessadas ao tema fundamental deste encontro, que é a consolidação da Agenda 2030 e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Infelizmente, essa honra nem sempre foi motivo de orgulho para o povo brasileiro, que tem na democracia um valor constituinte da soberania. Por diversas vezes na história, a mais alta tribuna das nações foi ocupada por representantes ilegítimos, ditadores, entreguistas da soberania nacional, pseudo-intelectuais do pensamento social brasileiro, e até poetas da destruição do Estado de bem-estar social.
Na mais alta tribuna, também nos orgulhamos ao ver o primeiro operário e a primeira mulher presidente do Brasil recuperarem os termos mais profundos da Política Externa Independente e reformulá-los sob os conceitos de altivez e ativismo, ampliando sobremaneira a capacidade negociadora do Brasil com o mundo, em busca de uma nova arquitetura global para o desenvolvimento das nações.
Desconheço, no entanto, qualquer outra intervenção brasileira na história que tenha utilizado a tribuna para justificar aos pares a legitimidade do próprio governo. E intervenção das mais graves, buscando neutralizar a ruptura institucional provocada por um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, ao estilo de um golpe de Estado contemporâneo. Apesar de sempre desejável e fundamento do concerto das nações, a democracia nunca foi um conceito excludente no sistema internacional, o que não é o mesmo com a soberania.
Todo o resto do discurso de Temer são louros alheios a seu governo: o protagonismo brasileiro na negociação da Agenda 2030; os avanços na integração latino-americana e no Mercosul; as relações bilaterais com a Argentina; a liderança brasileira nas operações de paz do Haiti; a política brasileira para os refugiados; o pioneirismo no apoio ao processo de abertura econômica de Cuba; os acordos nucleares com o Irã, boicotados e depois plagiados pelos Estados Unidos; as negociações de paz entre a Colômbia e as Farc; as negociações na OMC voltadas à interrupção dos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos; o apoio à solução de dois Estados no conflito Israel-Palestina; a condenação da guerra da Síria; a política para a África; as Olimpíadas.
“O erro não é irreparável. Para o homem, como para os povos de boa vontade, o erro é passageiro e pode servir de estímulo para melhor pensar e agir”. Oswaldo Aranha. Abertura da XII Assembleia Geral das Nações Unidas, 1957.
É difícil encontrar momento mais importante para a tradição diplomática brasileira do que a Assembleia Geral das Nações Unidas, na qual há 71 sessões o País é honrado com o discurso inaugural dos debates de alto nível. Em meio a representantes máximos das soberanias do mundo, o Brasil mais uma vez foi convidado a iniciar as exposições interessadas ao tema fundamental deste encontro, que é a consolidação da Agenda 2030 e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Infelizmente, essa honra nem sempre foi motivo de orgulho para o povo brasileiro, que tem na democracia um valor constituinte da soberania. Por diversas vezes na história, a mais alta tribuna das nações foi ocupada por representantes ilegítimos, ditadores, entreguistas da soberania nacional, pseudo-intelectuais do pensamento social brasileiro, e até poetas da destruição do Estado de bem-estar social.
Na mais alta tribuna, também nos orgulhamos ao ver o primeiro operário e a primeira mulher presidente do Brasil recuperarem os termos mais profundos da Política Externa Independente e reformulá-los sob os conceitos de altivez e ativismo, ampliando sobremaneira a capacidade negociadora do Brasil com o mundo, em busca de uma nova arquitetura global para o desenvolvimento das nações.
Desconheço, no entanto, qualquer outra intervenção brasileira na história que tenha utilizado a tribuna para justificar aos pares a legitimidade do próprio governo. E intervenção das mais graves, buscando neutralizar a ruptura institucional provocada por um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, ao estilo de um golpe de Estado contemporâneo. Apesar de sempre desejável e fundamento do concerto das nações, a democracia nunca foi um conceito excludente no sistema internacional, o que não é o mesmo com a soberania.
Todo o resto do discurso de Temer são louros alheios a seu governo: o protagonismo brasileiro na negociação da Agenda 2030; os avanços na integração latino-americana e no Mercosul; as relações bilaterais com a Argentina; a liderança brasileira nas operações de paz do Haiti; a política brasileira para os refugiados; o pioneirismo no apoio ao processo de abertura econômica de Cuba; os acordos nucleares com o Irã, boicotados e depois plagiados pelos Estados Unidos; as negociações de paz entre a Colômbia e as Farc; as negociações na OMC voltadas à interrupção dos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos; o apoio à solução de dois Estados no conflito Israel-Palestina; a condenação da guerra da Síria; a política para a África; as Olimpíadas.
O que há de novo, portanto, no discurso de Temer? Ao trazer à tona a questão da legitimidade do processo interno do impeachment para todos os Estados, não foi somente sobre a democracia que Temer colocou suspeitas, mas a própria soberania nacional. A estranha sensação do insólito discurso inaugural do Brasil, abandonado em plenário por países latino-americanos irmãos, foi de que se tratava de uma tentativa de reconhecimento da independência de um Estado jovem, recém-formado por coalizões oligárquicas e que acaba de sair de uma guerra fratricida em direção a reconstruir sua identidade nacional.
Substituindo 14 anos de “diplomacia ativa e altiva”, como nomeado pelo chanceler Celso Amorim, o presidente Temer buscou anunciar a ruptura com essas bases e lançar para o mundo o novo conceito: “diplomacia pés-no-chão”.
Com uma forte dose de realinhamento à agenda dos países centrais, essa diplomacia preconiza uma “ONU de resultados”, uma nova agenda de integração latino-americana e de negociação na OMC, a ideologização do debate sobre os distintos regimes democráticos regionais e o retorno da prioridade para os temas clássicos da diplomacia norte-sul: a defesa do liberalismo econômico amplo e irrestrito; o apoio às guerras das grandes potências, ainda que falseado sob um duvidoso discurso pacifista; e o alinhamento à questão do terrorismo e à política de combate ao tráfico de drogas.
Nenhuma novidade no campo das diplomacias subordinadas, mas a “diplomacia pés-no-chão” contém em si uma aposta fundamental: a saída da crise interna pelo lado da demanda externa.
Esse arranjo foi tentado diversas vezes na história brasileira, a última nos anos 1990, mas somente pode ter sucesso se o comportamento da demanda externa responder ao imenso esforço de abertura comercial voltado à ruptura do padrão doméstico de financiamento do desenvolvimento via mercado interno.
O problema dessa aposta é que ela está muito longe de ter os pés-no-chão. Temer discursou para uma economia global em pleno fechamento comercial, amargando já quase uma década de crise econômica e financeira e agora com a desaceleração brutal do último motor do desenvolvimento representado pelos BRICS.
Ao buscar a demanda externa como panaceia da crise doméstica, não encontrará nem capital barato, tampouco demanda por commodities: o mercado está cada vez mais concentrado e as incertezas nos negócios brasileiros, marcados por rupturas institucionais, ampliam o prêmio pela liquidez do País. Ao invés de enfrentar a armadilha da renda média do mercado interno brasileiro, optou-se por deprimir a renda ao ponto anterior para reconverter artificialmente o modelo de desenvolvimento “hacia adentro” para “hacia afuera”.
Sem uma política cambial adequada e uma forte dose de intervenção estatal, a diplomacia de Temer vai apenas reforçar os movimentos negativos desse tipo de reconversão, a saber, a desorganização das fontes internas de financiamento e coordenação do desenvolvimento e o empobrecimento da classe trabalhadora doméstica.
Temer citou discurso de Oswaldo Aranha de 1957, proferido dez anos após a primeira sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, na abertura da XII sessão, em que Aranha, inspirado pelas grandes transformações encetadas pelo período democrático do trabalhismo, esboçou os primeiros pontos daquela que seria a grande experiência diplomática brasileira antes do período 2003-2016, a Política Externa Independente, de 1961-1964, sob a liderança de San Tiago Dantas.
A escolha é paradoxal: ambas emergiram pela força de um processo nacionalista e democrático de desenvolvimento e pela crítica dura ao alinhamento automático da periferia à agenda do mundo desenvolvido; ambas foram enterradas por golpes de Estado. No mesmo discurso, Temer deveria ter sido informado por seus assessores sobre outro alerta de Aranha: o erro é passageiro para os homens de boa vontade.
* André Calixtre é integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.
Substituindo 14 anos de “diplomacia ativa e altiva”, como nomeado pelo chanceler Celso Amorim, o presidente Temer buscou anunciar a ruptura com essas bases e lançar para o mundo o novo conceito: “diplomacia pés-no-chão”.
Com uma forte dose de realinhamento à agenda dos países centrais, essa diplomacia preconiza uma “ONU de resultados”, uma nova agenda de integração latino-americana e de negociação na OMC, a ideologização do debate sobre os distintos regimes democráticos regionais e o retorno da prioridade para os temas clássicos da diplomacia norte-sul: a defesa do liberalismo econômico amplo e irrestrito; o apoio às guerras das grandes potências, ainda que falseado sob um duvidoso discurso pacifista; e o alinhamento à questão do terrorismo e à política de combate ao tráfico de drogas.
Nenhuma novidade no campo das diplomacias subordinadas, mas a “diplomacia pés-no-chão” contém em si uma aposta fundamental: a saída da crise interna pelo lado da demanda externa.
Esse arranjo foi tentado diversas vezes na história brasileira, a última nos anos 1990, mas somente pode ter sucesso se o comportamento da demanda externa responder ao imenso esforço de abertura comercial voltado à ruptura do padrão doméstico de financiamento do desenvolvimento via mercado interno.
O problema dessa aposta é que ela está muito longe de ter os pés-no-chão. Temer discursou para uma economia global em pleno fechamento comercial, amargando já quase uma década de crise econômica e financeira e agora com a desaceleração brutal do último motor do desenvolvimento representado pelos BRICS.
Ao buscar a demanda externa como panaceia da crise doméstica, não encontrará nem capital barato, tampouco demanda por commodities: o mercado está cada vez mais concentrado e as incertezas nos negócios brasileiros, marcados por rupturas institucionais, ampliam o prêmio pela liquidez do País. Ao invés de enfrentar a armadilha da renda média do mercado interno brasileiro, optou-se por deprimir a renda ao ponto anterior para reconverter artificialmente o modelo de desenvolvimento “hacia adentro” para “hacia afuera”.
Sem uma política cambial adequada e uma forte dose de intervenção estatal, a diplomacia de Temer vai apenas reforçar os movimentos negativos desse tipo de reconversão, a saber, a desorganização das fontes internas de financiamento e coordenação do desenvolvimento e o empobrecimento da classe trabalhadora doméstica.
Temer citou discurso de Oswaldo Aranha de 1957, proferido dez anos após a primeira sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, na abertura da XII sessão, em que Aranha, inspirado pelas grandes transformações encetadas pelo período democrático do trabalhismo, esboçou os primeiros pontos daquela que seria a grande experiência diplomática brasileira antes do período 2003-2016, a Política Externa Independente, de 1961-1964, sob a liderança de San Tiago Dantas.
A escolha é paradoxal: ambas emergiram pela força de um processo nacionalista e democrático de desenvolvimento e pela crítica dura ao alinhamento automático da periferia à agenda do mundo desenvolvido; ambas foram enterradas por golpes de Estado. No mesmo discurso, Temer deveria ter sido informado por seus assessores sobre outro alerta de Aranha: o erro é passageiro para os homens de boa vontade.
* André Calixtre é integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.
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